Raul Brandão

MEMÓRIAS

AOS MORTOS

PREFÁCIO

Janeiro de 1915

Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos e séculos, até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas... Fugi sempre dos fantasmas agitados, que me metem medo. Os homens que mais me interessaram na existência foram outros: foram, por exemplo, D. João da Câmara, poeta e santo, Corrêa de Oliveira, um chapéu alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atónitos. O Nápoles ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornais?... Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dor também.

A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada... De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos minutos. Esses, ;im! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões ião nítidas como na primeira horaouço hoje como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul-ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvai-se como fumo. Até as figuras dos mortos, por mais esforços que faça, cada vez se afastam mais de mim... Algumas sensações, ternura, cor, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frívolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o cabedelo de oiro, a outra-banda verde... Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos históricos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrário, este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibraçãoa morte daquela laranjeira que, de velha e tonta, deu flor no Inverno em que secou. O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.

Lá está a velha casa abandonada, e as árvores que minha mãe, por sua mão, dispôs: a bica deita a mesma água indiferente, o mesmo barco arcaico sobe o rio, guiado à espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a ver, e não há lágrimas no mundo que os façam ressuscitar.

Esta Foz de há cinquenta anos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diáfano ou colérico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morou a minha avó; no armário, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu av6, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve notícias dele. Lembro-me da avó e da tia Iria, de saia de riscas azuis, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo ainda o volume desirmanado do Judeu que elas liam, com o Feliz Independente do Mundo e da Fortuna e a Recreação Filosófica do padre Teodoro de Almeida. Ouço, desde que me conheço, sair do negrume, alta noite, a voz do moço chamando os homens da campanha: – Ó sê Manuel, cá pra baixo prò mar! – Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bilé, o Mandum, o Manuel Arrais, que me levou pela primeira vez, na nossa lancha, ao largo. Há que tempos! – e foi ontem... A quarenta braças lança-se o ancorote. Na noite cerrada uma luzinha à proa; do mar profundo – chape que chape – só me scpara o cavername. Deito-me com os homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a luz do dia do pó verde do ar. Nasce da água, mistura-se na água, com reflexos baços, a claridade salgada que palpita no ar vivo que respiro, no oceano imenso que me envolve. Iça! iça! – e as redes sobem pela polé, cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia. Voltamos. Já avisto, à vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco, além no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra toda, roxa e diáfana, emerge enfim, como aparição, do fundo do mar.

A onda quebra. Eis a barra. Agora o leme firme!... As mulheres, de perna nua, acodem à praia para lavar as redes, e o velho piloto-mor, de barba branca, sentado à porta da Pensão, fuma inalterável o seu cachimbo de barro. O azul do mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céu derrete. Mais barcos vão aparecendo, vela a vela: o Vai com Deus, a Senhora da Ajuda, o Deus te guarde, e os homens, de pé, com o barrete na mão, cantam o bendito, tanta foi a pesca. – Quantas dúzias? – Um cento! dois centos! – Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo, a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no Inverno, a sardinha que os batéis carreiam do mar inesgotável, estivando de prata todo o cais. Às vezes o peixe miúdo e vivo é tanto que não bastam os almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna à mostra, para o levarem, apregoando-o, por essa terra dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o quinhão dos pobres. Em Setembro são as marés vivas. Mais tarde cresce do mar um negrume. Acastelam-se as nuvens no poente, e forma-se para o Sul uma parede compacta que tem léguas de espessura. A voz é outra, clamorosa, e, à primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela costa fora, anunciando o Inverno que vem próximo. O quadro muda, e os homens morrem à boca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos, sacudidos no torvelinho da ressaca, o velho arrais de pé, as duas mãos crispadas no leme, cuspindo injúrias, para lhes dar ânimo, e todo o mulherio da Póvoa, de Matosinhos, da Afurada – vento sul, camaroeiro içado –, com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de lágrimas: – Ai o meu rico homem! o meu filho, que não o torno a ver! – E chamam por Deus, ou insultam o mar, que, Inverno a Inverno, lhos leva todos para o fundo.

