Horto do Esposo

O Horto do Esposo, juntamente com o Bosco Deleitoso, é uma das obras místicas escritas no Mosteiro de Alcobaça escrita na primeira metade do século XV, fazendo parte do códice alcobacense nº 198. Apresenta-se como prosa espiritual e doutrinária, recorrendo a vários exempla. Foi publicado integralmente em 1956 por Bertil Maler. É um dos melhores tratados portugueses sobre os textos bíblicos.




HORTO DO ESPOSO

LIVRO I

PRÓLOGO

Aqui se começa livro que se chama Horto do Esposo, o qual compos aa honra e louvor de nosso Senhor Jesu Cristo, flor mui preciosa e fruito mui doce de todalas almas devotas, e da bëeta Virgem das virgëes, Maria, rosa singular e estremada da celestrial deleitação e de toda a corte da cidade de Jerusalem, que é em na gloria do paraiso.

Eu, mui pecador e nom digno de todo bem, escrevi este livro pera proveito e spiritual dilectaçom de todolos simplezes, fees de Jesu Cristo, e spicialmente pera prazer e consolaçom da alma de minha irmã e companheira da casa divinal e hüanal, que me rogaste muitas vezes que te fezesse em linguagem üu livro dos fectos antigos e das façanhas dos nobres barões e das cousas maravilhosas do mundo e das propiedades das animálias pera leeres e tomares espaço e solaz em nos dias em que te convem cessar dos trabalhos corporaes.

Mais, segundo diz o bëeto Sancto Agustinho, tal escriptura como esta que me tu demandas nom ha por arras o Spiritu Sancto nem pode fazer o teu spiritu contrito, ca, como quer que os livros das ciencias segraes alomeam o entendimento, pero non acendem a võotade pera o amor de Deus. Mais, segundo diz Sancto Isidro, as Sanctas Escripturas emsinam o entendimento da mente e da alma do homem e tiram-no das vaidades do mundo e reduzem-no ao amor do Senhor Deus, onde diz Sam Jeronimo que aquele que nom sabe as sanctas leteras, este tal nom sabe leteras. E porem diz o profeta Baruc: «Ouve tu, Israel, os mandados da vida e entende-os com as orelhas, por tal que saibas a sabëeça e a prudencia. Que é esto, Israel, que tu es em terra dos emmiigos? Envelheceste em terra alheia, ençujado es com os mortos e contado es com aqueles que descendem em no inferno, leixaste a fonte da sabedoria, ca, se tu em ela houvesses andado, certamente tu morarias em paz perduravil. Aprende u é a prudencia, u é a virtude, u é o entendimento, u é a saude, u é a longura da vida, u é o lume dos olhos, u é a paz, u som os principes das gentes que tesaurizam a prata e o ouro, em que confiam os homëes. Lançados som fora do mundo e descenderom aos infernos e outros se levantarom em seu logo. Mas eles nom souberom a carreira da disciplina e da ensinança nem entenderom os semedeiros dela, e os faladores que buscarom a prudencia e a ciencia que é da terra, mais nom souberom a carreira da sabedoria nem se lembrarom dos semedeiros dela, e, porque nom houverom a sabedoria, morrerom e perecerom pola sua neicidade.» Onde diz Salamom: «Vão é todo homem em que nom é a ciencia de Deus.»

E porem nom te quise escrever livro simpliz daquelas cousas que tu demandaste, mais trabalhei-me fazer este livro das cousas conteudas em nas Escripturas Sanctas e dos dizeres e autoridades dos doutores catolicos e de outros sabedores e das façanhas e dos exemplos dos sanctos homëes. E com esto mesturei as outras cousas que me tu demandaste, assi como pude, segundo a baixeza do meu entendimento e do meu saber

E puje nome a este livro Horto do Esposo, scilicet Jesu Cristo, que é esposo de toda fel alma, porque, assi como em no horto ha ervas e arvores e fruitos e flores e especias de muitas maneiras pera delectaçom e mantimento e meezinha dos corpos, bem assi em este livro som conteudas muitas cousas pera mantimento e deleitaçom e meezinha e consolaçom das almas dos homëes de qualquer condiçom, ca em este livro achará o rude com que se ensine e o sages com que use e o tibo com que se acenda e o fraco com que se conforte e o enfermo com que seja são e o são com que seja guardado em sua saude e o cansado com que seja recriado, e o famiinto achará com que se mantenha. Lea per este livro o estudioso e achará com que se deleite, lea o enfadado e achará com que se demova, lea o simpliz e achará com que se entenda, lea o triste e achará com que se alegre.

