João Grave

João José Grave (1872-1934) nasceu em Vagos e faleceu no Porto. Fez estudos liceais em Aveiro, formando-se em Farmácia no Porto. Nesta cidade exerceu o cargo de director da Biblioteca Pública Municipal. A nível literário, esteve inicialmente próximo dos naturalistas, notando-se influências de Emílio Zola. Depois enveredou pelo romance de costumes. Obras: Os Famintos (1903), A Eterna Mentira (1904), O Último Fauno (1906), O Passado, Gente Pobre (1912), Jornada Romântica (1912), Reflorir, Reinado Trágico, A Inimiga, O Mutilado (1918), A Morte Vence, Vitória de Parsifal, Paixão e Morte da Infanta, Os Sacrificados, Os que Amam e os que Sofrem, Cruel Amor, Foguetes de Santo António, Gleba, Vida do Espírito (pensamentos), S. Frei Gil de Santarém, O Amor e o Destino, Almas Inquietas, Memórias dos Dias Findos, Os Vivos e os Mortos (1925).




O MUTILADO

I

Havia já duas horas que D. Joana tinha vol­tado da estação do caminho de ferro onde, com um doloroso e profundo beijo, fora despedir-se do filho que nessa triste manhã de heroísmo e de angústia partira para a guerra – e ainda, chorava perdidamente, enrodilhada no sofá em que se dei­xara cair, vencida pela dor e pela fadiga. A in­tensidade da crise nervosa mergulhava-a, por ve­zes, num estado de inconsciência em que ela pa­recia esquecer-se de tudo, desconhecendo as coi­sas que a rodeavam, ignorando mesmo a razão das suas lágrimas, perdendo a noção exacta da realidade e do tempo; mas este crepúsculo, este delíquio dos sentidos passavam rapidamente, uma claridade reveladora surgia e o facto irremediável que a esmagava adquiria então na sua inteligência urna certeza maior e uma perfeita lucidez. Car­pia o seu infortúnio de mãe desditosa, sentia mais amargamente do que nunca a infelicidade e o desamparo em que ficara. Ah! esse filho! Para ele convergiam agora os seus pensamentos, todas as suas afectividades, todas as suas ternuras.

O  seio arfava-lhe com violência,  os soluços subiam-lhe do peito à garganta, abafando-a, ar­dia nos seus olhos um brilho de febre.   Enclavinhando as mãos com desespero, acometia-a a ne­cessidade de bradar em voz alta – para que todos a ouvissem – a sua desgraça: mas, por dignidade, por compostura moral, por orgulho de raça, continha-se, sufocando os gritos lancinantes num lenço de rendas que levava à boca e que rasgava com os dentes, convulsa, trémula, arquejante.  Fora o res­peito por si própria e também a dedicação que consagrava ao  pobre filho,  talvez perdido  para sempre, que lhe tinham dado forças e coragem para manter uma aparente serenidade durante o tempo em que estivera na gare de S. Bento, onde outras mães se lamentavam clamorosamente.   D. Joana, que apenas empalidecera um pouco e mal conseguia articular as palavras, não queria" que Duarte levasse para uma jornada trágica, e pro­vavelmente de morte, a visão* da sua imagem; afli­tiva e lacrimosa.  Tentando poupá-lo a este sofri­mento, que mais lhe enegreceria as horas mo­nótonas da viagem para destinos ignorados, mas decerto terríveis, pedira ao seu puro amor materno a energia essencial para mais um sacrifício –e mostrou-se, na verdade, serena e admirável de abnegação, sorrindo por entre a névoa que lhe velava e humedecia o olhar, não denunciando por um movimento mais desordenado, por um gesto mais brusco e impaciente, a intensidade do seu padecimento1. Falava pausadamente, conservando no rosto uma gravidade que a enobrecia.

– Ouve – dizia ela – hás-de escrever-me sempre que puderes. Lembra-te de que as tuas cartas vão ser a minha única visita consoladora, a companhia do meu desamparo.

– Oh! mamã! Que recomendação a sua! – exclamava Duarte, afagando-a. Pois está claro que escreverei...

