António Patrício

António Patrício

António Patrício (1878-1930) nasceu no Porto e faleceu em Macau. Frequentou a Escola Naval, em Lisboa, formando-se depois em Medicina no Porto. Após a proclamação da república é nomeado cônsul na Coruña, Espanha. Exerceu depois funcões diplomáticas no Cantão, Manaus, Bremen, Atenas, Istambul; Caracas, Londres, etc. Faleceu a caminho de Pequim quando ia tomar posse como ministro. António Patrício sofreu influências do Simbolismo e do Decadentismo. Notabilizou-se no teatro, em especial nas obras de carácter histórico. Obras poéticas: Oceano (1905), Poesias 81942), Poesias Completas (1980). Teatro: O Fim (1909), Pedro, o Cru (1913), Dinis e Isabel (1919), D. João e a Máscara (1924). Ficção: Serão Inquieto (contos, 1910).


Obras integrais do autor:

  • D. João e a Máscara
  • O Fim
  • Pedro o Cru


    PEDRO, O CRU

    (Extracto)

    PEDRO, com uma doçura imensa.

    – É a nossa hora, Inês... Estamos sozinhos. Estás bem assim!? Tu ouves-me dormindo. Eu fico aqui, à tua cabeceira. Não bulas, meu amor, dorme assim queda – como a tua estátua ali, sobre o teu túmulo... Esta é a Casa de Deus. Deus está connosco. Ouves os sinos repicar!?... Toca a noivado. As nossas bodas agora – são eternas. Sinto na minha alma a tua alma – como a água d'uma fonte n'outra fonte, como a luz na luz, e Deus em Deus... Sinto-te tanto, que te perco em mim. Aqui me tens, Inês: sou o teu Pedro. O que ele tem, o que ele tem pr'a te contar!... Eu bem sei que tu sabes... sabes tudo. Os teus ouvidos, na Morte, ouvem melhor. Ouviram o desespero do teu Pedro – uma noite de pedra sobre esta alma – ouviram as suas lágrimas caladas: ouviram toda, toda a sua dor. Eu sei... eu sei... As palavras, por si, dizem bem pouco; mas acordam a alma, meu amor. Se não fosse assim, pr'a quê!?... falar... Fala-se pr'a cair no teu silêncio – no silêncio em que a alma sorri toda... O teu Pedro quer falar: deixa-o dizer... Ouve-o como mesmo adormecida, tu ouvias a fonte do jardim, do jardim das oliveiras meigas, do teu "jardim das Oliveiras", meu amor. (Pausa) É o primeiro serão da eternidade. Lembro a face da terra em que te amei. Vejo os campos de Coimbra ao luzir d'alva... Eu Vou partir pr'a montear... digo-te adeus... As rolas cantam perto – muito triste – no pinhal vizinho, que as entende... O Mondego, ainda a dormir, já corre... O último beijo que me deste em Vida, foi n'uma hora assim: caiam folhas... Os pomares ofereciam-se – doirados... Quando fecho os meus olhos, Vejo-a sempre: dir-se-ia que forra as minhas pálpebras. Foi n'essa hora que eu nasci pr'à dor: foi na hora sagrada em que morreste, que a minha alma nasceu pr'a te adorar. Até à tua morte – eu só te amava. Disse-me Deus, Inês, que me perdoaste. E eu sinto o teu perdão dentro do peito – como se o abrisse pr'ó luar entrar... Quero dizer-te desde essa hora, a minha vida: - ressuscitavas tu quando eu nasci. O nosso amor, amor, ainda era pouco. Só abraçado à morte ele inicia: só a Saudade revela, sabe a Deus. Oh! Os meus dias... os meus longos dias – dias de hiena triste, a sonhar sangue... O teu Pedro quer mostrar-tos pr'a que os beijes: – e serão puros na Saudade, como tu . (Com uma expressão dolorosíssima) Mil Vezes, minha Inês, mil vezes sofri na minha carne a tua morte. Via-o sempre – o espaço era pr'a ele – o teu corpo de amor, tão grande e belo. Deixei de ver o sol: via-o a ele. A brancura de flor da tua pele era a luz da minha solidão. Vivia com o teu corpo na memória – como um lobo n'um fojo com a presa. E então a minha dor – todo o meu gozo – foi reviver n'esta carne o teu martírio. Mas mais, ainda mais que as tuas feridas, me faziam sofrer as tuas mãos... As tuas mãos, amor, via-as pisadas, como asas partidas, que ainda tremem... Eram a coisa mais triste que o sol viu. Os assassinos tinham-nas pisado. O ar, a luz, faziam-nas sofrer. E eu ouvia-os pisar: ouvia... ouvia... Oh! Foi como pisar pássaros mortos...

