Matilde Rosa Araújo

O UNIVERSO POÉTICO DE MATILDE ROSA ARAÚJO

A poética do Matilde Rosa Araújo* organiza-se em torno de três grandes temários (que, por sua vez, atraem temas afins): a infância dourada, a infância agredida e a infância como projecto. Um outro eixo merece ser considerado: a vida de Tua, da infância à idade adulta. Trata-se de uma linha que atravessa, um especial, os dois primeiros livros (O Livro da Tila e O cantar da Tila), devendo ser perspectivada na sua relação com os temas mencionados

O Livro da Tila (1ª ed., 1957; 18ª ed., 1986) desvela o universo de uma infância, em parte eufórico, feito de pequenos deslumbramentos perante o mundo e a natureza, expresso ora por um sujeito da enunciação infantil/juvenil, ora por uma voz adulta que observa o real e as relações que a criança com ele estabelece. Este universo está presente na restante obra poética de Matilde, atingindo um encanto muito especial em A Guitarra da Boneca (1983). Este livro revela uma sensibilidade particular relativamente ao mundo infantil, visível no modo como se apoia em múltiplas referências ao brinquedo e ao jogo simbólico, às histórias tradicionais e às canções infantis, a lengalengas e outras rimas popularizadas entre as crianças, e a um fascinante mundo de animais humanizados.

Atento a este imaginário e ao seu potencial poético, às facetas ignoradas mas comoventes da condição animal, ao pulsar da vida nos mais obscuros recantos naturais, o sujeito poético constrói um universo onírico e sedutor. Este parece, por vezes, transportar-nos às origens da vida, reconduzindo-nos à percepção da nossa condição biológica e humana, num mundo feito à medida dos seres que o habitam, conto acontece no poema «A Sombra» (A Guitarra da Boneca, p. 28) e em vários momentos de As Fadas Verdes (1994).

Este olhar descobridor, que pesquisa «debaixo da sombras, simultaneamente virgem, como o da criança, e sábio como o de um adulto experimentado e sensível, é o olhar capaz de dar vida às coisas mais banais. Revela o mistério rias coisas e das criaturas desdobrando se num conhecimento inteligente sobre a vida, cujo único segredo é uma atenção apurada ao que os ritmos ria desumanizacão tendem a fazer esquecer.

A aposta na vida, que caracteriza a poética de Matilde, não se faz, porem, sem uma reflexão sobre a condição do homem em sociedade. Ela inicia-se com urna atenção muito especial à criança que sofre (presente em quase todos os livros) e prolonga-se num olhar dorido sobre os socialmente desafortunados, sobretudo visível n'O Cantar da Tila (1ª ed., 1967; 8ª ed., 1986). Verifica-se, neste aspecto, uma aproximação às poéticas neo-realistas, particularmente notória, por exemplo, num poema com «Triste Lua» (A Guitarra da Boneca, p. 41-2).

Todavia, a observação dos outros reconduz quase sempre o sujeito à intimidade de um eu que se descobre magoado pelas contradições entre a necessidade de contrariar as injustiças da sociedade e uma certa inibição imposta pelo seu estatuto social privilegiado. Em fundo adivinha-se a cidade, ao sol dos dias luminosos em que Tila se vai descobrindo mulher, ou sob os tons mais carregados da pobreza dos que a habitam.

Esta atenção ao Outro traduz-se ainda numa constante simpatia pelos mais fragilizados e por todos os seres que, na natureza, os representam ou simbolizam as vítimas da marginalização social: a formiga descalça, a aranha, a oliveira da serra, entre outros. Neste quadro, assume particular importância o pendor dialógico de muitos poemas, preocupados com o eu, mas permanentemente atentos aos dramas do Outro.

No ideal, de progresso social e humano e de comunhão com o Outro que a poética de Matilde corporiza, assume especial relevo o papel da criança como reserva de humanidade, garante de um futuro melhor, homem em projecte. Os meninos são assim elevados à condição de grandes intuidores do mundo e da vida, interlocutores privilegiados de Deus e executores do Seu plano na Terra. Vêm, desta forma, recordar-nos o ideário cristão que subjaz a esta poética, aliado a um projecto de sociedade livre e igualitária, mas aberta à integração das diferenças. O poema «Concerto» (O Cantar da Tila, p. 11) sugere-o através de uma relação intertextual com a «Fábula da Cigarra e da Formiga» de La Fontaine.

