José Marmelo e Silva

DEPOIMENTO


A Bíblia diz: Por um motivo fútil, matou Caim a Abel. A beleza de Helena, canta Homero, arrasou Tróia. Dum momento para o outro, um inquilino meu suicidou-se. E ao abrirmos as gazetas. "Foi morto à sacholada (à facada, a tiro...) um homem (aqui ou além) por motivos insignificantes (por um copo de vinho, por causa de dois tostões!)"

Por motivos insignificantes?! A razão anda assim boiando à superfície como qualquer pedaço de cortiça na água. Pois não será a conduta humana merecedora de mais demorada e fiel observação?!

O médico não se detém a estudar o efeito da doença, senão para melhor indagar da origem dela. Com a nossa desgraça, porque não procedemos semelhantemente? Eu a comparo à foz dum rio cuja fonte é muitas vezes o seio da nossa mãe.


*


Durante o meu curso de miliciano em Mafra, fui surpreendido por um acontecimento bem frisante. Ao dobrar duma esquina, ao passar pelas lojas de comércio, pelo talho, pelos cafés, pela farmácia, era vulgar ser apontado a dedo, murmurarem com descaramento, mesmo os "garanhões":


– «Foi aquele, aquele cadete!»

– «... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...»

– «Por um motivo fútil!»

– «Por uma coisa de nada!»

– «E a calma do tipo? Vejam, impressiona!»

– «... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...»

– «Contamino de quem morre, que vai para os torrões!»

– «... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...»

É certo que a minha responsabilidade acabou por se não comprovar, melhor, nunca foi juridicamente posta em causa, digamos assim. Mas porque foi o meu braço e não outro o braço executor?

A má-língua local, então reunida na Cova Funda, chamou-me cínico. «Cínico revoltante». De facto, a conduta dos homens nem sempre é mais nobre que a dos cães. Eis, pois, para essa pobre gente, a confirmação. Porque, descendo ao íntimo de mim mesmo, encontrei os germes do nosso mal. E o nosso mal é acima de tudo, conhecermos um universo tão belo, imensurável, sem fim, e não sermos suficientemente fortes para evitar perdê-lo, ou para perdê-lo sem medo nem lamentações. A nossa miséria é essa. Ah, quanto somos ridículos perante o inexorável e a morte! Digo francamente: a angústia de Lia transcende todos os motivos fúteis. Nós é que pomos este rótulo nos dramas mais pungentes, ou os atribuímos a uma espécie de fatalismo, para uns divino, para outros diabólico, e para todos inquietante e irrevogável.

Saberia Lia tão pouco porque enviou ela mesma aquele soldado à camioneta, quando chegámos a Mafra, eu e meus camaradas, e olhávamos o convento, quase com desdém, quase com indiferença (como se o tivéssemos julgado um monumento muito diferente!) enquanto uma algaraviada de crianças zumbia à nossa volta:

– O meu cadete já tem quarto?

– O meu cadete precisa de quarto?

– Meu cadete, há um quarto...

(Que raio, tudo cheirava a quartel, até a canalha! Até a cor das casas!, amareladas como penitenciárias!) Para que enviou ela mesma aquele soldado que se aproximou de mim, me tomou a mala sem hesitação, dizendo:

– A viúva do nosso major Escoto espera pelo meu cadete...

– Sim, para que o enviou? – pergunto.

A Fatalidade é o signo de todos os dramas humanos. É ela que traz a desgraça; mas a desgraça, é como a foz de um rio que nasce, muitas vezes, no seio da nossa mãe.

E mãe de Lia ligou-se muito nova com um homem já de idade. Esse homem, o falecido major A. N. Scoto, nosso parente em terceiro grau, viveu sempre, desde estudante, uma vida tão aventureira (ou, como em pequeno ouvi dizer, escandalosa) que nós, em casa, perdemos, por assim dizer o fio à meada dos acontecimentos, na altura precisa em que a segunda mulher lhe fugiu para Paris, e ele ficou pouco depois divorciado. Apenas há oito anos, salvo erro, soubemos vagamente da sua morte em Mafra, não o chegando eu nunca a conhecer. Afinal – o mesmo soldado me informou – casara uma terceira vez, no Porto, tivera duas filhas, não obstante a sua já avançada idade, e...

Com efeito: mal subo as escadas, a porta abre-se espontaneamente e aparece Lia, uma delas, resplandecente com a minha chegada. Aqui está ela perto de mim, entre os móveis velhos da pequena sala de visitas, franqueando-me igualmente a porta da sua alma – como se eu fora aquele a quem ela esperava há tanto tempo com uma ansiedade viva e infalível.

Ali estava. Serena, muito branca, pequenina, com a fronte alta do retrato do «papá» e acomodada por fim numa compostura tão séria e tão pura, que me chocou. De resto, o tipo sintomático da «mamã» era o seu contraste: desmesuradamente gorda, avantajada (a gente diz aqui um nome feio) aparentemente grosseira, sim, na cor (marmorizada!), na distensão da pele, na placidez total... – mas perdoável no seu discorrer sem reservas e ininterrupto. Porque a certa altura, palpei mesmo nela uma destas vulgares pessoas tornadas sensíveis à custa de muita pobreza e sofrimento. Além disso, tinha lido alguns romances e sofria da asma.«Faltava-lhe muito amiúdo o ar, era medonho, o seu marido falava muito de nós, os primos de Portalegre! – era sempre, interessou-se até à hora da morte. Ela era de Trás-os-Montes, chamava-se Conceição (D. Conceição). Depois de duras provações com que Deus tão injustamente as castigara, Lia fez-se regente do posto de ensino de Chèleiros. E que, em suma, tendo de receber alguém num quarto que tinham disponível, nem duvidavam que eu lhes desse a alegria de aceitar. Consideravam-me família, evidentemente. Já contavam comigo no ano anterior. Sabiam por colegas meus da Faculdade».

Aceitar, aceitava. Mas confesso: ouvi tudo aquilo como uma espécie de lenga-lenga, como um novo e último capítulo do romance do major. Nós vivemos sempre bem. Meu pai é realmente notário em Portalegre e minha mãe herdou uns prédios em Castelo de Vide, de que nos temos desfeito a nosso muito bel-prazer. Nunca nos faltou o essencial. Que espécie de superioridade confere às pessoas educadas este simples pormenor de viver! Desejaria agora não ostentar nada disto aqui; mas é simplesmente para fazer compreender como aquele parentesco da última hora (avivado da pobreza disfarçada, é bem de ver) encontrou em mim uma reacção social suficientemente forte para não transigir com ele. Enfim, quando pude, dirigi-me directamente a Lia, ao mesmo tempo para sacudir-lhe o ar seráfico:

– Sua irmã não está, naturalmente já casou...

Lia toldou-se duma expressão angustiosa, titubeou:

– Não senhor, minha irmã... Mas porque diz o primo isso?

Refugiou-se nesta pergunta tão desastradamente, tão sem encanto, que eu desviei os olhos ávidos.

D. Conceição ouviu, parou de relatar a sua vida («do tempo em que fora uma rainha»; ela citava todas as cidades em que estivera: «até Milão!») e suspirou:

– A Juja...

Compreendi imediatamente que tocara num desses desvãos familiares – melindrosos, secretos – com a minha curiosidade indiscreta, embaraçosa, terrível. Fiquei suspenso... E talvez esta atitude de aparente expectativa constrangesse D. Conceição a suspirar de novo, e exibir de novo a sua falta de ar, a cair dolorosamente neste desabafo:

– A Juja... morreu.

E eu parvo de todo:

– O quê, morreu?!

– Para nós...

– «Para nós», não, mamã! – acudiu Lia, generosa e já refeita. Eu quero-lhe na mesma. Talvez ainda mais, coitadinha!

Lia fixou os olhos marejados em qualquer ponto vago. E D. Conceição, só para mim, numa confidência cruel que lhe fez tremer ambos os lábios:

– Foi-se-me para Lisboa...

Lisboa, pronunciada assim, significava um mundo proibido (qualquer coisa como sensualidade, estupefacção, mistério). Nesse momento estrangulado, vi a Juja de relance, tentadora (Rossio, automóvel um olhar violáceo riscando o ar, luzes vibrantes, fausto, estonteamento, um quarto!) e desejei que ela, a aventureira, não fosse como a irmã, uma fria beleza de santa, acrisolada, outonal.


*


Lia tinha vinte e cinco anos: esperava em verdade por mim. Desde que o papá morreu, a porta da sua casa ficou aberta apenas para o lado do quintal: e do lado do quintal havia pinheiros, uma vinha devassada, moinhos à vela, ondulações lilazes e o infinito mar – mais nada. Do alto da frontaria podia ver-se o escoamento da estrada lisa, dum brilho negro: estrada do prazer, do amor, da exibição, porque era ela que levava à missa, aos bailes, a passeios, a chás, ao Carnaval. Ia na direcção das torres e cúpulas do Convento, dava para o comboio, para Lisboa, para todo o mundo – aquela estrada negra. Também Lia vinha por ela; simplesmente a sua vida empanou. E deteve-a. Passaram para diante, abandonando-a ali, os que a seguiram a par ou à rectaguarda. Foi então que ela, vestida de luto, trancou a sai morada e se isolou. Mas o seu coração nunca cessou nunca de velar, nem de noite, nem de di: com medo que batesse à porta um senhor de cabelo de oiro e de olhos azul– -celeste e retrocedesse desolado por ela a não Ter vindo abrir.

Assim eu dourei a sorte negra de Lia, imaginando tudo isto com um sorriso atroz, mal me vi só, no meu quarto, impando de satisfação. Realmente: em Mafra, há centenas de homens válidos para cada mulher válida; e, desde a primeira hora, eu gozava da presença dos olhos de Lia, assistindo bondosamente ao meu arranjo de homem – lavar, polir, pentear, cantarolar – na sua uniformidade de olhos passivos, prometedores, olhos saudosos doutros saudosos olhos. Lia não era uma mulher ardente. Nem loira, de vanguarda. Era diferente de todo o real possível, era por assim dizer inimaginável, uma carne só espiritualidade, e eu vinha encharcado de Lisboa. Das suas girls pegadiças. Queimado, sensualão. O luto trancou a janela daquela casa e a porta. Lia crescera assim como um pequeno caule luxurioso na humidade dum aposento térreo e escuro.


*


O capitão recebeu-nos com um sorriso tétrico. No jogo da sua máscara tisnada, transparecia o ricto da própria coacção. Isto imprimia-lhe maior dureza às palavras: «– Os senhores são soldados!» E Daí a pouco tornava: «– São soldados como os outros!»

