António José da Silva (o Judeu)

António José da Silva - escultura de Simões de Almeida, Sobrinho

António José da Silva (o Judeu) nasceu no Rio de Janeiro em 1705 e faleceu em Lisboa em 1739. Oriundo de uma família cristã-nova que se refugiara no Brasil, vem para Portugal com a família. Forma-se em Direito na Universidade de Coimbra e em 1737 é preso com a própria esposa, ambos acusados de actividades judaizantes pela Inquisição. É executado em 1739 num auto-de-fé. Conhecido como comediógrafo de teatro de marionetas, as suas peças foram representadas no Teatro do Bairro Alto, onde conheceram grande sucesso popular. Das obras destacam-se: Vida do Grande D. Quixote de la Mancha (1733), Esopaida ou Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena (1736), Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona (1737), Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738), etc.

Obras integrais do autor disponíveis no Projecto Vercial:

  • Guerras do Alecrim e Manjerona
  • Anfitrião


    ANFITRIÃO OU JÚPITER E ALCMENA

    PARTE I


    CENA I

    Sala empírea de Júpiter aonde estará este assentado em um trono, e Mercúrio mais abaixo, e depois se tirarão do trono, e Júpiter trará na mão uma estátua de Cupido, que se dividirá a seu tempo.


    Coro

    O Númen supremo
    do Olimpo sagrado
    suspira abrasado
    de um cego furor
    Que pasmo! Que assombro!
    Que voe tão alto
    a seta do amor!

    JÚPITER

    Cesse a canora harmonia que forma o alterno movimento dos celestes globos; que é razão emudeçam as consonâncias, quando a maior deidade se lamenta. Não moduleis os supremos atributos de minha divindade; cantai, ou, para melhor dizer, chorai em dissonantes melodias o irremediável de minha mágoa, a violência de meu tormento e o insofrível de minha dor.

    MERCÚRIO

    Júpiter soberano, a quem não admira ver que a maior deidade que admiram as esferas enlute com suspiros as diáfanas luzes do Firmamento! Se em teu poder existem os raios, porque não castigas a causa sacrílega de teus pesares?

    JÚPITER

    Ai, Mercúrio, que este raio que ignominiosamente adorna a minha omnipotente dextra é o que agora se fulmina contra o meu peito! Não é esta aquela trissulca chama que devorou a soberba dos Ancélados e Tifeus; é, sim, a frágua de todos os raios, a fúria de todas as fúrias e o estrago de todos os estragos; e, para melhor dizer, é o simulacro de Cupido, cuja voadora seta, penetrando as eminências do monte Olimpo, sacrilegamente atrevida, chegou a penetrar a imunidade de meu peito; e assim, como ofendido e lastimado, já que nesse rapaz tirano, nesse monstro, nesse Cupido, não posso vingar o mal que padeço, quero ao menos na sua estátua debuxar as linhas da minha vingança.

    MERCÚRIO

    Explica-me, Senhor, a causa de tanto excesso; que, suposto sejas o mais sábio de todos os deuses, também não duvidas que sou Mercúrio, inventor das subtilezas e estratagemas; e assim, já que o teu entendimento se acha preocupado de um frenético delírio, com maior razão poderei eu acertar na cura de teus males.

    JÚPITER

    Pois atende, Mercúrio.

    Canta Júpiter a seguinte ária e

    Recitado

    Eu vi a Alcmena, ai, Alcmena ingrata!
    Aquela, cujo assombro peregrino
    foi rémora atractiva, que, atraindo
    a isenção de toda esta divindade,
    por ela em vivas chamas,
    extremoso, suspiro,
    querendo amante em lânguidos delíquios
    sacrificar-me todo nos altares
    desta melhor, mais bela Citereia;
    e por mais que publico em triste pranto
    tanto amor, tanto incêndio, extremo tanto,
    nem por isso Cupido compassivo
    alívio facilita ao meu tormento;
    antes, porém, mais bárbaro e tirano,
    por vingar-se talvez de meus poderes,
    dificulta o remédio às minhas ânsias.
    E, pois, cruel amor, falsa deidade,
    o suspiro que exalo não te abranda,
    o impulso feroz de meus rigores
    saberá castigar-te, lacerando
    teu simulacro,
    que, em átomos partido, (Despedaça a estátua.)
    dos ventos serás rápido despojo.
    Sinta, pois (ai de mim!) , a minha ira
    quem contra o Deus Tonante assim conspira.

    ÁRIA

    De amor todo abrasado
    me sinto que louco
    e aflito pouco a pouco
    me vai faltando a vida,
    me vai matando a dor
    Ah, querida, ingrata Alcmena,
    quanto susto e quanta pena
    me provoca o teu rigor!