E beijando-a na face pesarosa e branca, aper­tando-lhe longamente a mão fina, acrescentava ainda, para a confortar:

– Não perca a esperança!   Verá que hei-de voltar brevemente.   A guerra, que não pode du­rar muito, é sempre mais dramática vista a dis­tância e desfigurada pelas narrativas dos jornais, do que vista de perto...

– A esperança nunca a perderei, filho!   É a minha doçura derradeira.   Também creio no teu regresso e é dessa crença que vem toda a minha tranquilidade...

Tinha chegado dezembro e caía uma chuva fria e miúda. Grossas nuvens correndo das ban­das do sul, impelidas pela ventania tempestuosa, embaciavam a claridade matutina.  A cidade ofe­recia um aspecto de desolação e de penetrante me­lancolia debaixo do céu cinzento e hostil; mas um frémito de entusiasmo pulsava no coração da mocidade – toda uma primavera humana! – que se dirigia, cantando, aos fulgurantes campos de batalha como se vibrasse já sob a influência pro­digiosa dos combates e como se a glória para ela estendesse  os  seus olímpicos braços de luz.   A cada momento estalava a vozearia das aclamações à França, que se reconstituía em plena campanha, com o seu território mutilado, para repelir os in­vasores nas pontas das baionetas: aos Aliados, a todos os que se batiam, matando e morrendo, pe­los latinos, criadores da arte, da beleza e das civi­lizações, contra os setentrionais que desciam do norte em massas densas e cruéis cobertas do ful­gor branco  das  armas cintilando ao  sol,  para desencadearem, na pacificação fecunda e promis­sora da Europa, a mais feroz e sangrenta das guerras, o maior conflito da História.

Uma banda regimental tocava hinos marciais e patrióticos, num grande estridor de metais, e ranchos de soldados acompanhavam-na em coro, agitando no ar bandeiras com as cores portugue­sas, francesas, inglesas, russas e belgas que, ide longe, davam a impressão de enormes borboletas irisadas que tivessem levantado voo. Pelos cais, aglomerava-se uma imensa multidão de homens, de mulheres, de crianças, vitoriando incessantemente os que iam lutar e sucumbir, sem que o te­mor lhes empalidecesse as frontes altivas, sem que o seu estoicismo se perturbasse.

A chuva caía continuamente, como uma leve poeira de água, como um vapor ténue que tornava glacial a atmosfera. O vento gelado picava, arro­xeava as carnes. Do céu alto e baço nenhuma alegria descia à terra encharcada'; mas, nas almas, passava um belo sopro de heroicidade. Os ofi­ciais, fumando e puxando as golas dos casacos para as orelhas, passeavam lentamente, dois a dois, sem trocarem palavra, alheados do espectá­culo envolvente, absorvidos em intermináveis me­ditações. O rumor dos risos, das conversas, da gritaria constante, apagava, dominava todos os outros ruídos: e esta jovialidade era comunica­tiva e desanuviava um pouco o terror supersti­cioso dos menos enérgicos. Apesar disso, desen­rolavam-se de vez em quando as cenas impres­sionantes e dolorosas. Durante o angustioso tem­po da espera, uma pobre criatura humilde, de rosto macerado e magro, olheiras fundas e com a saia rota embrulhando-se-lhe: nas pernas trôpegas, es­teve sempre abraçada ao filho, um latagão de face vermelha, espadaúdo, de largo peito e sólida cons­trução, que tinha os olhos rasos de lágrimas. Su­mida nos seus farrapos, devastada, com vincos que lhe enrugavam a pele aos cantos; dos lábios, a desgraçada gemia a, cada instante:

– Filho!   Filho, que me não tornas a ver!   E para isto te criei eu com1 tantos trabalhos, tantas fomes!...

Gente compadecida parava à roda dos dois, contemplando com infinita piedade aquela mulher que representava o infortúnio! e o sentimento de outras mulheres. O soldado nada dizia. Tinha os beiços trémulos, o olhar errante, parecia con­fuso e envergonhado por uma dor maternal que se não escondia, que se confessava publicamente, que lhe amolecia, decerto, a tranquila intrepidez. Mas, no seu silêncio1, estreitava mais nos braços aquele débil corpo vacilante que o gerara, que o tinha amamentado, que já parecia morto e que apenas o amor galvanizava.