Para sabermos esta singela coisa, fez-nos estar formados, a tarde inteira (a tarde de um Domingo cheio de sol!) à porta da secretaria. Nem tugíamos. O bom do homem queria expressar-se concretamente, mas nem ideias, nem sons lhe advinham aos lábios, sem frustração. Riscavam o ar suas mãos ásperas e desesperadas. Quanto me apetecia sugerir-lhe as palavras oportunas, capitão! Eu ruminava-as: «– Vós vindes cheios de personalidade e preconceitos, quer porque sois ricos, quer porque sois sábios. Pois bem: varrei tudo isso do vosso cérebro urgentemente. A guerra está aí, mais feroz que nunca, mais universal que nunca, mais pavorosa!, e nós, nós todos!, só podemos mostrar-lhe uma face metálica e disciplinada. Atrás dela, numa esteira de sangue e de ruínas, desaparecerão todas essas velharias e privilégios do mundo injusto em que vivemos. Uma nova ordem de coisas nos espera... – se conseguirmos ser fortes até ao heroísmo, ranger os dentes até à loucura!»

Se V. nos falava deste modo, capitão! Se nos dizia dos que deviam Ter vindo e não vieram e deviam estar ali connosco lado a lado... E, apesar de tudo, era esta nova ordem de coisas que muitos supunham desprender-se dessa rudeza e obstrução verbal. Porque afinal eram já as palavras de Vergílio há 2000 anos...

Mas não. Militarão orgulhoso e agressivo, continuava a metralhar: «São soldados como os outros!»

O Convento fora-nos igualmente hostil. Os seus milhões de toneladas – quatro quilómetros quadrados de construção maciça – deixam em toda a gente uma impressão de esmagamento. À noite, porém, o Esplanada Bar regurgitava de grandes gargalhadas. Também o capitão não queria tocatas pelas ruas. Pois saímos com o Pistotira, improvisando quadras, as mais mordazes. Nesta altura, eu tomei a direcção de casa. Estávamos no outono, arrefecera – desculpei-me. O meu intuito, reconheço agora, era acabar de devassar, numa frívola aparência de compunção, a vida das duas inocentes criaturas.

Fui encontrá-las a jogar num pequeno compartimento que dava para o quintal e lhes servia de cozinha, quarto de costura e, como eu estava a ver, de salinha de jantar e de serão. Convidado, sentei-me. Pousei O Século, que costumo ler na cama. «Ah – pediu a D. Conceição com uma ternura bastante doce – se eu lhes cedesse por momentos o folhetim!»

Lia atalhou pressurosa o meu gesto de oferecer-lho. E pôs-se a procurá-lo com tal impaciência, ruflando no papel, como asas brancas de pomba, as suas mãos fidalgas, que eu não pude deixar de sorrir e ficar surpreendido a olhá-la. A minha sensação era indefinível, mas agradável. Só consegui fixá-la, quando a mãe, também alvoroçada, justificava com toda a convicção: «Isto para ela? É um bocadinho do céu. É o maior prazer deste mundo...» e enquanto Lia devorava, numa atitude de deleite muito semelhante à sensual, qualquer horroroso capítulo do Submarino Fantasma (creio que era). O horizonte daquela rapariga afigurava-se-me de facto estreito, tão limitado, que, com uma só das minhas mãos, podia chamá-lo meu. Sejamos banalíssimos. O gosto de cada um é uma bem relativa coisa e revela muitíssimo da nossa alma. D. Conceição, que assim em família, mais baixa que o abat-jour, perdia um pouco aquele ameaçante ar de adamastor, perguntava com ansiedade, implorava:

– Diz-me só, Lia: eles salvaram-se?

(E supondo aliciar-me com a sua própria dor):

Ontem estava a acabar-lhe o oxigénio...

As cartas tremiam-lhe nos dedos gordos, voltou a interrogar, cada vez mais melada, menos paciente. Mergulhada no Submarino, as mãos puras acautelando (do olhar da mãe), ora uma, ora outra a abertura arreliadora do decotezinho nevado, Lia demorou o tempo que foi preciso, por fim respirou profundamente, acenou que sim, que se tinham salvo – todos!

Foi um alívio. Que bom! A D. Conceição não podia ler à noite. Turvava-se, ai, era um desespero... Eu ofereci-me. Mas a Lia, radiante pela salvação dos piratas, já não quis jogar, ergueu-se – mal ela sabendo, ai de nós, que ia precipitar o curso da desgraça numa queda tão violenta – foi pôr a tocar um triste altofalante de campânula, mal alumiado, velhíssimo, arrumado a um canto. Como podiam ainda conservá-lo? A música rompeu de lá com a mesma idade: igualmente indistinta, cansada.

Entretanto Lia estava divertida. Cantarolava, rodopiou sozinha uma, duas vezes, no pequeno espaço livre, observava-me às furtadelas. Parecia, porventura, desejar surpreender-me e olhá-la. Que admirava eu nela? – desejaria saber. Os seios? (Tão compostos!) A cinta? O gesto fino? A pureza de alma? Sm os lábios bulirem, eu ouvia o seu coração: «Pois bem, o senhor que me parece muito amável, peça à mamã e venha-me abraçar!». E, como eu hesitasse: «Vamos, não perca tempo!».

Pude ainda prolongar o seu martírio, até ela repetir com amargura, num olhar já demorado: «Por favor! Há oito anos que não danço! (E quando me lembro, meu Deus!, os anos de melhor juventude!) Porque não vem? Bem sei. Não me acha digna».

Fui. Beijei-a nos olhos. Media-a a todo o longo de mim, ao longo da minha própria vida confortável, não sem doçura e enternecimento. Beijei-a, beijei-a, porque ela tinha direito a ser beijada... Pousei-lhe a boca no rosto, ali a repousei. Direi antes: Pousei-a no mistério da sua vida, que, para infelicidade nossa, estava destinada ao sacrifício.

Lia não sabia dançar. Mas abandonara-se de corpo e alma – dócil, contente – cordeiro perdido que encontra o colo do seu pastor. A D. Conceição, dei mais tarde por ela, fazia que não espiava. Com que fim? Afigurou-se-me inútil, cruel para Lia, por a não deixar viver.

– Dá-me o casaco, filha, estou a sentir frio.

Lia desenleou-se de mim, correu pelo casaco. Vi perfeitamente que ao entregar-lho (era um casaco preto, de pele, todo coçado) a pobre rapariga recebeu um terrível olhar de reprovação – e não teve tempo senão de devolver-mo, atemorizada. Robusteci-me. Até aí o meu contacto fora, acima de tudo, culto espiritual. Mas estimulado assim, despertado no sangue, eu pus um novo disco, desses mais devastadores, uma agulha nova (mais penetrante), venci com gesto mole a hesitação de Lia, reenlaçámo-nos. A srª Conceição puxou das contas, tremeram-lhe os lábios de fúria, e, assim que pôde, arvorou de novo a afronta da sua falta de ar. Que fosse até à janela... É o ia! Deitava o rabo do olho, rezava. Querer-me-ia convencer? Beijei Lia na boca devagarinho, anichei-lhe os seios no meu peito, embalei seu corpo cálido, gostoso, amadurecido, como um ninho de castidade e preservação... – enquanto a mãe protestava expelindo aos aflitos. Lia não a ouviu. Comprimiu-se mais e mais, tornou-se leve, tão leve, o seu desejo era ficar colada a mim, dissolvida em mim, deixar de existir para este mundo negado e impiedoso. Que sede! Depois ergueu para o meu rosto o pescoço alvo, a coragem do olhar, e, quando eu supunha encontrar neste o mesmo significado e a mesma gratidão dum animal que fomos chegar à água e bebeu sôfrego, o olhar de Lia mostrou-se-me doente, profundo, ingénuo, impossível, desesperado – reflectindo um drama que ela conseguiu sintetizar em meia dúzia de palavras simples, estranguladas:

– Não faça mal à sua Liita, não?

Entregava-se-me! Como uma bola de sabão que tivesse vindo, na sua fragilidade e policromia, poisar intacta nos meus dedos, estendidos, horizontais. Liita! Esta pobre frase, inverosímil. Lia, digna de dó. Eu tinha cometido um sacrilégio bárbaro.


*

Primo José – interveio D. Conceição, benzendo-se e arrecadando o terço – não leva a mal que lhe peça uma coisa, não?

– Oh, minha senhora, por quem é! Faça favor...

– Era para... vir jogar comigo uma partida, só

um bocadinho, se não lhe custasse muito. E conversarmos aqui em família, sim?

(Que amável! Quis intrigar-me, não pude recusar. Ainda observei):

– Mas não quererão já deitar-se?

– Eu não durmo... Se eu dormisse, mas eu não durmo, o meu coração não me deixa...

E, em seguida, fitando a minha mão esquerda:

– Que lindo anel que o primo tem! Que linda safira! Meu marido tinha um rubi, mas o anel era semelhante...

– Também já tinha reparado! – desabafou a Lia, com admiração. – É o símbolo do «amor persistente», não é, mamã?


*


A verdade é que, em toda a noite, Lia não me lembrou. Eu tive ultimamente no Apolo uma corista singular. Nessa temporada chamava-se Georgette (nome de guerra), fugiu do Porto ao pai, «um antigo governador de Angola». Que sanguessuga, não calculam! De nada me valia mudar de quarto, de café ou dancing. Perseguia-me tenazmente na Baixa, no Estoril, no Arcádia. Quantas vezes contrafeito me levara! Contrafeito! Por princípio, fujo de reconhecer dons inestimáveis em mulheres socialmente neutras. O que eu sentia – compreendo agora – é que só de longe tolerava eu a sua influência e encantamento. Em presença, logo a atraída se convertia para mim em atraente. Georgette tinha o raro segredo de nos impregnar de fascinação. Por todos os poros respirava lubricidade. Um ser vivo diabólico que me aparecera – reconheci tantas noites. E me aparecera um tanto misteriosamente. Estou a vê-la. Um belo lábio – longo, entumecido, soberbo. Morava na R. do Arco, numa varanda de caixote, com um barrigana rico. Pois bem. Foi ela que veio pegar-se comigo uma vez mais, rindo, ralhando, batendo o pequeno pé por instinto, num desespero delicioso, até cair no leito a chorar não sei porquê. Era nesta fase que eu noutro tempo a amava; porque a sentia mulher. Mas a velhaca apercebeu-se disto muito cedo, e desde então começou a representar chorando. Não a pisei, nem lhe bati. Simplesmente abandonei uma noite o seu corpo nu, o lábio cheio de sangue ou de veneno – cavalheirescamente, definitivamente, com o alívio de Ter arrancado sem dor e não sem volúpia a tortura dum calo arreigado na minha própria alma. Horrível criatura! Mal acordei, pu-la de parte. Sacudi-me dela como dum pesadelo sem nexo. Era o toque de alvorada, antemanhã. Saltando da cama, chamei Lia ao pensamento. Talvez ainda dormisse. Seria bom ir pé ante pé surpreendê-la à alvura morna dos lençóis. Entrar no seu quarto e envolvê-la, doce, imperceptivelmente, como entra e a envolve a luz da madrugada. Agora difusa, medrosa, menos delicada a pouco e pouco, logo mais afoita, e persistente até ao domínio absoluto que chega com o aparecimento apoteótico do sol.