O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo: o que sei das árvores, da ternura, da dor o do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equívocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais... Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça às feras no canavial indiano foi mais fértil em emoção e aventura que a armadilha aos pássaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro. Uma nora, dois choupos, a água empapada, e, entre as ervas gordas como bichos, pegadas de bois cheias de tinta azul; reflectindo o céu implacável de Agosto. Os pássaros com as asas abertas desconfiam e hesitam: a sede aperta-os o sol escalda-os. Mal pousam na armadilha, agarramo-los com ferocidade. Chiu!... Uma andorinha descreve lá no alto um círculo perfeito, e vem, no voo desferido, arripiar com o bico a água estagnada. Toca numa palheira de visco – é nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha? É penas e vida frenética. E essa vida pertence-te!... Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos cheios de rãs e os olhos deslumbrados. Nenhuma figura torva, nem o Anticristo, me comunicou terror semelhante ao do inofensivo Manco da esquina, que escondia de manhã a barba, que lhe chegava ao umbigo, entre o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando saía à estrada... Sou capaz de te dizer qual o tom róseo de certos dias. quando o pessegueiro bravo encostado ao muro floresce. O murmúrio da minha bica não me sai dos ouvidos até à hora da morte. Quase todos os meus amigos – o Nel, que não tornei a ver... – são dessa época. Doutras impressões mais tardias não restarão vestígios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros mansos – que já não existem – acenando para a barra, e alta noite acordo ouvindo o rebramir do mar longínquo. Nos dias de desgraça é sempre a mesma voz que chama por mim... Olha, olha ainda e extasia: e o rio parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta azul, com laivos esquecidos do poente. Bóia espuma na água viva que a maré traz da barra... E não há cheiro a flores que se compare a este cheiro do mar.

Agosto de 1910

Aos 23 do mês passado morreu meu pai amachucado, exausto e pobre. Encontrão dum, repelão de outro, assim foi até à cova. Tinha 67 anos incompletos. Não podia mais. Encontraram-lhe alguns cobres no bolso. Há muitos anos que se arrastava, e só tinha de seu uma alegria e um repouso: os domingos. Aos domingos metia-se no quarto, calçava uns chinelos, e toda a tarde chorava lágrimas sem fim sobre um velho romance de Camilo. Minha mãe pouco mais durou, com um olhar de pasmo. Lá ficou a velha casa abandonada...

Sobe a lua no céu, e a sombra no monte. Seis árvores, quatro paredes – tudo aqui me enche de saudades. A bica continua a correr, mas outras sedes se apagarão naquela água. Outros virão também sentar-se no banco de pedra... Só me resta a tua mão querida, que a meu lado segura a minha mão. Os mortos chamam por nós cada vez mais alto... Olho para ti e os teus primeiros cabelos brancos fazem-me chorar.

Setembro de 1910

Hoje acordei com este grito: eu não soube fazer uso da vida!

O que me pesa é a inutilidade da vida. Agarro-me a um sonho; desfaz-se-me nas mãos; agarro-me a uma mentira e sempre a mesma voz me repete: – É inútil! inútil!

A aquiescência, o sorriso: pois sim... pois sim... – a necessidade de transigir, o preceito, a lei, fizeram de mim este ser inútil, que não sabe viver e que já agora não pode viver. Não grito de desespero porque nem de desespero sou capaz.

A vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é horrível porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem tecto, entre ruínas, à espera...

Não entendo nada da vida. Cada dia que avança entendo menos da vida. Contudo há horas, as horas perdidas – e só essas – que queria tornar a viver e a perder.

Deus, a vida, os grandes problemas, não são os filósofos que os resolvem, são os pobres vivendo. O resto é engenho e mais nada. As coisas belas reduzem-se a meia dúzia: o tecto que me cobre, o lume que me aquece, o pão que como, a estopa e a luz.

Detesto a acção. A acção mete-me medo. De dia podo as minhas árvores, à noite sonho. Sinto Deus – toco-o. Deus é muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me – não n sei explicar. Terra, mortos, uma poeira de mortos que se ergue em tempestades, e esta mão que me prende e sustenta e que tanta força tem...

Como em ti, há em mim várias camadas de mortos não sei até que profundidade. Às vezes convoco-os, outras são eles, com a voz tão sumida que mal a distingo, que desatam a falar. Preciso da noite eterna: só num silêncio mais profundo ainda conto ouvi-los a todos.