D. Joana, que estava um pouco mais adiante, junto de" Duarte, desviava a vista do quadro pun­gente para resistir ao enternecimento que dela se apoderava e que excitava o seu mal interior. Que­ria ser forte até ao fim, porque era esse o seu de­ver moral e humano. No entanto, traía-se constantemente pela comoção da voz, por um desespero surdo, sem. que pudesse dominar-se. Duarte com­preendia-a e admirava-a no seu suplício, na vio­lência do seu martírio. Passava-lhe brandamente os dedos pela cara, acariciando-a, tomava-lhe a mão enregelada que beijava com frenesi.

Perto deles surdiu uma rapariga nova, de man­tilha preta na cabeça, com um grande ramo de flores – as perfumadas e lindas flores de Portu­gal – de braço dado com um cabo de infantaria.

Ela chorava e ele envolvia-a num olhar de reco­nhecimento, de pena, de indizível saudade. Eram, decerto, noivos. A guerra, com a sua ferocidade barbárica, viera interromper um doce sonho de ventura apenas começado!...

Este episódio trágico e lírico sobressaltou vi­vamente Duarte.   Também ele  deixava no país uma noiva com quem fora tecendo horas idílicas de luar e para quem vivera dias inefáveis de ilu­são e de suavidade.   Pela primeira vez o invadiu um  singular desfalecimento de coragem,  que o fazia sofrer muito.   D.  Joana,  surpreendendo-o com essa intuição subtil das mães, voltou-se para o lado, para se não comover e se denunciar.   Oh! aquela interminável demora!   Com que implacá­vel crueldade a torturava!  E, apesar disso, como desejava que ela fosse muito longa, que durasse semanas,  meses,   anos,  que  não  acabasse  mais! Mas um empregado dos caminhos de ferro, com o boné agaloado a ouro sobre a orelha e o cabelo luzidio e empastado na testa, correu o cais dum extremo ao outro, gritando: – Partida!...   Partida!... Houve, então, um movimento apressado, tu­multuoso.  Os soldados entravam atarantadamente nas carruagens –que se enchiam, que transbor­davam de uniformes dum verde esbranquiçado – ficando   apinhados   às   janelas,   a   agitar   lenços brancos que batiam ao vento numa palpitação ide asas nervosas.  O barulho aumentava.   Os sargentos inspeccionavam rapidamente todos os compar­timentos, dando ordens, formulando observações. A populaça que acompanhara as tropas rompeu em saudações sonoras, ardentes, vibrantes de fé e de patriotismo, em estridentes salvas de palmas. Dir-se-ia que outra vez, como nos ciclos distantes do seu esplendor e ido seu triunfo, Portugal partia para destinos superiores, não à descoberta de mun­dos remotos e desconhecidos, mas a afirmar, com as armas na mão, a sua inesgotável vitalidade. Ouviam-se, a espaços, soluços, lamentações, quei­xumes.  Um silvo da máquina atroou os ares, um espesso rolo de fumarada subiu: – Adeus!  Adeus!...

Duarte e a mãe trocaram uni! derradeiro1 beijo em que as suas almas se fundiram, e o comboio avançou, por entre o alarido formidável, a prin­cípio vagarosamente e silvando sempre, no meio da flutuação dos lenços que acenavam, das ban­deiras que tremiam à aragem. D. Joana, com a morte no coração e uma frialdade que lhe entorpecia o corpo, muda, viu sumir-se a última car­ruagem na treva do túnel que escancarava a boca sinistra, e saiu rapidamente da gare, comi pressa de refugiar-se na inviolável solitude ide sua casa agora mais deserta, para poder chorar livremente, desafogando da aflição que a oprimia longe de todas as curiosidades, irónicas ou importunas, que lhe ferissem, o pudor de mãe e a intensidade do padecimento.