*


Mas que é isto senão literatura? Lia, para mais, dormia com a mãe. Que outros devaneios me criava a imaginação? Estou é retardando a aproximação dos factos mais dolorosos, como por vergonha ou por remorso. Nessa madrugada, conforme me comunicaram de véspera, elas tinham de sair de Chèleiros, porque era segunda-feira, havia escola. Aconteceu fazermo-nos companhia até ao quartel. Lembro-me dos queixumes da D. Conceição contra a aragem húmida, contra o caminho longo, contra as dificuldades da vida em geral, «– e a escoa, um tormento, com tão mesquinha remuneração...» – e odiei a submissão de Lia que caminhava a meu lado, muito baixa, encostada a mim quando podia, ora numa ora noutra mão um pequeno saco de roupa, e reerguendo uma, muitas vezes, os olhos suaves, como a rogar: «Quem um dia me evitasse esta tortura!» Quereria ficar comigo por todo o sempre, escrava que fosse, e afastava-se antes do nascer do Sol. Muda era a oferta dos seus lábios, invisível o desejado amplexo dos seus braços; porque havia de contentar-se com estender-me a ponta dos dedos finos e partir. Lá íamos. A terra ainda dormia. O Convento punha no Oriente incendiado uma enorme mancha escura. A sede de Lia, eu a matava à beira da estrada, com a água viva de que fala o Evangelho. E a mãe badalava, toda velha intimidade:

– Apareça por lá, primo, é uma hora de caminho a pé ou pouco mais.

– Talvez... – prometi.

Voltou a insistir, sinceramente franca. (Despedimo-nos até breve, com simplicidade). Os olhos dela lacrimejavam. Levou-me então a crer – pobre mãe – que lhe agradaria sumamente um começo de verdadeira afeição por Lia. (Devia Ter passado a noite a monologar). Com fins matrimoniais, porque não? Eu, duma família a que ela sempre desejou subir; veterano do Instituto Superior Técnico; futuro herdeiro dalgum grande prédio (por certo hipotecado, mas sem ninguém saber). Lias com os seus, hoje tão raros!, dotes de educação e de honestidade: um coração de oiro e intacto. Preciosíssima. É certo que não possuiria em absoluto a experiência necessária ao lar. Dificuldades em dirigir não faltariam. Mas para isso, lá estava ela, a prima Conceição. A «mamã», a viúva que impunha respeito e seriedade. Seria desinteressante a dona de casa.

De repente, sorri: Vi-me encarregado duma passagem de nível, com a obrigação, sobreexcedente, de regar os lírios todas as manhãs. Pobres criaturas de Deus, os seus problemas económicos amesquinhavam-nas. Eu reconhecia que tudo começava a conjurar-se e muito especialmente contra mim próprio: «Se as pessoas são sinceras comigo, confrangem-me; se são fingidas (como a Georgette) irritam-me. Só me interessa um convencionalismo básico, de limites definidos a respeitar».

Por fim, ainda de novo a prima Conceição, alguns passos mais além: «– A inquilina do rés-do-chão arrumaria o meu quarto. Podia servir-me do quintal. Ficasse à vontade».


*


À vontade, como? A casa não tinha instalação eléctrica, comodidades, nenhumas, e distava um quilómetro do quartel. O soalho côncavo rangia. Que tolice inqualificável! Só mais tarde, repercutindo em mim mesmo tais palavras – e pareceu-me ser a primeira vez a ouvi-las – dava pela ridícula situação. «Ah-ah! Era então a presença de Lia, hem?!» – gozava uma voz qualquer. «Tranquiliza-te: Ela virá passar o fim de semana a casa!» «Que me importa isso a mim?» Sairia dali, apesar de tudo. Uma desculpa qualquer e sairia. «Minhas senhoras, sinceramente, que tenho eu com os vossos estranhos problemas?» E fui-me ao banacau. Dali, para os exercícios.

– «Ombrô!... arm!»

Toda a manhã na parada. «Esquê-derêto!, esquê-derêto!» Víamos o capitão, de longe, , erguer a fronte mussolínica, bulir os lábios anegrados: «Figurões!, eu dou-vos as basófias, esperai lá!» Toda a tarde nas aulas. «A trajectória, meus senhores...» Uns mestrezinhos fresquinhos, a escorrer vernizes da Escola de Guerra, incansáveis como tudo, já a sonharem com as estrelas de brigadeiros! Sim senhor. À noite estava cansado. E devo confessar: Soube-me bem o repouso sossegado daquela casa fechada, viveiro de sombras, rangentes, onde decerto andava errante o espírito dum velho parente de meu pai. Pouco a pouco, emanada do leito velho, das paredes desbotadas, do soalho carcomido e mal encerado, do mistério em que tudo respirava, ou talvez mesmo do eco que me ficara – a desgraça de Lia começava a entrar por mim adentro.

A órfã do major A. N. Scoto desempenhava-se do cargo de regente como quem expia um castigo, inocente mas irremediavelmente, para conservar a vida dela própria e da «mamã». Porque teimava em lhe chamar «mamã» ? Ganhava menos que uma criada de servir. Tinham em Mafra esta habitação beneficiando duma renda antiga que, graças a Deus, era coberta pelo subarrendamento do rés-do-chão. (Reproduzo todas estas coisas sem beleza, duras como as vi – e para que vale em verdade saber doirar misérias?) Nem sequer a pobreza da órfã e da viúva era já de si doirada. Mobília, pulseiras, brincos, por certo recordações, mesmo roupa, tudo foi a pouco e pouco conscientemente trocado pelo pão de cada dia. Igualmente o piano. Uma farda do major. Com parte desse dinheiro, Juja fugiu para Lisboa, compraria em qualquer rua alguma fruta e um bilhete da lotaria. Talvez o tivesse dado a algum amante...


*


Quando no intervalo do almoço do segundo ou terceiro dia, não sei já bem, apareci em casa, a inquilina do rés-do-chão estava-me fazendo a cama. Era uma camponesa rude, macerada. Pediu desculpa, apressou-se a dizer:

– O «impedido» trouxe esta caixa para o sr. Doutor. Da parte da menina.

Abri-a. A explicação vinha num papelinho escolar: «Envio-lhe estas uvas para o seu lanche. Desculpe a insignificância. Lia». Deu-me vontade de rir. «Que simplória!» Mas logo recriminei a vaidade: «Que candura! Sabe Deus o que lhe custará adular-me!» (Vejam como o juízo humano é incoerente).

– Diga-me uma coisa – pergunto subitamente à mulherzinha – que é feito da Juja? Conheceu-a? Ora conte...

– Um miliciano veio de noite e levou-a de automóvel!... Se é o que dizem. Sabe o sr. Doutor? Peço-lhe que não faça uso disto, que eu não sou cá de intrigas, nem eu o digo por mal. Mas foram os maus tratos da mãe, que é uma fera. A menina não podia namorar com ele, nem com ninguém, a senhora queimava-lhe o sangue só de ela chegar à janela, por uma mesnada zupava-a, assim como bate na Lia, que é uma bondosa, coitadinha, olhe deu aquele passo, Deus lhe perdoe... E agora anda lá pelos teatros, parece que a dançar. Que ela era uma estampa, lá isso... Via-os eu curvarem-se, dos graúdos... Toda a gente se levantou contra a mãe, que não mexe uma palha e escraviza assim as filhas. Em se embebedando, não há quem na ature. Até as fechava num quarto escuro, pobres meninas! Pior que o demo...

– O quê?!

– Ah, sr. Doutor, pela alminha de quem lá tem, mas é verdade. Anda toda a noite de alevanto, que lhe falta o ar, que lhe dói o coração, quem me dera um chazinho... – é mas é a aguardente que emborca. Traz sempre o garrafãozinho dela de Chèleiros, da forte... O sr. Doutor há-de ver muita coisa... Muita miséria. E não está aqui muito tempo, que lho digo eu. Então a nós arrendou-nos os baixos e não queria depois tirar-nos a cozinha?! Ora veja se tinha algum jeito! Que trabalhe... Que trabalhe como eu. Só tem gordura, a palantrona! Sempre atrelada à filha. Será para a guardar? Guardada precisa ela, a grande...

Aqui o meu gesto já enfadado, os meus olhos oblíquos tomaram uma súbita expressão de repulsa.

– Assim Deus me salve, sr...

– Não, não! – atalhei-a. – Não exagere. Bem vê, mulher de Deus, as meninas estavam todas inactivas. Estudos interrompidos. Nem uma economia, nem uma protecção... Desgostos. Lágrimas. O espectro da fome, sabe-se lá. Três mulheres... Você está a ver o problema muito mal. A Juja foi procurar trabalho, isso sim. Eu compreendo tudo muito bem. Foi procurar salvar-se. Isto devia ser um inferno. Salvar– -se , porque não? Isto era pelo menos um naufrágio. Sem previdências... Sejamos compreensivos. A D. Conceição, pobre senhora!, bebe para esquecer. Salta aos olhos! O mundo é que não perdoa. O mundo é cruel. «Trabalhar!» Bom de dizer. Mas fazer o quê? Sim, longe daqui... vamos lá.

– Com licença, sr. doutor, desculpe, sr. doutor...

Tirou o bacio da apodrecida mesa de cabeceira, um jacto de urina esparrinhou, «perdão, sr. doutor», virou costas, açodada, os pés ósseos surdamente o corredor...

– Sim, é preciso compreender. Em Mafra, a D. Conceição era dos comandos. Em Mafra, era «V. Exª»...

O fedor esparso enojava-me. Afinal, para quem estava eu a falar?


*


Da triste situação das órfãs do major Scoto advinha o meu temor. Nunca pensara em casar. Tenho sido, desde que me conheço, um espírito livre, despreocupado, prático como vulgarmente se diz, e talvez um tanto egoísta. Quanto mais vivo e experimento a vida, mais a entressonhada noite de núpcias recua no espaço e no tempo. Que pensar, por exemplo, desta aproximação da guerra? Estamos aqui no Outono – um 2º ciclo miliciano extraordinário, preparação de quadros urgentíssima. A juventude pressente. A juventude simula ignorar mas não ignora. E não receia. Aparentemente não receia. Receia, sim, no fundo do seu coração. Até que ponto poderia eu tomar compromissos graves e por que prazo? Medito sobre a evolução do mundo, na orla da floresta. Moral e vegetação deixam cair do alto grande parte da sua folhagem caduca.

Lia é uma rapariga honesta e indefesa. Há que Ter piedade pela desolação depois do amor, há que Ter piedade pelos seus anseios de legítima realização. Muitas vezes se balançaram em mim as soluções mais tumultuosas e contraditórias. «Talvez fosse um benefício» – insinuava o desejo. «Talvez um atentado» – acudia o sentimento. «Ora, não seria mesmo uma obra de caridade? «– intervinha discreta a razão. «Pelo contrário, um crime!» – gritava paladinamente a moral. «Fiquemo-nos então pelo flirtzinho romântico, bem português!» – cortava a ironia sem escrúpulo.

Acabava por achar tudo isto disparatado, turbulento, cínico, infame. Distraidamente, porém, revia os olhos da órfã: e, analisando-os, voltava a sentir no seu mistério alguma coisa de angustioso e de trágico, que ia muito além duma vulgar promessa – fácil, desconcertante. Escutava como que um apelo doloroso vindo dos medos extremos da solidão; uma súplica humana torturada, erguida ao universo imenso... Então eu desejava encontrar o socorro honesto para o seu mal. E não sabia que fazer. Era sobretudo ao morrer triste da tarde sobre o longínquo mar, donde emergiam clarões vermelhos, que eu, a caminho da pobre casa isolada, farto de marchas e mochilas, farto do sadismo moral do capitão, e cansado até dos camaradas, suportava o alarido da mil discordâncias interiores.