Nunca os meus me chamaram tão alto. Sentam-se a meu lado. Rodeiam-me, e pouco a pouco o círculo da minha vida restringe-se a um ponto – a cova.

Teimo: há uma acção inferior, a dos mortos, há uma acção exterior, a da alma. A inteligência é exterior e universal e faz-nos vibrar a todos duma maneira diferente. Destas duas acções resulta o conflito trágico da vida. O homem agita-se, debate-se, declama, imaginando que constrói e se impõe – mas é impelido pela alma universal, na meia dúzia de coisas essenciais à vida, ou obedece apenas ao impulso incessante dos mortos.

A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pai para falar com ele. Não é só saudade que sinto: é uma impressão física. Agora é que acharia encanto até às lágrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao pé do lume e morrermos ao mesmo tempo...

Fevereiro de 1910

Isso que aí fica não são memórias alinhadas. Não têm essa pretensão. São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um acontecimento – e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos se desenrolou, interessou-me a cor, um aspecto, uma linha, um quadro, uma figura, e fixei-os logo no canhenho que sempre me acompanha. Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la. Não afirmo nem nego. Há muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer – desaprendo até morrer. Não sei nada, e saio deste mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a resoluções definitivas. O papel dos doidos é de primeira importância neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigi-lo e canalizá-lo... Também entendo que é tão difícil asseverar a exactidão dum facto como julgar um homem com justiça. Todos os dias mudamos de opinião. Todos os dias somos empurrados para léguas de distância por uma coisa frenética, que nos leva não sei para onde. Sucede sempre que, passados meses sobre o que escrevo – eu próprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço... É por isso que não condeno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de mim próprio para não reconhecer com espanto que sou absurdo – para não ter de discriminar até que ponto creio que não creio, e de verificar o que me pertence e o que pertence aos mortos. De resto isto de ter opiniões não é fácil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a reconhecer que eram falsas ou erróneas. Sou talvez uma árvore que cresce à sua vontade, pernada para aqui, pernada para acolá, à chuva e ao vento. Não admito poda. Perco horas com inutilidades, e passo alheado e frio diante do que os outros contemplam extasiados. Admiro, por exemplo, muito mais, perdoem-me, a vida ignorada do meu vizinho, o sr. Crasto, que morreu de oitenta anos, curvado, a lavrar a terra, do que a do senhor Hintze Ribeiro, que considero inútil e destituída de toda a beleza.

Por isso, repito, muitas folhas destes canhenhos serão mal interpretadas, talvez alguns tipos falsos. Só vemos máscaras, só lidamos com fantasmas, e ninguém, por mais que queira, se livra de paixões. No que o leitor deve acreditar é na sinceridade com que na ocasião as escrevi. Poderão objectar-me: – Então com que destino publico tantas páginas desalinhadas, de que eu próprio sou o primeiro a duvidar? É que elas ajudam a reconstituir a atmosfera duma época; são, como dizia um grande espírito, o lixo da história. Ensinam e elucidam. Foi sempre com a legenda que se construiu a vida. Sei perfeitamente que a história viva tanto se faz com a verdade como com a mentira – se não se faz mais com a mentira do que com a verdade. Para gerar um acontecimento é preciso criar-lhe primeiro a atmosfera propícia. «Algumas palavras sob caricaturas grosseiras, dispersas pelos campos, formaram uma lenda na imaginação popular, concernente ao rei, à rainha, ao conde de Artois, a madame de Lamballe, ao pacto da fome, aos vampiros que sugam o sangue do povo, etc. Dessa lenda – que ele acha útil – saiu a grande revolução» – diz um historiador. A gente nunca sabe ao certo se da infâmia poderão nascer coisas belas... A mentira, o boato, o que se diz ao ouvido, o que se deturpa, e que tanta força tem, a meada de ódio, de ambição e de interesses, que não cabe na história com H grande, tem o seu lugar num livro como este de memórias despretensiosas. Eis uma razão. Tenho outra ainda: torno a ver e a ouvir alguns mortos. Recordo, o que é necessário a quem cada vez mais se isola com o seu sonho e as suas árvores. Isto aquece quase tanto os primeiros anos da minha velhice como o lume que arde até Junho na lareira desta casa.

Cantareira, Foz do Douro – 1918.


Voltar à página Raul Brandão