A muita da poesia de Matilde Rosa Araújo apetece, assim, aplicar as palavras de Ruy Belo, a propósito da obras de um outro, grande amigo e companheiro de geração da autora de Mistérios (1988). refiro-me a Sebastião da Gama, sobre quem o poeta de Toda a Terra escrevia, em 1970:

«um cantor da vida, das coisas belas da vida, dos sentimentos nobres, da pureza. [...] O oposto de um poeta maldito [...] a verificação de que se pode ser bom poeta cantando os bons sentimentos.» [«Prefácio à 2ª edição», in Sebastião da Gama, Pelo Sonho É Que Vamos, 2ª ed., Lisboa, Ática, 1971 (p. 11-24), p. 23].

Apesar destas características, a poesia de Matilde Rosa Araújo não é imune à tensão e à angústia. Elas são particularmente visíveis nos conflitos interiores vividos por Tila, essa figura omnipresente nos dois primeiros livros, cuja biografia de menina e jovem nos e contada em poemas. Registem-se, em particular, os desenganos do autor e as tensões entre o desejo de um corpo que se descobre e os apelos e pressões externos que parecem contrariar esse impulso para a autonomia e a vivência amorosa. Entre a voz que reflecte os pasmes da infância n’O Livro da Tila, e a serena sabedoria do olhar, em Mistérios, situam-se a descoberta de Eros e das chagas sociais por parte da adolescente d’O Cantar da Tila, e as primeiras rugas da jovem professora na mesma obra.

Assim, é quase possível ler esta sucessão de poemas como a narrativa de uma vida, uma espécie de biografia lírica, pela qual perpassam, como já vimos, variados seres, em cuja existência parece, aliás, repousar o sentido deste percurso, individual, mas solidário.

Acrescente-se que, no panorama poético português das quatro últimas décadas, a poesia de Matilde ocupa um espaço próprio, mais próximo do espirito dos neo-realistas e de alguns dos poetas que se agruparam em torno da revista Távola Redonda do que da poética surrealista ou de outras tendências mais vanguardistas, que viriam a revelar-se nas décadas de 56 e 66 e a ocupar lugar de destaque na evolução da poesia portuguesa dos últimos quarenta anos.

Pelo discursivismo e recorde-se a narratividade que caracteriza muitos dos seus poemas –, pelas ligações à tradição do nosso lirismo, a poética de Matilde partilha de um imaginário estético e até do uma concepção de poesia que, hoje em dia, consideraríamos, de certa forma, tradicionalizante, Não me parece, porém, que tal facto diminua o encanto do uma produção que soube fazer uma interessante síntese de correntes poéticas por vezes distantes. Em muitos textos, reflecte-se a herança neo-realista, na atenção ao real e à vida de personagens populares, em preocupações de ordem social e na confiança na possibilidade de uma vida nova mais nítida em Mistérios do que n’O Cantar da Tila (obra em que ainda é possível ler, aqui e acolá, uma angústia algo resignada face aos males da sociedade). Completam este quadro, por um lado, a exaltação da juventude, as representações simbólicas dos meninos como promessas de um futuro melhor, bem como uma imagística ligada à luz, ao sol e às estrelas, e, por outro lado, uma certa recuperação de formas populares dos cancioneiros, aspectos marcantes de muita da poesia neo-realista. A poética de Matilde colhe ainda uma certa «tonalidade [...] tradicionalista e classicizante» que caracterizou a Távola Redonda, tanto do ponto de vista técnico-formal, como no plano dos conteúdos (gosto pela intimidade, «valorização da tradição lírica nacional» (Fernando J. B. Martinho, «A Poesia Portuguesa dos Anos 50», in AA.VV., A Phala Edição Especial – Um Século de Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988, p. 118-25, p. 119).

Em 1994, Matilde regressa às lides poéticas com um novo livro cujo titulo – As Fadas Verdes – surge, de imediato, pleno de ressonâncias. De entre elas salientam-se o retorno à infância e à fantasia, e a ligação ao universo das histórias infantis tradicionais. O título ganha uma outra dimensão quando lemos o poema de abertura; aí se opõe o verde ao negro, este coro conotações disfóricas evidentes – por surgir associado às cinzas, ligadas, por suma vez, a uma ideia de destruição. Para esse mundo «verde» a Autora vai convocar, do novo, o elemento vegetal, bem como um bestiário querido do publico infantil, por vezes no limiar da humanização (leiam-se poemas como «Berço», «A Garça», «O Amor» ou «Felicíssima«).