Mas dum dia para o outro, choveu, senti-me vexado, só, prosaico. Domingo iria para Lisboa. Podia até encontrar a Juja, há casos felizes. Mafra era o convento e o convento é uma fortaleza. Quatro mil e quinhentas portas e janelas. Oitocentas e oitenta salas. Militares, militares, militares. Uma praga cinzenta sem colorido humano. Mesmo os instrutores, onde iriam, além de escravos alegres dum destino? Desvirilizados, sem namoro, sem nada. Belos tempos os de el-rei! Que saudosos beijos na meia luz dos corredores, no veludoso escuro dos subterrâneos, na profanação excitante das celas! Aquele alcazar tão pesado, tão poderoso, parecia-me agora Ter sido levantado por uma verdadeira força sexual régia. Para esmagamento. Para domar as resistências mais sólidas, quer elas se apoiassem no temor forte do escândalo, quer no juramento rígido da Fé. Ali desaguaram os rios de ouro e de diamantes do Brasil. Que tempos magnificentes! Nos medonhos corredores, séculos depois (1938), uma lavadeira esbodegada dirigia palavrões obscenos aos magalas necessitados mais atrevidos. E iria queixar-se à companhia. Auto de inquirição urgentíssimo «... e aos costumes disse nada».


*


Eis senão quando o Guerreiro, o Pinto Basto, o Casquilho e Maia, meus velhos camaradas, resolvem no café, na noite de quinta-feira, fazer um assalto a Lisboa, Alta. Com a nossa farda de passeio, como bons «apologistas do pacifismo armado». Coisa singular; por mais que eu quisesse afastar, por absurda, a ideia de ir de um teatro a outro à procura de Juja, esquecido dos amigos e de tudo o mais, não pude consegui-lo. Mal chegámos, porém, expus o meu intento no Portugal; fui gozado, provoquei a tosse, e o Guerreiro, à saída, para demover-me, teve de recorrer ao insulto. Vencido, dei-lhe razão. Era realmente inconcebível. Acompanhei-os. Andámos naquela bairro, de casa para casa, ao som do fado. (E diga-se: Bem mal recebidos, em toda a parte. Grande desilusão acerca do valor das fardas... Nem havia ali uma verdadeira consciência patriótica). Bebemos. Uma noite insípida para mim. Ainda e sempre vexado de solidão. Lembrei-me de Lia, opressivamente de Juja, do meu pai meio calvo em Portalegre, e, ressentido de Lisboa, entristeci. A expansão do Pinto Basto, gordo, cómico, cara de menino-jesus do ano passado, parecia-me de bobo. No fundo, esperava também vingar-me do risinho triunfante e agarotado do Guerreiro. Ninguém tinha piedade de mim. Ninguém tinha piedade de nós. E o Maia? Em todo o lado, um imbecil. Por causa dos pergaminhos. Dum modo geral, todos nessa noite se me afiguravam intratáveis. O Casquilho, como sempre, uma jóia de moço: meteu-se-lhe em cabeça que havia de fazer a revolução social com uns poemazinhos alegóricos! «– Ver o homem no auge das civilizações explorado pelos outros homens! Incrível! Incrível!» e chorava com as bebidas. Debalde eu lhe gritava: «Fosses lá tu inventar a engrenagem, poeta!, em vez de amores que cantaste ao longo de milénios...» Não me ouvia, Que louco!

O Guerreiro chocava-se com a fugacidade da vida. Então a sua alegria natural lavava-se em lágrimas:» – Oh pazinhos, depois de conhecermos este universo tão vasto, tão belo...»

(E aqui para nós; vínhamos praticamente corridos dum 1º andar...)

«Havia espaço para todos em biliões de anos... Eu não queria a guerra, pazinhos, não queria morrer, pazinhos!»

Ao Maia, o que o afligia eram as grandes proibições sexuais. Raio que os parta. Abandonei-os por fim num tasco embriagados. O fado, esse, continuou a perseguir-me rua fora, ora à direita, ora à esquerda – vexatório como um irmão mendigo – nas goelas das telefonias, na tosse de uma mulher noctívaga, no andar dum bêbado (ex-lírico?) e noutras coisas mais. Desci no elevador da Glória, caí na Baixa. Desejava agora distrair-me um pouco, lavar-me da minha própria prostituição, sociabilizar-me – e ninguém entre tantas pessoas me olhava. Apanhei um encontrão, outro... Mas que madureza foi esta de vir fardado de cotim para Lisboa? Supunha ver em todas as mulheres que passavam – honestas, esquivas – um traço de Lia, do major, da D. Conceição. Uma delas seria talvez a Juja (portadora dum heroísmo ignorado!).


*


Era fatal: à porta do Maxim's , esbarro com a Georgette. Meu sangue paralisou – terrível acabrunhamento o nosso em certas horas! O náufrago sou eu, desta vez, mas ela é quem nobremente reacende a intimidade doutrora, quebrando o meu estado de inferiorização. Agradecido, tomo-lhe ambas as mãos, desviando-a do movimento nocturno:

– Sabes que me tenho lembrado de ti em Mafra? (E logo noutro tom): Puxa, que senhoril que te encontro agora! Que é isso? Tu já não estás no Apolo?

Todavia, às manifestações de interesse de que a rodeio, ela deixa corresponder com a sua carinhosa vibração de sempre. Visivelmente trespassada, por certo à lembrança do meu injustificável abandono e ofensas, ergueu os ombros dum modo bem desprezível:

– Agora... estudo. Entrei nas Belas-Artes.

Rio estrondosamente:

– Que me dizes? Há que tempos tu estudavas belas artes, Geoge! Ah-ah!

– Estás a ser cretino! Não seria então capaz como qualquer outra?!

(Jogou-me estas palavras em voz rouca, revestida de magoada seriedade. Seu lábio estendido tremia...)

– São as grosserias da «caserna»... – monologava.

Mas na Geoge há sempre um pormenor de beleza física que me domina. A gola de antílope no casaco dava-lhe um delicado ar de ingenuidade.

– Ah, Geoge, a propósito: Tu conheces uma rapariga de Mafra chamada Juja, ou Maria de Jesus? Não sei se será corista... (É filha da senhora da casa onde eu vivo).

Recuou em semicírculo – pareço estar ainda a vê-la – para lançar de mais longe o gume da risadinha sarcástica – tanto a seu jeito, quando pretendia criar ascendente, mas ascendente satânico. Mediu-me de alto a baixo, descarregou:

– Sempre essa velha mania de irresistível! E a farda ajuda-te muito, não há dúvida!

Continuou a rir, continuou a falar, creio Ter feito uso do calão (que sabia eu detestava) conseguiu humilhar-me. Insisti:

– Deixa-te de ciúmes. Pergunto-te: Conheces?

(O meu tom de voz era de súplica).

– Ciúmes? – troçou em voz alta. – Posso até ajudar-te a procurá-la. Burguesinha? Provinciana? Chamada Chucha?

Seu riso reexplodia a espaços, cada vez mais injustificado, sufocava-se para eclodir de novo, arrojei-lhe:

– Boa-noite! E parti imponentemente (porque a minha admiração por Juja era sincera).

Ela não correu sobre mim. Continuou ainda a rir. Não me prendeu. Colou-se definitivamente à noite, tomada do hálito do Maxim's. Tinha compromisso ou mudou? Não ficou ferida e escarneceu-me. Nunca eu supusera tão fundo o meu vácuo e amesquinhamento dessa noite. Incorpóreo era o drama de Juja. Sem face, o seu destino. Sem margem, a corrente para ela. Perdi enfim a esperança de encontrá-la.


*


Metendo a mão na consciência, enquanto, passeio fora, ia cuspindo o meu desaire, apalpei o lodo mesquinho de que Deus fez Adão. A obsecante ideia não queria senão dizer que, encontrando Juja e cumprindo nela o meu desejo, possuía ao mesmo tempo um pouco de Lia (sem responsabilidades) e a alma jamais revelada duma mulher perdida. Era cobarde.


*


Toda essa madrugada choveu e trovejou. Tenho isso presente, porque, faltando ao banacau, cortaram-me pela primeira vez a dispensa de recolher. Foi uma tarde de lama e de aborrecimento. Depois da refeição, dirigi-me a casa. Estava encharcado, espirrava... Fiquei surpreendido, quando, ao subir as escadas, dei pela réstia de luz no corredor. Afinal, tinham vindo de Chèleiros, acabavam ainda de comer. Digo comer e não jantar, para traduzir melhor a impressão que sofri à vista da sua mesa sem toalha, com pratos meio lambidos, e uma garrafa de tasca com algum vinho anegrado. Bastante corada, a D. Conceição pôs-se de pé (era evidente que me não esperavam tão cedo) explicou em alta voz:

– Sabe o que apeteceu hoje à Liita? Batatas com bacalhau e couves.

E a ela que lhe teria apetecido? Veio-me um nauseabundo cheiro a couves com rabos e barbatanas de bacalhau. A Lia, de lábios besuntados, de robe, um robe amarelado, feito de colcha de cama, acrescentava desnecessariamente:

– A mamã é uma comilona. Não deixou nada...

Para mim – ia dizer. Ficara talvez com fome. A D. Conceição cortou a tempo:

– Os médicos dizem que não coma muito; mas eu tenho apetite... E o meu coração anda muito escangalhado. Isto está pronto... Lia, arruma a loiça. Mas o primo vem molhado! Depressa, um cálice de aguardente, e vá mudar de roupa...

– Se me dão licença...

«E apararam elas cinco quilómetros de chuva, para quê?» – digo no meu quarto.

«É hoje!» Alvorocei-me. «É hoje». Lia chamava por mim: o altofalante tocou. Apressei-me. A alegria dela tinha ritmo. O apelo ao meu corpo, musical. Não se conteve em Chèleiros, veio mais cedo... Seria preciso ainda interrogar-me? Apressei-me.

Para notar que os lábios dela tocando os meus, traziam mais febre e os olhos mais angústia. Era necessário, sim, decidir com rapidez.

– Esta noite vens falar comigo ao corredor – ordenei-lhe em segredo.

– Ah, não posso! – respondeu dolorosamente, olhando de súbito a mãe.

Que desejaria eu mais? Ela não disse «Porquê» nem se mostrou ofendida, como uma menina fútil. E de resto eu quis obrigá-la a confirmar. Embora, devo dizê-lo, qualquer coisa no meu íntimo optasse pela recusa.

– Não tenhas medo. Vem a qualquer hora. Estarei à tua espera.

– Ela não dorme! – ciciou desalentada.