    MARTIM, com uma voz sufocada.

    – Afonso! Afonso!.. É como se eu a matasse... Faz-me mal. Pausa. Afonso emudece-o com um gesto.

    PEDRO

    – Vivi um ano assim, do teu martírio. O teu sangue, amor, era o meu vinho. A tua morte, Inês, foi o meu pão. Fugia ao sol: a luz envenenava-me. Queria estar só, bem só, murado em mim: – cavava no silêncio um fojo escuro pr'a me poder cevar na minha dor. O meu crânio era uma câmara de tortura: – viviam lá um carrasco e os assassinos. E o carrasco era eu, era o teu Pedro. Oirava de pensar... de sentir sangue... P'ra ver se assossegava, ia montear. Corria os montes da Beira doidamente. Entre halalis e vento, galopava. Moços de monte olhavam-me pasmados. Nem seguia os javardos: galopava!... Quanto podia, à toa, sem destino: – a fugir de mim-mesmo entre os meus galgos!... E o sono não vinha, nunca vinha. Nem nas fragoas dos montes nem nos paços. Nos pântanos d'argento, muita vez, apedrejei a minha própria imagem. Fui cúmplice das coisas contra mim. Toda a terra viveu a endoidecer-me. As árvores, na sombra, cochichavam: vinham fechar-me em rondas de conjura: cresciam contra mim; que as amei sempre... N'um silêncio escarninho, caminhavam... Uma noite, ao recolher – pobre de mim! – quis enterrar n'um cedro a minha espada. A lâmina partiu com um tinir frio. (Pausa) E às vezes, nas palmas d'estas mãos, quase sentia a polpa dos teus seios!... Era um lobo o teu Pedro: era uma hiena. Mas um dia, "Alguém" desceu ao fojo: – "Alguém" que era da morte e era da vida; e mais – de além da morte e além da vida... E eu vi a Saudade ao pé de mim. Nunca mais me deixou: Vivo com ela. Fez-se em mim carne e sangue: fez-se Inês. Por isso sabes toda a minha vida. Por isso eu sei a morte como tu. Sou o homem que viveu a vida e a morte: sou o homem-Saudade, o rei-Saudade...

    MARTIM

    – É o rei-Saudade, Afonso!..

    AFONSO

    – Eu bem sabia.