Não será incorrecto dizer-se que os textos desde livro oscilam (como sempre aconteceu na poesia de Matilde) entre dois pólos: denúncia e lamento, por um lado; positividade e esperança, por outro. Penso, mesmo, que é possível afirmar As Fadas Verdes como uma síntese da anterior obra poética da Autora.

A infância surge de novo como infância dourada e como projecto (vejam-se os poemas «A Água», «Tocar», «Dança» e «A Manhã»). A esta imagem vem contrapor-se uma outra: a da infância agredida de «A Borboleta», impossível, aliás, de dissociar de uma atenção magoada aos seres que comungam de um destino semelhante (leiam-se os poemas «Já Se Foi o Pastor» e «Cortar»).

As Fadas Verdes permitem reencontrar os sujeites da enunciação infantis a que poemas de livros anteriores nos haviam habituado, a par de algumas vozes adultas (neste último caso com uma visão nostálgica, mas serena, dos deslumbramentos de um passado de criança: ver «A Amiga da China»). Acrescente-se que, no primeiro caso, redescobrimos um eu infantil (feminino?) em diálogo com a mãe, como já acontecia n’O Cantar da Tila e como muitas vezes sucedeu quer numa parte do nosso cancioneiro popular, quer na tradição lírica nacional de matriz galaico-portuguesa (veja-se o poema «Porquês»).

Dois últimos traços merecem registo. A lírica de Matilde continua a afirmar-se como uma poesia de compromissos e de sínteses em relação às poéticas que lhe são próximas. Nessa medida, esta nova obra evidencia, sem preconceitos, o seu débito em relação à nossa tradição lírica, por um lado, e, por outro, uma apropriação criativa de modelos poéticos oriundos das rimas infantis da tradição oral. Podemos constatá-lo através da leitura de poemas como «Tocar», «O Amor» e «A Pinha». Registe-se, enfim, o prolongamento de alguns traços de escola que a poesia de Matilde nunca renegou e que a levam a constituir-se como uma síntese de contributos vários, nomeadamente, os das poéticas da Távola Redonda, da Arvore e do Neo-Realismo.

De uma sensibilidade apurada e minimal, exaltando a comunhão com a natureza, com os seres e a divindade, franciscana por excelência, a poesia de Matilde leva-nos a redescobrir o prazer de existir e de ler.

Recordo, a terminar, um comentário de Clara Rocha aos desenhos que ilustravam as folhas de poesia da Távola Redonda em que Matilde, como é sabido, colaborou. Nele, as representações de centauros, sereias e estrelas são interpretadas como figurações de um peculiar entendimento do universo fantástico da poesia (ver Clara Rocha, Revistas Literárias do Século XX em Portugal. Lisboa, IN-CM, 1985, p. 486).

Ao ler tal comentário, o leitor d’O Cantar da Tila não deixará de recordar os cinco belos desenhos da pintora Maria Keil que ilustram o livro e que igualmente remetem para esse «fantástico mundo da poesia» que fascinava os poetas da Távola Redonda. No caso daquela obra, uma menina, rodeada de flores, encosta o rosto deslumbrado ao ventre grávido de rima mulher, representada como um símbolo perfeito da fecundidade. Um galo empresta a fita do seu canto para prender os cabelos da eufórica menina que pretende «ir pela cidade fora» (O Cantar da Tila, p. 8). Um sol, humanizado e sedutor, planta papoilas, trigo e um ninho de pássaros no chapéu de palha de uma adolescente agradecida. Em que outro lugar, senão num «fantástico mundo da poesia», à medida dos mais jovens, poderíamos conceber estas cenas do imaginário a que a pintura e a palavra poética logram dar as formas do indizível?

A poesia de Matilde Rosa Araújo terá, pois, encontrado, sobretudo nas imagens de Maria Keil e nos desenhos infantis que ilustram O Livro da Tila, o complemento pictórico ideal do seu peculiar universo poético, de que aqui tentei reter as inconfundíveis marcas.

José António Gomes, Colóquio / Letras

* Neste comentário aborda-se unicamente a produção poética destinada pela Autora ao público infante-juvenil.


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