Era portanto o monstro da D. Conceição que eu devia eliminar. Aquela crónica falta de ar conservava-a, ora sentada ora de pé, sempre junto de nós, como u sino espapaçado a chocalhar as mais insignificantes miudezas. Mandou parar a música, para eu a ouvir de preferência a ela – e concluir que tinha efectivamente em Lia a esposa que convinha ao meu triunfo.

– Se soubesse o que esta alma penou para casar uma rapariga de Chèleiros...

«Por favor, D. Conceição, que poderá isso interessar-me? Só me irrita, creia. Oiça: vá até ao quintal, vá tomar ar... Deixe-nos dois minutos a sós, é o que importa...»

O mais extraordinário foi Lia Ter-se posto também a escutar todas estas ninharias com um agrado transparente, de mãos tombadas sobre os joelhos, olhos baixos, em atitude de modéstia e desinteresse, mas intervindo aqui, além, pausadamente, com voz de quem soletra, do hábito de ensinar meninos.

– Não – acrescentava, minuciosa – essa rapariga, por sinal muito interessante e muito boa criatura, foi ter comigo um dia à noite à escola, estava eu por acaso a fazer uns mapas, e confessou-me, a chorar como quem na matava, que esse tal sr. Rogério já lhe devia o sagrado compromisso da honra.

– Parou um momento para ver se eu me espantava. Sorri. «Basta! Basta!» – gritava o meu enfado. Não bastava nada. «Que fiz eu, que fizeste tu? – levaram-me mesmo a pensar: «Sabe o que lhe digo, Lia? Você é uma parva. Uma tola. Não é deste mundo. Boa noite». Apetecia-me dizer-lhe isto abertamente a ela e mandar a mãe à fava. Redondamente. Eram de morrinhanha! Mas o meu joelho colara-se ao da órfã, do lado de lá da mesa. A frase saiu-me assim:

– Em resumo, Lia, você é uma santa!

E tive um ar de quem remata, edificado. Inútil. Isto entusiasmou-as. Que horror! O Rogério e a saloia acabaram por casar e eu bocejei, não me contive. Fora Lia a madrinha.

– E os afilhados têm-se dado bem? – aventei por desforra.

Lia, chocada:

– Assim, assim...

A D. Conceição:

– Ele já por duas vezes correu para a matar...

– Ai, mamã, não diga isso, a gente não viu!

– Suponha que era verdade – tornei, intencional. – Não teria remorsos?

E aguardei como um conselheiro. Lia despegou-me o joelho, compôs-se na cadeira.

– Remorsos, não. Teria pena, coitadinha... Mas pronto, tinha recuperado a honra perdida, que era o essencial.

Toma! Reservaria a pobre virgem para mais tarde lembrar-me esta mesma obrigação? Fiquei a desejá-la sem escrúpulos, por uma espécie de raiva contra o elevado preço da sua inocência monótona e vã. Levantei-me, vergastei-as:

– As senhoras desculpam-me: tenho de ir ao recolher. Amanhã saio para Lisboa. Se quiserem alguma coisa...

Lia fez-se pálida. Dei as boas-noites, virei costas. Ela correu a fechar a porta das escadas, passou-me um bilhete, pôde desabafar:

– Preciso de falar consigo. Quando a mamã dormir...


*

Quando a mamã dormir...

O bilhete, trazido no seio desde Chèleiros, era uma lamechice. Antes da chamada da caserna, o Maia tirou-mo das mãos sub-repticiamente, correu pelas camas, leu-o alto, enquanto me seguravam. Foi um rebolanço. O poeta Casquilho elevou-se e comentou, erguendo os braços:

– É o velho espírito romântico que perdura ou que renasce!

Atiravam-se travesseiros ao ar, à corna uns dos outros, proferiram-se palavrões. Que grosseiros! Fugi, assim que pude, depois de recuperar o bilhete amarrotado. «Já o amava antes de o conhecer. E agora tive a suprema dita...» Pois sim, querida. Meti-me ao vento e à chuva, rumo aos braços de Lia, fosse para Bem ou para Mal.

Foi para Mal, escusado dizer. Porque hesitei. Só uma decisão enérgica, um rapto que fosse, podia Ter salvo Lia. Ora nem isso se coadunava comigo, nem tão-pouco es pressupunha debaixo dos nossos pés os carris do precipício. Por outro lado, surgiram nessa noite factos tão inesperados, que eu não tive tempo sequer de tomá-los como reais. Não houve um prenúncio, um palpite, nem algo por mais breve que me dissesse: «Jogarás a sorte de Lia esta noite. Apenas a lâmpada fronteira à casa tinha um oscilar que me pareceu estranho. Mas a dança de luz e sombras, na noite, tem porventura interpretação humana?


*


O silêncio, quando entrei, era absoluto. E que diferente do das outras noites! – penso. Refugio-me no quarto, pé ante pé, o coração aos pulos. Hoje não havia o roer dos ratos, nem a chiada, nem o deambular de nenhum espírito pelo corredor escuro, nem o assalto dos ladrões durante o sono. A virgem vai sacrificar: não se moverão à volta dela as misteriosas trevas. Meto-me na cama, em pijama. Poiso os olhos no jornal – e nervosamente espero... Que o meu espírito regresse de auscultar o coração de Lia e em boa hora me traga o sinal de chamamento. Nesta fotogravura, duas girls, em Londres, simulam um duelo. É um papel. Lia está lutando desesperadamente contra o terror da mãe. Ouviu os meus passos amortecidos. Diria: «Eis aí chega o amado da minha alma!» E começou a tremer. Não. Não. Era incapaz de tal. Para que correu a iludir os meus sentidos? Entre nós nada medeia além da pequena sala de visitas, de velhos móveis. Tão fácil vir ao meu encontro! Tão inefável! «Mãe, porque não adormeces? A vigília findou, é tarde. Fecha os teus olhos. Fecha-os, que a menina cresceu e quer saltar do berço, como os pássaros saltam do ninho quando tomam penas».

Passou uma hora. E talvez Lia tenha adormecido. Que derrota! Levanto-me. Uma rajada de vento sopra com violência, bate uma porta, assobia, torno a deitar-me, assustado. Não. Torno a erguer-me. «É a hora! O vento assobia: calará o ruído dos nossos passos e das nossas bocas». Arrepio-me. Tombo outra vez no leito. Sei eu porventura o que vou fazer!


*


Os olhos da D. Conceição estão fechados, mas os seios arfam, não dormem, ameaçam, são a amarra de Lia. O corpo virgem agita-se com leveza. É a doçura impaciente. As coxas descolam, o tronco roda suave. A mão direita cai abandonada. A luz da rua baila sobre o leito, risca as paredes, mostra os cabelos soltos de Lia, a face branca, a boca afogueada. E eu que, como um fantasma, atravessei a sala intermediária, como um ladrão espreito agora, pela bandeira da porta, esta dolorosa ânsia de libertação. Lia mal ousa entreabrir os olhos para observar cautelosamente a mãe. Teme-a como a um senhor tirano. Mas decidiu. Nem o medo, nem a virtude, nem a memória do pai conseguirão detê-la. Lia virá. Ei-la à beira da cama. A ansiedade dela coincide com o meu desejo. Sendo assim, porque não vem desde já? «Que patetice!» – digo enraivado. Pois não foi imprudência deixar aquele macio braço esquerdo debaixo do rosto da D. Conceição! «Vai acordar o tigre...» E a minha cegueira foi tal, que cheguei a desejar a vinda rápida da virgem, mesmo sem o maldito braço esquerdo. Há dez anos que a viúva dormiria sobre ele, não por carinho, parecia-me, antes por despotismo. Entretanto, a luta recomeçou. Lia cerrara as pálpebras, numa resignação sem limites, foi-o puxando lenta, docemente. Com aquela aparência seráfica, quem havia de dizer! Nisto, que fatalidade!, a mão esquerda da D. Conceição ergue-se por si própria, tacteia no ar, tomba sobre o pescoço de Lia. Pavorosamente. Mesmo a dormir, o polvo agarrou a presa.

Outra vez a imobilidade de Lia me desalentou. Era inútil. Tudo se arvorava contra nós.

Depois... foi, o até aí desejo: o irreal, o inesperado. A medonha mão escorregou. Lá fora sumiu-se a tempestade. Morreu o oscilar da lâmpada. Eu abri a porta sem nenhum ruído. Lia estremeceu, reconheceu-me, ergueu-se como um autómato, veio para mim extremamente pálida e não proferiu um som. Penetrávamos na frescura dos momentos virgens, para além de todo o humano poluído. Tomei-a pela cintura, suavemente, demos pela sala dois, três passos cautelosos. A sua boca exigiu de pronto a minha. Beijou-me vorazmente, de pé. Dei-lhe o apoio da parede, pensava en entontecê-la e levá-la num instante ao meu quarto. Com as mãos, percorri-lhe o dorso, desapertei-lhe o robe, toquei-a. A sua sensibilidade elevara-se instantaneamente. Lia agarrava-me com aflição, com violência, olhos abertos, olhos fechados, precipitando a consumação. Embora agitada pelas contorções, exigiu de mim uma promessa:

– Não me esqueces nunca, pois não?

Tanta candura chocou-me. E talvez da excessiva fragilidade de Lia viesse robustez à minha consciência. Eu estava mesmo receando que a sua respiração ofegante, ávida, cortada, despertasse o monstro da D. Conceição – quando, de súbito, o corredor rangeu. Ficámos gelados. Hirtos. Ouviram-se distintamente passos. Lia ia gritar de emocionada. Sacudi-a rapidamente, indiquei-lhe a porta do quarto dela, impus-lhe: «Vai!» Brilhou uma luz trágica nos seus olhos, encaminhou-se como sobre um gume – dir-se-ia sonâmbula, desfigurada. Ouvi o ruído do leito (eu ainda não respirara), a voz da D. Conceição perguntar bastante surdamente:

– Que tens tu, filha?

– Nada, mamã.

E caiu tudo no silêncio dos momentos honestos. O meu pasmo foi absoluto. Encostei-me a qualquer móvel, atordoado. Não sei que tempo me foi necessário para poder ver as coisas deste modo: «A D. Conceição não saíra da cama. (Foi ele!) Acordou ao contacto de Lia. Foi o espírito do pai. Foi ele. Sempre me parecera andar por ali errante... Veio salvá-la! «E fez-se dentro de mim como uma satisfação, por me Ter evitado a queda num abismo. Era realmente um crime.

Senti no rosto o suor arrefecer e se, providencialmente, não tenho deixado o candeeiro aceso no meu quarto, ficaria petrificado ali. Estarrecido. Reacendo em mim toda a coragem, vou-me cambaleando. Mas, oh céus! Ao chegar à porta, o inverosímil atingiu o auge: A Georgette descalçava placidamente as luvas pretas e pousava-as no mármore da mesa de toilette, como uma dona! Estão a ver o meu espanto e repentinamente a raiva. Só um ser diabólico e misterioso seria capaz de tal loucura. Foram os passos dela que impediram a necessária realização. Emudeci. Vi no seu vulto algo de sobre-humano – espectral – e isso tolheu-me de estrangulá-la. Um momento se observou reflectida no espelho. Usufruía ela própria o efeito da aparição? Seria em realidade eu, acordado, e a Georgette palpável e carnal? Aproximei-me duvidando. Ela estendeu-me a sua mão segura, balbuciou:

– Boa noite.