Ao dirigir-se para o automóvel que a esperava à porta da estação, encontrou, caída sobre as pe­dras enlameadas, a mulher que momentos antes vira no cais agarrada freneticamente ao filho. A fatalidade duma sorte idêntica irmanava as duas mães – uma aristocrata e outra plebeia – mas vergadas ao peso da mesma desventura. Curvou--se sobre a mísera, coberta de farrapos, que jazia imóvel como se toda a vida nela .se tivesse imo­bilizado também, tocou-lhe com a mão enluvada no ombro, murmurando:

– Escute!...

Nesse instante, uns olhos profundos, cheios de mágoa e de terror, uns olhos doridos e piedo­sos como D. Joana nunca tinha visto e que a va­ravam, a trespassavam, parecendo espreitá-la até às recônditas, misteriosas regiões da consciência, ergueram-se para ela, implorativos, suplicantes, e uma voz em que havia todas as humildades, todas as canduras e todas as abnegações, disse:

– Ai! minha rica senhora! Que tristeza... Fico tão só no mundo, Deus do céu, tão só no mundo! Ele era o meu único, arrimo. E tiraram-mo para o levarem para a morte... E não tiveram pena de mim!...

– Coitada de quem é mãe! –comentaram vá­rias pessoas, à volta.

– Bem! Tranquilize-se. E olhe, vá a minha casa. Aqui tem a indicação1. Falaremos ambas <le nossos filhos que foram para a guerra – ex­clamou D. Joana.

A outra pegou no cartão de visita que embru­lhou num lenço sujo, chorando sempre e murmu­rando palavras de agradecimento e de bondade. D. Joana, tocada por aquela desdita e tendo ne­cessidade de fugir da rua, da vida exterior e egoísta, para se isolar com a sua própria angús­tia, entrou por fim no automóvel, correu a vidraça e desapareceu na hostilidade da manhã de inver­no. Pelas ruas, cheias duma lama viscosa, quase líquida, uma assustadora confusão de gente e de carros embaraçava, dificultava o trânsito. De mo­mento, a momento, o chauffeur tinha de abrandar a marcha, para evitar atropelamentos: e a moro­sidade do veículo impacientava D. Joana, sobrexcitava-lhe os nervos. Ao chegar à sua habitação – uma casa apalaçada erguendo-se entre árvores sem folhas e rodeada de amplos jardins que pela primavera refloriam e incensavam de aromas de toda a sorte: – subiu a larga escadaria alcatifada, fechou-se numa sala onde a luz, filtrada pelos estores descidos, fazia uma penumbra aliciante, tirou o chapéu, as luvas, o casaco de agasalho forrado de peles, abateu-se sobre o sofá e rompeu então num pranto prolongado, contínuo, que a exauria mas que conjuntamente a aliviava e refrescava o ardor da sua crise.

A vivenda estava adormecida numa placidez que nenhuma agitação perturbava. Sentia-se o ramalhar dos arvoredos que a ventania açoutava. Um nevoeiro frio empanava os vidros das janelas.

Uma criada vestida de preto bateu levemente à porta.

– Entre! – disse D. Joana.

Ela entrou, deslizando sobre os tapetes como uma sombra e dirigindo-se à ama:

– Vinha saber se a senhora precisa, dalguma coisa.

– Não, Maria, não quero nada.

– Mas o almoço está na mesa – insistiu ela.

E, desejando consolar D. Joana, ainda acres­centou :

– O menino há-de voltar...   Não se aflija...

– Obrigada,  Maria...   Deus a ouça...   Mas hoje  não  almoço, não tenho apetite.   Deixe-me só, por um bocado.   Eu a chamarei mais tarde...

A criada debandou tristemente, na ponta dos pés, e D. Joana, mais pálida, mais abatida, re­caiu na sua amargura, porque as lágrima;, tinham para ela uma doçura que a acalmava. Os seus gemidos fundos alternavam com o tic-tic dum re­lógio de bronze montado sobre colunas de már­more cor de rosa que, em cima duma credencia de talha antiga, marcava as horas. Durante toda a manhã abismou-se no seu sofrimento, nas suas cogitações, suspirando, sem vontade, vencida, aca­brunhada, incapaz de reagir contra uma prostra­ção que a extenuava...


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