Mateus de Pisano

Ignora-se a ascendência de Mateus de Pisano e não há provas de que ele seja filho de Cristina de Pisano, escritora que vivia em França no princípio do século XV. José Correa da Serra, na introdução que faz ao De Bello Septensi, diz: «julgo com algum fundamento, ser ele filho de Cristina de Pisano, mulher famosa pela sua sabedoria no século décimo quinto, autora de várias obras então muito celebradas, que ainda existem na Biblioteca d'ElRei de França, e que tem servido de assunto e de material a algumas memórias dos Académicos Boivin e Sallier. Além da identidade do nome que por si só faria fraca prova, concorrem para eu assim o crer, o tempo em que nosso autor viveu, e as qualidades e circunstâncias do filho de Cristina. Em um livro desta autora intitulado La vision de Christine, diz ela ter um filho nascido pela conta de 1385, e que por conseguinte seria de cinquenta anos em 1435, época em que ElRei D. Afonso V começaria a necessitar de mestre. Em outro lugar do mesmo livro, introduz ela a prosopopeia da Filosofia, que para a consolar dos seus trabalhos, lhe faz o retrato deste filho, que é idêntico com a notícia, que de Mateus de Pisano nos deu Gomes Anes.» (Introdução ao De Bello Septensi, em Colecção de livros inéditos de história portuguesa, dos reinados de D. João I, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II, Lisboa, Oficina da Academia Real das Ciências, 1790, tomo I, p. 3, 4).

Sabemos com certeza que Mateus de Pisano foi chamado de Itália pelo Infante Regente D. Pedro, para educar desde tenra idade o rei D. Afonso V. Era conhecido como poeta laureado, como filósofo e orador. Porém, dele não temos poesias nem obras filosóficas. Uma outra das finalidades da vinda de Mateus de Pisano para Portugal era a de escrever as crónicas dos reis de Portugal em latim. Porém, dele não possuímos actualmente nada (se algo mais escreveu) do que o De Bello Septensi. Há notícias de que terá também escrito a História do Conde D. Pedro, mas até agora não foi encontrada. A obra De Bello Septensi foi escrita em 1460, quarenta e cinco anos depois da conquista de Ceuta (1415). A obra só foi editada em 1790 pela Academia Real das Ciências. Há quem diga que o De Bello Septensi é uma tradução resumida da Crónica da Conquista de Ceuta de Gomes Eanes de Zurara, por haver passos paralelos e de certas passagens em Zurara que não são referidas na obra de Pisano. No entanto, devemos também garantir que há muitas passagens da crónica de Pisano que não são nem sequer sugeridas em Zurara. Mas é também certo que Pisano colheu informações noutras fontes.

Quanto ao estilo, há autores que pensam que Mateus de Pisano, sendo italiano, onde o Renascimento ia muito adiantado, deveria ter um estilo mais elevado. E até há quem tenha dito que as primeiras duas ou três páginas da obra são em latim mais cuidado de sabor humanista, enquanto no resto o autor se descuidou bastante. O exame pormenorizado de toda a obra mostra que, pelo contrário, ele escreveu um latim sempre muito superior ao dos autores escolásticos, incluindo Diogo Lopes Rebelo e Frei Gomes de Lisboa (fins do século XV). Mateus de Pisano mantém o estilo uniforme, sempre cuidado, de bom fraseado e com boa sintaxe. Diz José Correa da Serra que o estilo de Pisano «é superior ao dos Latinistas daquele século, e conhece-se nele uma determinada vontade de imitar Salústio.» (Ibidem, p. 5). Quanto à sua narração, «é sóbria, e se alguma parcialidade se lhe pode notar, é a favor do Infante D. Henrique, celebrando mais os seus feitos que os dos seus irmãos». (Ibidem).

Edições da obra De Bello Septensi:

PISANO, Mateus de, De Bello Septensi, manuscrito nº1 da Biblioteca Ducal de Vila Viçosa, século XV.