Não respondo a tais palavras, visivelmente receoso do seu significado, mas prendo-lhe os dedos para reconhecer se eram de facto os dela. E atiro-lhe (dramático):

– Meu Deus!, mas que disparate é este? Tu endoideceste, pela certa. Este quarto, julgas tu, é como qualquer outro de Lisboa! Diabólica! Diabólica! Um dia perco-me, rebento-te!

Não a intimidei. Pelo contrário: ela disparou um sorriso muito calmo, muito amargo, poisando o olhar frio na minha indumentária. Eu estava de sobretudo e de pijama, um tanto ridículo. Em seguida, explicou, devorada duma maior tristeza:

– Hesitei muito antes de vir aqui. Irás julgar mal. Mas... Sabes? Colhi informações a respeito da rapariga que te interessava. E senti hoje uma vontade angustiosa de vir trazer-tas. Não tenciono demorar-me. (Sentou-se na cama. Que bem que representava!) Mandei o carro esperar apenas por uns minutos.

A léria de sempre. Sirvo-me do meu cinismo:

– Muito bem. Simplesmente, eu não queria que te maçasses tanto. (E para ver o fundo da sua intenção): Mas enfim, vieste no momento oportuno. Se quiseres, poderemos ficar aqui esta noite os dois...

Traçou a perna morena, sorriu:

– Lembras-te, à porta do Maxim's? Não era a mim que procuravas. E agora donde vinhas nesse estado?

– Era a Juja, de facto. E então, falaste-lhe?

– Não lhe falei. Mas diz: donde vinhas?

Não respondi. Detive-me a olhá-la. Tudo nela me intrigava, até a moderação no uso do bâton, e como que uma beleza estranha, uma outra seriedade. O lábio, com a febre de outro tempo, contraía-se-lhe numa amargura desusada. E parecia-me cada vez mais profunda tal tristeza: no alongar dos olhos, na indolência dos gestos, na palidez crescente... – até que por fim confessou, anelante, enternecida:

– A Juja... morreu.

E tombou no travesseiro, sufocada. «Era ela!» – acode-me nesse instante tardio. «Era possível?» A Juja com o nome de Georgette? A órfã dum parente meu, a aventureira?» A que eu amei e escorracei como uma escrava?»

Se o lesse, não o acreditava. Havia de parecer-me um disparate, até num sonho. Todavia a Juja estava ali: desiludida, soluçando sobre a sua ruína, de alma nua, retalhada.

Pus-me a acariciá-la como a uma irmã infeliz. A beijar-lhe as mãos que foram as da Juja, antes da prostituição. Em seguida, a testa, os olhos tristes e húmidos. («Burguesinha? Provinciana?») Essa Juja... morreu. Para que procurá-la pelas ruas ou pelos teatros? Apetecia-me a mim chorar. Estávamos na mesma cama, ao lado um do outro, sem um desejo. Uma desconhecida angústia paralizava-me.

Daí por momentos, começou a afagar-me os cabelos, agradecida, e quis saber da Lia, da «mamã», de como eu viera para ali, se elas tinham para comer. E a propósito: «Ainda havia figos no quintal? Ah, como a ela lhe lembravam por vezes aqueles figos!»

– Calculei imediatamente que, estando aqui em casa, Lia, com aquele pobre temperamento, havia de gostar muito de ti. Vim até... como direi?, não sei que medos me trouxeram! Porque não casas tu com ela? É uma santa.

– Pois é.

– Eu sei. O caminho da santidade não conduz ao casamento...

«Aquele quarto era antigamente do «papá». Sabia que viria encontrar-me ali...»

Arremesso a primeira pergunta ao seu novo rosto:

– Tudo para mim tão confuso, querida! Como é possível estarmos hoje aqui, e tão diferentes, um do outro, do que fomos! O teu segredo, tão fundo, tão grande... Como pudeste sempre ocultar-me? Tu sabias de mim!

– Sempre soube de ti!

Mas depressa ela refaz a sua alegria – breve alegria! – e, agitando uma pequena chave suspensa duma fita de seda, diz-me, mimalha, em voz de menina:

– Esta casa é minha! Foi onde nasci...

Lágrimas alegres borbulhavam-me. E num momento tão belo o maldito klakson chamou, do silêncio da noite, a distância insuspeita, e eu apresso-me a prendê-la, como à própria vida que me quisesse fugir:

– Não vás embora, peço-te. Agora sei que te amo. Ah, eu nunca te vi tão...

(Bela, adorável... Todos os qualificativos me pareciam inapropriados).

– Tão... digna do meu carinho! – acabei por dizer-lhe.

Ela ergueu-se emudecida, dominando esse instante feliz, foi calçar as luvas pretas. Tomo-lhe ainda os ombros, e não já senhor de mim, por certo:

– Não vás embora, Juja, suplico-te. Quem morreu, afinal, foi a Georgette.

Do fundo da sua alma, recrudescia apenas a palavra surda:

– Impossível. Impossível.

– Porquê? Porquê? Ah, sim. Não me perdoas. Que horrorosas faltas cometi contigo! Mas sem saber... Esquece tudo. Acredita-me: Só agora te vejo como um ser humano!

Voltei-a para mim, quis abraçá-la, com estertor pôr termo ao meu remorso.

– Não, não. Seria a morte de Lia! – reagiu.

Desprendeu-se de mim – tão facilmente! – refugiou-se no corredor, como uma sombra leve.


*


Tombam-me os braços. Da janela vejo-a caminhar lentamente em direcção ao carro, tornar-se irreal, voltar-se uma, duas vezes para o quarto da D. Conceição (para o seu, de adolescente!), perder-se de novo do que foi aqui, ainda agora, e a sinto eu já tão longe, no passado irreversível...

E ali fiquei – vazio, mesquinho, amarfanhado – a ouvir o rumor do mar...


*


– Vai! – digo na manhã seguinte, após os exercícios a um qualquer soldado. – Pergunta pela viúva Scoto, que te dê a minha mala e leva-ma à Pensão Moderna. Depressa!

Depois de muita explicação, lá desandou.

O nervosismo fazia-me esperar girando por perto do Convento, da estrada para o jardim, do jardim para a estrada. Camionetas passavam carregadas. Nunca, como nessa hora, desejei tão ardentemente partir para o imprevisto – com dinheiro cambiado para gastar nos portos. A minha desolação era semelhante à daquele campo de tennis que encimava o jardim, na orla da floresta, e que a noite enchera de folhas mortas e de poças de água e lama. O infalível outono! A Juja deixou sobre a mesa de toilette um envelope anónimo com dinheiro, não sei se por esquecimento, não dizia. Misteriosa criatura! Quem sabe... Não seria a primeira vez que ela lhes vinha trazer dinheiro a casa! Eu deixei noutro envelope, com uma breve explicação, a renda de dois meses de quarto. Fiquei praticamente desprovido. (Mandaria um S.O.S. a Portalegre). Desisti de Lisboa. O coração pedia-me, naturalmente, que eu corresse em busca da aventureira. E rompesse com todas as convenções sociais. Quem me dera ânimo para isso! De qualquer modo, acabei por considerar ainda inoportuno proporcionar-me a um reencontro da Juja com brevidade... Precisava sobretudo de descansar, reflectir... Tinha medo da minha exaltação, do meu amesquinhamento, do meu malogro.

Longe de supor, evidentemente, que surpresas bem mais graves se emboscavam contra nós. Com a vinda da mala, instalei-me no novo quarto, mas, durante algum tempo, sofri a preocupação de que me faltava qualquer coisa, fosse o que fosse, não sabia precisar. Tinha o cérebro arrasado. Ralei-me, consumi-me. Esta obcecação que a gente tem de percorrer os bolsos, uma, muitas vezes, a olhar para os objectos, puxar pela memória, e... nada. Aflição, só aflição. Tendo-me, porém, encostado sobre a cama a rever cenas, as mais diversas, lembro-me inesperadamente: «O anel! A safira! Ficou-me no lavatório...» Salto num pronto à rua, envio outro soldado... Em vez do anel, todavia, ele trouxe-me uma resposta pouco leal da D. Conceição. Em suma: tudo quanto de miúdo se averiguou não fez senão gastar muita tinta e o anel afogar-se em papelada, cada vez mais. Lá aparecer, pois sim! Nem sequer me lembro se ainda o tinha ou não na altura de lavar-me pela manhã. De resto nunca dormia com ele. Paciência. Valia oitocentos e tal escudos. Eu servia-me dele em certas emergências. Para mais andava na família desde o casamento do meu bisavô materno. Mas a minha grande ralação não advinha já de qualquer um desses valores: advinha, sim, do mistério (em si mesmo) dum tal desaparecimento. Era lá possível que tivesse sido a Juja! De facto, muitas vezes em Lisboa ela mo tinha namorado. E agora compreendo, Juja, porque mo louvaras tanto, desde que soubeste que era uma jóia de família. Chegaste um dia a dizer «O nosso querido anel de família», sim, e eu relacionei a tua frase com as reles questões de dinheiro quotidianas! A tua inteligência e intuição eram muito superiores à do comum numa corista. Que surpresas me reservas na profundidade do teu ser!

Pois em. Os dias decorreram. Embora com o quarto na pensão, eu continuei a comer na messe por economia, convivendo um pouco mais com os camaradas: no café, na estrada, nos próprios corredores do Convento.

– O que mais me custa a gramar – dizia uma vez um tal Paulino (madeirense) – sabem vocês o que é? Não é o capitão, nem a mochila, nem as aulas de balística: é a falta de mulheres. Caramba!, há mil e tal homens no quartel... E cada um que se arranje! Esta noite tive uma deixa... que desconsolo!

Começou a constituir para nós grande alegria que a filha dum sargento, toleirona, entre criança e mulher, dum apetite quase perverso, se cruzasse connosco m qualquer parte e sorrisse ao nosso olhar. E mais. O capitão chegava, mansa, solenemente, de bicicleta, às seis horas e meia em todas as manhãs úteis. Chovesse ou fizesse sol, era indiferente, formávamos na parada para bater-lhe a continência, assim que ele montasse à nossa frente. E lá íamos atrás da montada a toque de tambor, em coluna de esquadras, equipados, suados, impensados, rumo ao «teatro de operações», para os quintos da Mata Grande. Àquela hora já duas ou três elegantes passavam para o tennis, em seu sapatinho branco e morena perna ao léu. Como elas sabiam compor tão bem o seu interesse por algum de nós!

Oh, maldita ofensiva! «– Atirem-se para o chão em intervalos curtos e rápidos... Aproveitem o terreno...» O terreno estava encharcado, cheio de tojos. Ao fim da instrução da tarde, o que apetecia era dormir, porque a soneca nas aulas não bastava. Mas precisamente nessa altura a élite andava-se espanejando pelo macadame, e nós ficávamos por ali como uns famintos. Um que outro grupo de três ou quatro meiguinhas andavam para lá, para cá, naquele ingénuo ar de quem saiu a espairecer as nossas lides. Tinham ainda vivos os papás. Oficiais. Superiores nossos. (Noutro tempo fora Lia uma delas. E Juja). Vinham por aquela estrada lisa... Não ignoravam que os cadetes deste ano haviam de partir tão saudosamente como os do outro e do outro ano, que prometeram voltar e não voltaram. Mas valeria a pena relacionar? Elas assistiam assim à nossa curta estadia em Marfa, com mais alguma esperança do que as filhas dos chefes das estações assistem à passagem dos comboios.