    MERCÚRIO

    Ora, Senhor, se Alcmena é a causa por que suspiras, e só desejas conseguir a delícia de sua formosura, verás como alcanças o que procuras.

    JÚPITER

    De que sorte?

    MERCÚRIO

    Eu te digo; dá-me atenção. Bem sabes, Senhor, que Anfitrião, marido de Alcmena, se acha ocupado na guerra dos Telebanos contra El-Rei Terela; e parecia-me que, tomando tu a forma de Anfitrião, fingindo teres já chegado da guerra, podias fielmente, sem experimentares os rigores e desdéns de Alcmena, conseguir dela o que desejas; porque, vendo ela em ti copiada a imagem e figura de seu esposo Anfitrião, como a tal te facilitaria o mesmo que agora como a Júpiter te nega.

    JÚPITER

    Só tu, Mercúrio, com as tuas subtilezas, podias dar em tão subtil ideia, pois com ela já posso chamar-me venturoso; e, para principiar a sê-lo, já me vou disfarçar na forma de Anfitrião e depor a majestade de meus raios. Oh, quem dissera que para eu alcançar a formosura de Alcmena deixe os resplandores do Olimpo!

    MERCÚRIO

    Para que se logre melhor a empresa, eu também irei contigo disfarçado na figura do criado de Anfitrião, chamado Saramago, ajudar-te a lograr o teu intento.

    JÚPITER

    Não deixo de agradecer-te, Mercúrio, que por amor do meu amor tomes a figura de um lacaio esquálido e sórdido.

    MERCÚRIO

    Senhor, o ofício de corrector nunca esteve mal a Mercúrio; quanto mais que, para servir-te, desejo transformar-me ainda na mais vil criatura.

    JÚPITER

    Pois não dilatemos a empresa; vamos, Mercúrio, e seja esta noite o dia de minha ventura.

    MERCÚRIO

    Vamos, Júpiter, a levar um passatempo na Terra.

    JÚPITER

    Já não se me dá que repita festivo o celeste coro; pois que já posso cantar o meu triunfo.

    Canta o coro como no princípio

    O Númen supremo
    do Olimpo sagrado, etc.


    CENA III

    Praça com pórtico. Sai Saramago e canta a seguinte

    ÁRIA

    Venho da guerra e vou para casa.
    Venho da guerra e vou para a guerra.
    Se há guerra na guerra,
    há guerra na casa.
    A casa da guerra
    é a guerra da casa.
    Venho da guerra e vou para a guerra;
    venho da guerra e vou para casa.

    Representa

    E, quando nada, estamos defronte da nossa casa, que mal cuidei que a tornasse a ver! Ah, Senhores, grande cousa é o buraco da nossa casa, mais que seja esburacada, que mais val a casa com buracos, do que o corpo com os das balas; e, pois das já passaram, sem eu ficar passado, vamos ao caso. Parece-me que já estou vendo chegar eu à porta e petiscar no ferrolho, chegar à janela a minha Cornucópia e, apenas me vê, lançar-se logo da janela abaixo e levá-la o Diabo de meio a meio; e ali se abraça comigo, e eu com ela, e assim todos juntos acharmos a Senhora Alcmena, e logo perguntar-me: «Que novas me dás do meu Anfitrião?» E eu, apressado, lhe respondo: «Ele fica com saúde, com uma perna quebrada; e, para livrar-te de sustos, aqui me envia, que por esta via te diga que ele rebenta aqui até pela manhã e que no entanto te vás divertindo com esta jóia, que foi de El-Rei Terela, a qual te manda, por mim, que sou muito fiel». E não há dúvida que Alcmena, vendo a jóia e ouvindo a notícia, me mete à força na algibeira vinte dobrões; e, se isto há-de ser assim, não te dilates, Saramago! Se agora és Saramago, verde na esperança do prémio, logo serás Saramago, maduro na posse do fruto. Ora vamos andando para. casa., que já a Aurora em gargalhadas de luzes começa a rir-se com as cócegas do Sol.

    Ao ir-se, sai da porta um cão, que ladrará todas as vezes que se vir este sinal *. Ladra.

    * Mau, mau! Que é isto? Ronda? Que escapasse eu da barafunda da batalha e que só de malsins não possa livrar-me! * Pergunta quem sou?! Sou Saramago, que vou para casa de minha ama, a Senhora Alcmena. Que armas trago? Eu não tenho armas, que sou mecânico.* Donde venho? E a ele que lhe importa? *** Tenho mão! À que de El-Rei! Esperem vocês, que eu cuidei que era gente e é um cão! Ora vejam o que faz o medo! É cão, não há dúvida! Ai, que é a cadela de minha mulher, que dormiu fora esta noite, rondando algum osso! Olhem a festa que me faz! Pois eu também hei-de corresponder-lhe, que agora uma cadela não há-de ser mais cortês do que eu.


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