Mais, porque o verbo de Deus, que é Jesu Cristo, é fonte original de toda sabedoria divinal e humanal, segundo diz Sancto Agustinho porem levantem os olhos do coraçom a Jesu Cristo, que nossa mente ache spiritual deleitaçom pera vida perduravil, e pera esto tomemos exemplo de uns moradores de Terra de India, em que ha üu monte mui grande e mui alto. Em este ha üa fonte de que correm rios que regam toda terra em redor, e em algüus tempos esta fonte sarra-se em guisa que nom corre agua dela. E os moradores da terra mandam alá üa moça virgem que cante a aquela fonte, e aas vozes do seu cantar torna a fonte lançar suas águas, pera a terra fazer seu fruito.

Bem assi, se birmos que as graças do Senhor Jesu Cristo som embargadas pelos nossos desmericimentos, enviemos a el devota oraçom que cante ante el e seja recibuda por nos, e aa Virgem, sua madre, que faça cumprir nossa oraçom e que nos envie a seu rogo rosas de paciencia do horto do seu paraiso e fruitos de acabamento de obras de salvaçom, assi como enviou a üu escolastico, que havia nome Teofilo, a rogo de üa sancta virgem, sua esposa de Jesu Cristo, segundo se contem em este falamento que se segue.

Exemplo. Üa sancta virgem, que havia nome Dorotea, era levada pera degolar pela fe de Jesu Cristo, e üu escolastico leterado, que havia nome Teofilo, escarnecendo dela, disse-lhe: «Tu, esposa de Cristo, envia-me do paraiso do teu esposo rosas e pomas.» E a sancta virgem lhe respondeo: «Certamente assi farei.» E ela, quando veo ao lugar onde havia de seer degolada, fez oraçom a Deus, e, acabada a oraçom a Deus, logo apareceu ante ela üu menino que tragia em üu pano de linho mui alvo tres maçãas mui nobres e tres rosas mui fremosas. E disse-lhe a sancta virgem: «Rogo-te que leves esto a Teofilo e di-lhe: «Ex aquelo que pidiste a Dorotea que te enviasse do paraiso do seu esposo.» E a sancta virgem foi degolada e acabou seu marteiro. E Teoflo estava recontando o prometimento que lhe fezera a sancta virgem, escarnecendo dela, e aque o menino chegou ante ele com o pano do linho alvo, em que tragia aquelas maçãs maravilhosas e as rosas mui fremosas, e disse-lhe: «Irmão, ex aqui aquelo que te prometeu a virgem mui sancta Dorotea, que te envia do paraiso do seu esposo.» E entom Teofilo tomou as pomas e as rosas e braadou mui grande voz, dizendo: «Verdadeiro Deus é Jesu Cristo.n E disserom-lhe os companheiros: «Ensandeces ou dizes esso em jogo?» Respondeu Teofilo: «Eu nom som sandeu nem hei falante de jogo mais creo verdadeiramente que Jesu Cristo é verdadeiro Deus, ca agora é o mes de Fevereiro e toda esta terra de Capadocia é cuberta de geada e de friu e nom ha em ela folhas verdes nem flores nem úas. Pois, donde pensades que veerom estas maças com suas folhas e estas rosas tam fremosas?» E eles disserom: «Esso nom sabemos nós.» E Teofilo lhes disse: «Eu falei a Dorotea quando a levavam a degolar e disse-lhe em escárnio: «Molher u te vás?» E ela me disse: «Vou-me pera o meu amigo e meu esposo Jesu Cristo, que me convida pera mui sanctas vodas e mui solemnes manjares pera o seu paraiso.» E eu lhe disse como a sandia: «Quando fores em esse paraiso, enria-me das rosas e das maçãs.» E ela me prometeu que o faria. E agora, tanto que foi degolada, veeo a mim üu menino que me parece que nom é mais de idade de quatro annos, e chamou-me a de parte e falou-me tam perfectamente, que a mim parecia seer eu rustico ante el e amostrou-me e deu-me este pano com estas tres rosas e tres maças e disse-me: «Aquela virgem sancta Dorotea te enria esto, assi como o prometeu, estas doas do horto do seu esposo.» E, tanto que as eu tomei e comecei de braadar logo aquele moço nom pareceu mais, e eu creo que era angeo de Deus.» E logo Teofilo começou a braadar: «Bem aventurados som aqueles que creem em Jesu Cristo, e aquele que da a ele a sua fe, é verdadeiro sabedor.» E degolarom-no com os outros e foi-se pera o paraiso do deleito, que é eno ceo.