E todavia – observava eu comigo mesmo, – se algumas destas figurinhas para quem a vida ainda não foi cruel, que sabem jogar o tennis, flartar, sorrir e talvez bordar, talvez fazer carícias, que aprenderam a pintar os olhos e os cabelos, e exibem i nome de leite – Mimi, Mideu, Midá, Bina, Lili, Fifi, Juju, Lulu... – e procuram para tudo o mais um «bom rapaz trabalhador», se alguma delas reparasse no infortúnio de duas antigas companheiras, órfãs do major A. N. Scoto, amigo de seus pais...

– Já tem convite para o baile de Sábado? – interrompeu-me mais ou menos nesta altura um desses grupos.

– Que baile?

– Um baile em vossa honra, oferecido por nós... Pois onde anda você? – dia a mais loira, a Binita, que já me tinha sido apresentada como «a rainha da simpatia» da Ericeira. E era um amor.

Logo uma Segunda, rindo:

– Não se fala noutra coisa!

As duas restantes, em alternativa:

– É verdade: foi ao senhor que roubaram um anel? E depois? Apareceu?

Stou sprêrando... – gracejei.

– Sabe o eu consta por aí? – perguntou a Binita.

– Ó menina, por amor de Deus, não irás dizer. Talvez seja mentira – armam as conheiras.

– Diga, não me importo – insisto.

Levaram alguns minutos fingindo-se escrupulosas. «Ai, não, havia eu de julgar que era má-língua!» Mas acabaram enfim por insinuar:

– Que talvez a viúva Scoto, por... necessidade...

E sorriram todas quatro, superiormente!. Não as odiei: Tinham aquela tez doirada que tanto estimo! Daí a pouco, ao formarmos para o jantar, um primeiro-sargento cadete, que era natural de Mafra e andava portanto ao corrente, conseguiu ser mais explícito:

*


Pouco a pouco a minha inquietação tornou-se insuportável. Para mais, eu tinha defronte do novo quarto um excitante singular. Uma rapariga de pijama. Nada mais. A toda a hora que me pressentisse, ela abria a porta da varanda, dava-me um ar da sua graça, cirandava como uma andorinha feliz, compunha-se e descompunha-se ao espelho, sacudia o paninho de limpar, espreguiçava-se com languidez no maple, assumia, ao baixar-se, as mais provocantes atitudes. Cantarolava músicas de jazz. As últimas. Exibia o seu gosto pela dança turbulenta. Aparecia no torreão toda explosiva – como um foguete que rebentasse no ar – chamava-me com uma tossezinha seca. Entretinha-se no rebordo da janela a ler (fumo do foguete que se dissipava).

Esta rapariga de pijama era casada. Fazia aquele jogo todo de propósito, desafiando a minha mansidão e castidade, fazia-o perversamente. Oscilava como um pêndulo entre sentimental e cabeça louca. Às vezes ria alto com as piadas do jornal. E ainda uma vez a vi chorar.

Quanto aos recursos da pensão, a nossa criada de quarto era bastante gorda e sanguínea, mas muito jovem. Ainda assim, quando eu lhe estendia a mão desrespeitosa, ela punha-se nos bicos dos pés, alvoroçada, capaz de rebentar:

– Chamo já o patrão! Faço já barulho!

E despejava um pouco de discurso, escada abaixo, em que me chamava «indigno»! Abandonava-me à porta do quarto o jarro da água quente.

– Entre! – berrava-lhe eu, de dentro.

– O senhor é «indigno»!

E rebolava pelas escadas, apressadamente. O patrão, que era ainda novo e forte, começou a olhar-me com rancor. Podia eu, nesta situação, deixar de lembrar a Lia, a Juja, outras mulheres impossíveis?

É certo que Lia, oito dias depois da minha fuga, me escreveu uma lastimosa carta a que eu não dei resposta. Que poderia eu responder-lhe, depois de tudo? «Embora nenhuma importância lhe tivesse merecido o meu primeiro bilhete, pois o deixou abandonado ao retirar-se – escrevia ela – não estou melindrada, como talvez suponha. Estou-lhe, sim loucamente dedicada e sou e serei sempre a mesma, enquanto viver, se viver». O cabo dos trabalhos, é o que era. «Resta-me a esperança de que Deus venha um dia a dar por mim, já que tanto me tem esquecido e acrisolado (!) num mundo tão incompreensivo, tão expiatório, e nos permita unirmo-nos eternamente na mesma Felicidade suprema. Assim seja». E ainda: «A nossa casa continua ao seu inteiro dispor, dê-me a ventura de o tornar a ver».

E não obstante – ou como era de prever – tais apelos endureciam-me, nauseavam-me. Lia não passava dum remorso que eu desejava extinguir. Atendendo a um nervosismo natural, optei pela ida a Lisboa em busca da aventureira. Foi uma questão de honestidade. Novo apelo me despertava para ela, um aliciamento indefinível e saboroso. Como Juja o fizera noutro tempo, era eu agora quem entrava nos cafés, nos dancings e alongava os olhos... Desesperadamente. Antes de jantar, subi a Rua do Salitre a pé, a garganta a arder. Infligia-me a mim mesmo algum castigo. Muito mais tarde, achei-me de ronda à porta do velhote rico, quando este mesmo saiu, me olhou e fez o favor de elucidar-me espontaneamente, não sem compaixão:

– O senhor... desculpe-me: mas ela já aqui não vive. Anda para aí com um tenente...

A perversidade do velho, os seus olhos empastados de água, engomados, o inesperado de tudo – obrigaram-me a simular uma indiferença dolorosa. Eu esforçava-me por rir, mas que riso horroroso! Fui beber, beber, arrastei ao Maxim's o que me restava de mim, voltei a sair, lancei-me numa aventura hedionda. Ah, era preciso libertar-me da influência da Georgette (da influência de todas as mulheres em geral). Eu não passava dum rato na sua boca de gata. Ela me jogava ao ar, a seu prazer, me apanhava de novo com a sua garra! «Andava para lá com um tenente!»

Regressando ainda essa noite a Mafra, pude apavorar-me diante deste singelo quadro regionalista: Uma rapariga cega cantava coisas tristes à guitarra. As mesas cheias de fardas agaloadas, poucos comerciantes, muitos colegas meus. E os olhos lúbricos desta gente toda cravados na rapariga que tinha as pupilas brancas de névoa e inspirava dó. Muitas palmas, frases abafadas: «Boa perna! Bis! Bis!»

Olhos que deviam cegar– os desta gente toda; olhos que deviam ver – os da pobre cantadeira!


*


A vida de Lia não sei quem lha jogou no berço. Mas o mundo desabou sobre mim na noite trágica, gritando "aqui d'el-rei que a matou e por um motivo fútil!» – quando o motivo imediato não fora senão o inevitável sinal de execução. Tudo tinha sido estruturado, determinado com a antecedência imparável que prepara o aroma dos frutos. Como uma velocidade que adquirida rampa abaixo, só ao fundo, e ao mais ligeiro obstáculo, nos precipitou no irremediável. Não conseguiria dar a mim mesmo outra explicação para o que se passou entre mim e Lia na noite factídica do baile. Jurei eu alguma vez gostar de Lia, ou fiz-lhe promessas vãs? Não a seduzi. Não elogiei sequer as suas mãos fidalgas. Como pôde a pobre virgem ir a pontos de colocar a aceitação ou a rejeição do seu amor num plano de vida ou de morte?

Eu dançava com a Binita, que é uma beleza pagã, e fazia-lhe uma pergunta indiscreta. «– Não escolherá hoje um noivo, num ingénuo, entre estas três centenas de candidatos?» – quando Lia apareceu, com a «mamã». Trazia um vestido branco, um rosto branco, um gesto branco – tudo a realçar o negrume dos seus suplicantes olhos. A música sumiu-se, para mim, quebrou-se o ritmo dos meus próprios passos. Ficou aquele olhar de angústia, incómodo. Mais carregado. E tive medo dela e de mim, acabava-se tudo.

A Binita, acertando o passo:

– Engana-se: o casamento por enquanto não me preocupa. Preciso viver a vida, antes de mais nada. Sou uma rapariga modesta. Não tenho ambições. Mas se um dia encontrar um rapaz com algum futuro e que me estime...

– E se não encontrar?

(Mas não era este aparecimento de Lia uma coisa bem extraordinária? Começava a perseguir-me! Até a D. Conceição, como foi possível?) A Binita agastava-se:

– Que diz você?

– Que concordo em absoluto – respondo sem nenhuma ideia. E acudindo-me uma, de repente: – É claro, Binita, isso não é uma declaração. Você sabe que eu tenho algum futuro e que seria capaz de estimá-la, como... (volto a olhar para Lia e sou surpreendido pela Binita) assim como a... a uma coisa preciosa.

– Assim como a um anel de safira, não é verdade? Ah-ah!

Entupi. Demos mais alguns passos. O meu espírito, travou-se imediatamente o diálogo inadiável: «– Porque não respondeu às minhas cartas? A mamã sabe de tudo, por isso acedeu a vir aqui. Se soubesse quanto eu tenho sofrido!» «– Mas que loucura, Lia, e tão injustificável! Eu nem sequer gosto de si. Tive apenas piedade... Perdoe-me!» Tolice. Que lucrava eu em ser violento? Diria: «– Desculpe não ter aparecido. Os exercícios, as sebentas... Cansado, muito cansado! Melhor, exausto!» O fox terminou. Um momento acompanhei Binita. Refugiei-me no salão de fumo. Se eu me fosse embora? Ir para Lia era o mesmo que sacrificar Binita, iodada, a que tinha bebido o sol. Viçosa, a escorrer a espuma e a luz da Ericeira, a escorrer alegria, a escorrer luxúria. Tomo não obstante a direcção da porta. A meio do corredor, há um varandim aberto. Ali fico, por instantes, a olhar a simpleza da vilória, que só este baile dos milicianos veio alertar. Estamos na sede dos Bombeiros Voluntários. A humidade da noite dissuade-me: «Bem burro! A paixão de Lia até me impõe! Regresso, entro no bufete. Os homens acotovelavam-se.