PISANO, Mateus de, De Bello Septensi, em José Correa da SERRA (editor), Colecção de livros inéditos de história portuguesa, dos reinados de D. João I, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II, Lisboa, Oficina da Academia Real das Ciências, 1790, tomo I.

PISANO, Mateus de, Livro da Guerra de Ceuta, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1915. Edição de Roberto Correia Pinto.


De Bello Septensi

(tradução de um excerto)

Aqueles, regressando cada um para o seu mosteiro, começaram a meditar e a discutir consigo mesmo o que tinham ouvido; finalmente reunidos por uma e concordes, voltaram para junto do rei. Porém, o rei determinou que deviam discutir sobre a resposta quando os filhos estivessem presentes. Então aqueles receberam ordem de falar e disseram:

«É permitido ao príncipe cristão, pela autoridade do Sumo Pontífice, levar a guerra aos bárbaros, porque têm ocupado o património de Cristo e perseguem os cristãos com hostilidade e, ainda que sejam verdadeiras as coisas que dissemos, todavia deveria ser suficiente, para a situação presente, os feitos gloriosos dos Príncipes da Espanha, que, com grande derramamento do seu próprio sangue, sujeitaram ao seu domínio a terra em que vivemos, tendo expulsado os bárbaros. Entre eles sabemos que Ramiro com um pequeno grupo de homens quase desbaratou uma multidão infinita de bárbaros e exterminou grande parte deles com a espada; ao qual Santiago, sendo invocado, apareceu logo, para que não o desanimasse a multidão de inimigos. Incitou-o para o combate por causa do qual todos os anos as cidades e aldeias, que então os cristãos possuíam, pagam um certo tributo. Sabemos também que o rei Afonso de Castela lutou bravamente com o rei de Marrocos neste local que é chamado comummente de Navas de Tolosa; ao qual um anjo revelou, através de selvático e solitário monte, um caminho nunca antes nem depois visto. Também sabemos que o rei Fernando de Portugal [de Castela] tomou Coimbra, cidade quase inexpugnável, então na mão dos bárbaros, junto da qual corre o rio Mondego que no tempo de Inverno cobre, inundando, os campos vizinhos e adjacentes e toma o aspecto de mar, e submeteu para si, arrancando-as das garras dos bárbaros, outras numerosas cidades de Castela. Ninguém ignora que D. Afonso, o primeiro rei de Portugal, que, se não superou os imperadores romanos, pelo menos os igualou, derramou muito do seu sangue a favor de um grande aumento da fé e libertou da crudelíssima escravidão dos bárbaros grande parte do nosso reino e a cidade de Lisboa, situada na foz do Tejo, gerando ouro e pedras preciosas. Em seguida, venceu e derrotou cinco reis bárbaros no Campo de Cunes, que se estende por muitíssimas colinas verdes e vales muito próprios para rebanhos. Daqui provêm as cinco quinas do escudo real português. Estas milagrosas façanhas dos reis podem ensinar-vos quão grande é o serviço a Deus combater os bárbaros; pelo que vos é lícito empreender a guerra contra os africanos, se lutardes pela glória de Deus. Da nossa intenção provém o mérito ou demérito de tudo o que fazemos

Tendo dito isto, calaram-se. Então D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique que, como dissemos antes, estavam presentes, pensaram que o rei consentia com as palavras daqueles e não hesitava mais naquilo que desejavam; pelo que, pedida a licença ao rei, cada um regressou a sua casa. Depois, passados alguns dias, o rei mandou chamar os filhos e junto deles disse-lhes estas palavras:

«É próprio de príncipe prudente, antes de empreender algum feito, prever duas coisas: primeiro se o que empreender o pode fazer com justiça; depois se tem força para o fazer de modo a obter êxito; é evidente que podemos empreender a guerra contra os africanos de modo justo, mas se o podemos conseguir, numerosas razões o dificultam. A principal é a falta do dinheiro necessário para realizar empresa de tal magnitude, que, se eu o for tirar ao povo, não sei de que modo, com as lágrimas e gemidos dos pobres, possa servir a Deus.