E assi mostrou este leterado a sua doutrina per paciencia, ca, segundo diz üu sancto padre, a doutrina do barom conhece-se pela paciencia, ca, quanto o homem é menos paciente, tanto se mostra por meus ensinado.


EXEMPLUM

Üu rei era gentil e de maos feitos. Avia üu boo conselheiro, que avia desto grande tristeza e catava tempo convinhavil pera o tirar do erro en que andava. Üu dia disse elrei aaquele seu privado:

– Vem e andemos pela cidade, se perventura veremos algüa cousa proveitosa.

E andando eles pela cidade virom lume que luzia per úu iurado. E teverom mentes per ele e viram üa casa soterranha em que estava üu omem mui pobre, vestido em üa vestidura mui vil e mui rota. E ante ele estava sua molher que lhe escançava o vinho per üu vaso de vidro. E, tanto que o marido tomou o vaso ele vinho na mão, começou de cantar altas vozes e ela outrossi começou a balhar ante ele e louva-lo muito e tomavom ambos muito prazer.

E aqueles que iam com elrei esteverom-nos oolhando üu grande espaço e maravilharam-se porque aquestes omëes, tam pobres que nom aviam casa em que morassem, nem vestiduras senom mui rotas, como faziam sua vida tam segura e com tanto prazer. Entom disse elrei ao seu conselheiro:

– Ó amigo, que maravilha é esta, que nunca a nossa vida foi tam prazivel, nem tam leda a mim nem a ti, porque avemos tantos viços e tantos avondamentos, como é a sua destes sandeus, ca, como que ela seja vil e mezquinha e aspera, parece-lhe a eles leda e blanda!

Quando esto ouvio o privado, entendeo que tinha tempo de castigar elrei e disse-lhe:

– Senhor, quejanda te parece a vida destes omëes?

E elrei disse:

– Parece-me que é a mais mezquinha e a mais mal aventurada de todalas vidas que eu vi.

E disse-lhe o privado:

– Senhor, sabe por certo que por mais mezquinha e mais mal aventurada teem a nossa vida aqueles que contemplam e recontam a gloria perduravel e os bëes que sobrepojam todo siso, ca os nossos paaços, resplandecentes como ouro, e as nossas vestiduras, nobres e fremosas, mais fedorentas e mais feas parecem que o esterco aos olhos daqueles que contemplam as fremusuras das moradas do ceo, que nom som feitas com mão, e as vestiduras feitas per Deus e as coroas que nunca seeram conrompidas, que aparelhou o senhor Deus aaqueles que o amam. E, assi como estes pobres omëes parecem a vós sandeus, bem assi e muito mais nós, que andamos neste mundo e pensamos que avemos grande avondança em esta falsa gloria e com estas deleitações sem proveito parecemos dignos e merecedores de lagrimas e de choros e de tristezas è de mezquindade ante os olhos daqueles que gostarom a dulçura dos bëes perduravees que enganom os omëes em esta vida, fazendo-os creer que am em si blandeza e dulçura grande e verdadeira, o que é contrairo, e per esto som enganados os viçosos. E porem diz o Eclesiastico: Eu achei molher mais amargosa que a morte. Esta molher é a deleitaçom corporal. Outrossi os faz creer que á em eles abastança, como assi seja que eles fazem vazios aqueles que os am, porem diz o Evangelho que o senhor Deus leixou os ricos vazios. E faze-os creer que arn em si onra, como assi seja que á em eles grande desonra. Porem diz ëno Evangelho que aquelo que é alteza aos omëes avorrecimento grande é ante Deus.

E por estes enganos que fazem os bëes temporaes tomam os omees os bëes que nom som verdadeiros em logo de bëes verdadeiros.

Voltar à página inicial