– Um cálice de Porto. Perdão: de anis. «– Boa noite. Como estão??» Fazer-me cínico, diplomata. «– Oh, sente-se um pouco, venha cá!» – diria a mãe. Havia trinta raparigas. Tinha que abandoná-las todas: aquela de olhos verdes, aquela morena... A própria Binita, a de braços nus doirados. (E agora, eu descobria: ela, esta noite, lembrava-me vivamente a Georgette da 1ª Hora – quando nos conhecemos numa das festas do I. S. Técnico). Pois bem. A música recomeçara. Um tango, salvo erro. «Deixa ver as a Lia vai dançar...» – espreito. «Que não!» responde à turba. Os olhos dela correm ansiosos pelo salão inteiro Talvez tivesse tido: «– Estou comprometida» – já contando comigo. Devo eu ir? É horrível!, não suporto esta luta no meu íntimo. Próximo de mim, duas senhoras idosas murmuram: «– Um rico vestido...» «– Se calhar... do anel!» Volto ao salão de fumo, enterro-me num sofá. Sinto nojo de mim mesmo. Espanto o Guerreiro, que se aproxima:

– Deixa-me! Estou cansado, nervoso!

– Tu tens conseguido dançar?

Dezenas de rapazes protestavam contra este baile «em sua honra (!) com meio dúzia de meninas caras». Muito fumo no ar. Pouco a pouco, fui distinguindo entre as outras a voz do professor de táctica, o alferes Correia:

«– Evita este escândalo, Vieira. Trata-se de um camarada Seria infame...»

«– Ainda não houve nada, garanto-te. Mas como resistir, caramba! Não posso. Ela agarra-se. Não lhe vês o olhar... mordente? É superior a mim. Ontem mandou-me chamar. Falou-me num camping,

longe daqui. Que hei-de fazer?»

Por toda a parte o conflito, a grande luta. O desespero de Lia vem do salão, amesquinha-me, arrebata-me. «Não tinha outro meio de voltar a ver-me. Recorreu ao caso extremo. Só por cegueira! Suportava eu o fardo, toda essa noite? (Bem sei: o desinteresse torna-nos indelicados). Mas esta D. Conceição quem a transformou? Parecia inacreditável. Não foi uma súplica de momento: Lia fez o vestido, teve tempo, houve premeditação. Com o dinheiro da Juja, que ironia! Também elas se deixam corromper! Nem ao menos lhes teria chegado o boato de «anel no prego?» Não faltaria agora quem o confirmasse.

Todavia, neste momento, era já a velocidade da descida que nos arrastava a todos três para o precipício. Na verdade se passou tão rápido e tão simples, como uma avalanche que se solta e se despenha. Muito tempo depois, o Pinto Basto estacou à minha beira, barafustou:

– Uma lambisgóia que para lá está de branco não dança com ninguém. Que veio ela cá fazer? Não me dizes? O melhor é dançarmos nós; os homens, uns com os outros... Somos um bando de esfomeados!

– Que tenho eu com isso? Vai lá berrar para o diabo...

– Berro para ti, é o mesmo. Anda beber um copo, que isso passa-te. Consideras-te «irresistível», queria-te lá ver ir agora...

Isso fez-me sorrir. Estava o Guerreiro (com a sua face apontada à alegria), estavam muitos outros. Decido-me. Não penso senão em esmagar o Pinto Basto. Dei-lhe, para começar, uma pequenina cotovelada na pança. Tudo o que de sombrio existia em mim se desvaneceu por momentos. Estendo-lhe a mão:

– A uma garrafa do Porto...

– Pronto! – aceitou bruscamente. – Se a de branco dançar contigo...

E fixou testemunhas. O Guerreiro rebentava de riso: hoje pusera a face rubra do optimismo. Caminho para a sala, comandado de fora de mim. Fora eu próprio dono do meu acto, o aspecto seria bem diverso, e eu saberia colher-lhe o significado. Teria perdido, na vez duma, mil garrafas do Porto, se eu fosse nesse instante alguma coisa mais do que o simples homem que apostou dançar com a de branco. Um homem sem passado, nem experiência, nem remorso. Nascido num maple, pouco antes, para dançar com uma dama esquisita qualquer de quem nem sabia o nome – com «a de branco». Pois bem. Eu fazia parte da confusão da sala. A orquestra pôs silêncio com as pancadas do costume. Ansiedade. Província. O violinista, mostrando o peitilho tão bem gomado:

– Uma valsa à inglesa, a pedido: Danúbio Azul.

Algumas damas avançaram. Um momento eu vi o vestido branco reflectir-se, rodopiante a meu mando, num remanso de água entre ramagens de árvores exóticas. Depois, a cara meio ébria, meio menina do Pinto Basto, a garrafa do Porto a bailar: «– Chegas-te para mim, ladrão! Parabéns». E fio sentindo o corpo, a alma de Lia nos meus braços. Muda, com pressa de falar e sem se atrever. Confrangedora, lamentável – a sua boca.

– Tem-se divertido muito? – pergunto mecanicamente.

– ...?

Estrangulou-se-lhe o que quer que fosse. Apressei-me a socorrê-la:

– Deve estar magoada por me ter mostrado só agora...

– Já não estranho. Começou por não dar nenhuma importância ao que escrevo...

Trocou mais uma vez o passo. Falara num tom enfático. Toda a gente estava observando a nossa atrapalhação. Tive vergonha. Deixei frivolamente Lia desabafar.

– Agora, outra fatalidade. Vão-me tirar do posto de Chèleiros, a mamã bateu nuns miúdos que me faltaram ao respeito. Aquela gente por isto foi aos arames. Já depuseram contra nós, que não ensino nada, que as crianças não fazem exame, e mais coisas... tudo inventado! Demais a mais o inspector antipatizou comigo. Não me falava nenhuma vez que me não fizesse chorar. Eu não me dava com ninguém, o primo sabe. Foi por isso. Não tenho feitio. Chamavam-me tola, vaidosa. Agora não sei o que vai ser de nós...

O movimento da dança tornou-se outra vez mecânico. As pessoas à volta, cada vez menos presentes. Esforçava-me por aderir à música. E sem uma palavra de conforto, eu perguntava a mim mesmo, cruelmente, porque se vestira Lia de seda e viera reaparecer na sociedade, atrás dum temperamento como o meu.

– Mas há males que vêm por bem – conseguiu ela de novo articular. – A mamã consente no nosso namoro e não se opôs a que viesse ter consigo.

– Para quê? – digo brutalmente.

Outra vez a sua angústia me aniquilou. (A orquestra não acabava mais!) Esperei que Lia se debatesse para me perguntar longinquamente:

– Será possível que...?

Rebentaram palmas. (Finalmente!) O violinista inclinava-se, satisfeito. Encontro os olhos garços da Binita. O Danúbio recomeçou. Que maçada! «Não. Vou desenganá-la por uma vez. Agarravam-se então a mim como náufragos, para que eu lhes sustentasse a vida inútil! A «mamã» deixaria de velar, de deitar o rabo do olho, de queixar-se da sua crónica falta de ar e do coração escangalhado, enfim, entregava-ma, contanto que ela vivesse e tivesse pão. Que infâmia! Talvez até contasse com a protecção das leis. Como não acreditar agora que fosse essa mesma D. Conceição a ladra do anel? Estaria ao menos a dormir na nossa última noite?» Lia era a virgem que respirava com violência. Perdida. Ofegante. Lembro-me disto e olho-a para renovar o meu desejo. Para conceder-lhe o meu perdão. Mas os seus caracóis pretos cheiravam-me a queimado, o seu pescoço dum amarelo de fome contrastava com o empoado do rosto leitoso. A Binita, com a frescura irradiante do seu corpo nado ao sol, deu-me um breve encontrão, afoitou-me, sorriu. Nunca a pobre Lia me pareceu tão amortecida e indigente e a Binita tão luxuriosa, tão bela!

Nisto, deu-se esta minha reacção infame que me horroriza: (Lia pousou no peito a sua mão esquerda – e a safira brilhou!)

– O quê, Lia, foste tu que roubaste o anel? (E ponho-me a arrancar-lho abruptamente – como foi possível fazer tudo o que fiz? – que nem a um bandido ordinário!)

Os fados tinham-no determinado. A música acabara um segundo antes e a frase estalou como bomba em plena sala. Acorreram de todos os lados, rapidamente. Reconheço então o meu desaire – maldito egoísmo o da nossa idade! – a intensão afectiva de Lia – É o símbolo do amor persistente, não é mamã? – mas já não havia remédio. Verde de cólera, o monstro da D. Conceição tinha acorrido e atirou-lhe um murro pesado à nuca.

– Desgraçada!, que aviltaste as cinzas do teu pai!

O redemoinho foi instantâneo. Lia precipitou-se como louca no corredor. A sombra negra da mãe correu ainda em pós dela avassaladoramente. Tantos homens, tanta gente, e a ninguém ocorreu detê-las. Parados, boquiabertos!

Alguém agarrou por fim a D. Conceição.

(«– Imaginem, por causa dum anel!, por uma coisa tão reles!

– Foi a vergonha dela, coitadinha!

– Foi o que tinha de ser!»)

O varandim aberto permitiu o salto imprevisto, trágico: e Lia veio estatelar-se em baixo, como uma ave de asas quebradas!

Um grito de alarme – profundo, inesquecível – se perpetuou nessa noite...


*


«– Foi aquele, aquele cadete!»

«– ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...»

«– Ele aí vem... Malandro!»

«– ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...»

«– Por uma coisa de nada!»

«– Coitadinho de quem morre!»

«– ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...»


*


(Estas vozes que irão perseguir-me pela vida fora! Sou eu acaso o responsável por tão complexo fluir de acontecimentos! Eu, o autor da santidade de Lia, da ociosidade enferma da D. Conceição, do sonho de libertação de Juja? Criador das minhas próprias limitações? Que me acobarda então de casar com a Georgette? (Seria esse o meu desejo secreto.) Como somos incoerentes na avaliação das acções humanas! Como impotentes perante forças que nos transcendem! Muitos, à simples ideia de abandonarem o mundo, oiço eu ganir como cães magoados. Todavia o homem não sabe senão supliciar-se, com novos pesares e acusações.

Ora a conduta humana, acreditem-me, está à mercê de circunstâncias ignoradas e exige de pronto um exame minucioso, uma pronunciação mais justa. Só então valerá a pena defender a vida.)


*


Foi tudo isto no Outono, e as andorinhas chilreiam já pelos beirais. Para bem da verdade, devo dizer que os enfermeiros conseguiram salvar a Lia. O ter recebido o seu comovente perdão há poucos dias, com a notícia dum restabelecimento para muito breve, animou-me a contar-vos estas tristes e ponderáveis coisas. A mãe, essa, coitada, é que não resistiu a um enfarte cardíaco naquela factídica manhã. Agora, pois, nos surge uma interrogação mais grave: Que vai ser de Lia, ao sair do hospital com o coração de luto, sem a protecção de nada e de ninguém, inocente como de há longo tempo a vemos, e restando-lhe da família apenas uma irmã corista? Irá a caminho de Lisboa? Rumo ao que Deus quiser?

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

O melhor – não acham? – será eu levar maus pais a oferecerem-lhe um qualquer leve serviço em nossa casa! Ou: ela ficar de enfermeira, se possível, nesse mesmo hospitalzinho em que foi tratada e a salvaram. (Achei-o muito acolhedor, naquela noite, quando lá corri a dar-lhe sangue para transfusão...)

Espinho, Março de 1939

Tradução inglesa de John Byrne

Reprodução com a autorização dos herdeiros de José Marmelo e Silva.


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