Também penso na grande distância de Ceuta e na magnitude e abundância de gente. Considero que para pormos cerco a toda a cidade, é necessária para nós, além dos nossos homens, a mão poderosa dos estrangeiros. Do mesmo modo para o transporte de tamanho exército é preciso ter navios preparados em abundância, e não se vê facilmente onde se possam obter.. Mas suponhamos que tudo isto está ao nosso alcance, quem nos poderá garantir que, estando nós todos ocupados com a guerra mauritânica, não tentem os castelhanos, impelidos pela cobiça do nosso reino, tentar submetê-lo ao seu domínio? Mas concedamos que Castela permanece na sua obrigação e que nós viremos a conquistar Ceuta. Que vantagens virão daí? Certamente nenhumas. Contudo, se sobrevier alguma, redundará em benefício dos castelhanos, que mais facilmente poderão conquistar Granada e assim aumentar o seu reino. Ora, quanto mais Castela crescer, tanto mais se tornará menor Portugal. Além disso, certamente será impossível, ou pelo menos difícil, se tomarmos Ceuta, conservar-lhe a posse no meio de tantos milhares de africanos, pois é bastante evidente que todos os homens naturalmente se esforçam por recuperar as suas coisas e desejam repelir a injúria: em tal caso, mais vergonhoso seria para nós perdê-la depois de submetida, do que a glória de a ter colocado sob o jugo

Os infantes, terminado o discurso do rei, responderam desta maneira:

«Reconhecemos que é próprio de príncipe prudente desejar prever todas as coisas que lhe possam pôr obstáculos. Todavia, não é menos prudente encontrar um remédio para os obstáculos. Por isso, se nos derdes tempo, talvez dissipemos tudo o que vos afasta desta expedição

Tendo dito isto, o rei concedeu-lhes o tempo que pediram. Retiraram-se os infantes com esta preocupação. Contudo, o desejo da expedição, pelo qual eram atormentados, fazia-os suspeitar de que, por causa do peso da sua idade, o rei temia empreendê-la. Por este motivo, apresentava aquelas desculpas. Todavia, o rei queria-o não menos que os filhos, mas desejava proceder de acordo com a dignidade, que convinha à sua autoridade, visto que conhecia por larga experiência que as guerras se compõem de perigos e trabalhos e que por esta razão, pensava, têm de ser empreendidas com muita prudência para que por fim não se arrependesse de ter começado. Os infantes reuniam-se muitas vezes para discutir as dúvidas do rei e entre si debatiam alternadamente. Bem ponderadas todas as coisas, tornados junto do rei, disseram que a falta de dinheiro que alegava facilmente podia ser suprida se reunissem grande quantidade de bronze e prata e se mandassem cunhar a moeda para que a pudessem imediatamente reunir; se com os mercadores estrangeiros trocassem outras mercadorias do seu reino por bronze e prata; se suprimissem muitas despesas inúteis e se diminuíssem parte das distribuições que todos os anos concedia aos seus nobres e revertesse tudo em proveito da expedição. E acrescentaram muito menos ter possuído o rei outrora nas guerras e todavia naquele tempo nada lhe faltara para as fazer, nem lhe faltaria contanto que fosse por amor de Deus. Nem lhe faltariam os navios para transportar o exército, nem gente armada para cercar toda a cidade; nem seria para recear a invasão de Portugal por causa da paz jurada com tanta fé, principalmente quando o tutor do rei de Castela tinha voltados para Aragão todos os seus cuidados e pensamentos. Nem Granada, depois de tomada Ceuta, cairá sob o jugo de Castela. Deveria ele retomar tão santa expedição, pois seria mais proveitoso para a religião de Cristo do que inconveniente para Portugal se Granada fosse colocada sob o domínio de Castela. Somente é próprio de um príncipe justo preferir um bem maior a um menor. Nem Deus permitiria que esta cidade, onde uma vez o seu santíssimo corpo fora consagrado, fosse de novo reduzida à escravidão dos bárbaros.

Isto concluído, o rei aprovou a sentença dos filhos e determinou conquistar Ceuta.

Tradução de Deolinda Cabrera, 1995


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