    PEDRO

    – Sou o rei... o rei do maior reino... do reino que me deste, minha Inês... Duas vezes Rainha!... Santa! Santa!... Se estou aqui ao pé de ti – tudo foi bom!... A minha dor, Inês, beijo-a nos olhos!... beijo-a como beijei a tua boca... como – cerrando os olhos na saudade – beijei, beijei, beijei a tua alma... Tudo, tudo foi bom. Tudo eu bendigo. Oiço bater o coração do meu destino. Agora sei, Inês... agora entendo. Morreste moça – pr'a viveres na eternidade sempre moça. Bendito seja sempre o teu martírio! Bendito o lobo em mim... bendita a hiena... (Mais perto d'ela ainda, erguendo as mãos) Bendita tu, Inês, sempre bendita! (Pausa. N'um tom d'intimidade mística) Estás outra vez no reino pequenino. Ele foi-te fiel como o teu Pedro. Cada árvore sabe a tua graça. A tarde cai lembrando o teu sorriso. A terra que tu pisaste alimentou-me: era pão pr'a mim, mais do que pão. Oh! Mas Coimbra foi como uma mãe. Como se o húmus recebesse a tua carne, floriu todo em saudades – campo e montes... Terra de comunhão, carne de Inês. Como eu a Vejo agora – a nossa Coimbra!... É uma Coimbra decantada na saudade... uma Coimbra d'além... E rio e choupos, e olivais e paços, vozes de sinos, voz de rouxinóis: é tudo, tudo feito de reflexos... Só ela vive do meu reino agora. O meu reino lá foi – sumido em névoa. Adeus salas de pedra dos meus paços... meu povo e minha corte... meu chicote de justiceiro... noites de folgança ao som das longas... manhãs de montaria... bons nebris... Sois uma asa ao fundo da memória. Só guardo nos meus olhos o Mondego, tal como o vi depois de tu morreres. Eu não tinha um irmão... Ninguém comigo. Fui ter com ele – o meu amigo de água. Ia como uma lágrima doirada, com folhas secas a boiar, o céu ao fundo, e os choupos nas margens a rezar... Assim ficou n'esta alma para sempre. Lembras-te ? – uma vez, no ardor da sesta, adormeci no teu regaço. Era em agosto. Ele corria aos nossos pés, n'um murmurinho: as suas águas tinham sede como a areia. Pr'a me acordares – era já quase noite – beijaste-me nos olhos, minha Inês. E eu quedei como um monte, em seu burel de mato rude, quando uma nuvem da manhã o beija... Não sabia onde estava. Tu sorrias. Entrevi n'esse instante o nosso reino... Ouve o teu Pedro, Inês, peço-te muito: – havemos de nos lembrar do sol da terra! E do Mondego, Inês, das suas águas. O sol da terra é irmão do teu cabelo. Como eu o amei, como eu amei o teu cabelo!... Muitas vezes, a afogar-me n'ele, sentia luz em mim, era meio-dia, como se Deus mungisse o sol sobre a minha alma... Amava-o tanto como tu o sol. Tu amavas o sol perdidamente. Até fugias dos meus braços, meu amor, para o ver a arraiar por sobre os montes. Ao luzir d'alva, abrias a janela: "Anda ver, meu Pedro, ele não tarda." Eu cingia-te quente, semi-nua. O pomar dormia. Só o silêncio andava a perfumar-se no pomar. Tudo era cor de asas de rouxinóis... Como tu te fazias pequenina!... A manhã vinha vindo além dos montes... Os teus seios arfavam com a luz... E ficavas a olhar os olhos rasos!... Que tinhas tu!?... Vias o céu sofrer?... Era pr'a dar a aurora ao nosso amor!... E nascia... subia: encantamento!... Os teus olhos faziam-se maiores. Oh! O que o sol gozou de viver n'eles!... Mesmo na sombra – eram flores com raios... Os teus olhos olhavam-me na sombra – como as janelas do meu paço olham a noite... Os meus agora vivem como estrelas: dobam a luz dos teus sem descansar (Com opressão e êxtase) Onde estou eu?... Não sei. Estou só contigo. Respiro o teu olhar: é luz de luz... É o ar da minha alma – o teu olhar. E Alcobaça!?... A minha coroa d'oiro!?... Alcobaça onde está!?... as altas naves!?... E os sinos?... a corte!?... os sinos d'oiro a bailar no ar as minhas bodas!?... Ainda os oiço... ainda... mas tão longe... É o princípio e o fim de todo o nosso amor. Os teus seios uniram-se: ei-lo – o mundo!... Oiço no teu silêncio cotovias... O som e a luz casaram-se, fundiram-se: são o ar que eu respiro... o nosso ar... Oh! Asas... asas... dêem-me asas!... É um abismo d'estrelas – este amor... Faz-me medo. É um turbilhão de estrelas... (Com voz de aura, chamando) Inês!... Inês!... Eu tenho medo... Sinto o vento de luz da eternidade...

    Um momento, estende os braços como asas; e resvala inerte no lajedo.

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