Correia Garção

Pedro António Correia Garção (1724-1772) nasceu em Lisboa. Frequentou o curso de Direito da Universidade de Coimbra, mas teve de abandonar os estudos, tornando-se oficial de secretaria e redactor da Gazeta de Lisboa. É considerado um dos mais importantes poetas neoclássicos da litratura portuguesa. Pertenceu à Arcádia Lusitana, utilizando o pseudónimo de Corydon Erimantheo. As suas poesias foram publicadas em 1778 num só volume intitulado Obras Poéticas. Escreveu duas comédias: Teatro Novo e Assembleia ou Partida.

Outras páginas sobre o autor:

  • Obras Integrais de Autores Portugueses do Século XVIII



  • OBRAS POÉTICAS


    CANTATA DE DIDO

    Já no roxo oriente branqueando,
    As prenhes velas da troiana frota
    Entre as vagas azuis do mar dourado
    Sobre as asas dos ventos se escondiam.
    A misérrima Dido,
    Pelos paços reais vaga ululando,
    C'os turvos olhos inda em vão procura
    O fugitivo Eneias.
    Só ermas ruas, só desertas praças
    A recente Cartago lhe apresenta;
    Com medonho fragor, na praia nua
    Fremem de noite as solitárias ondas;
    E nas douradas grimpas
    Das cúpulas soberbas
    Piam nocturnas, agoureiras aves.
    Do marmóreo sepulcro
    Atónita imagina
    Que mil vezes ouviu as frias cinzas
    De defunto Siqueu, com débeis vozes,
    Suspirando, chamar: – Elisa! Elisa!
    D'Orco aos tremendos numens
    Sacrifícios prepara;
    Mas viu esmorecida
    Em torno dos turícremos altares,
    Negra escuma ferver nas ricas taças,
    E o derramado vinho
    Em pélagos de sangue converter-se.
    Frenética, delira,
    Pálido o rosto lindo
    A madeixa subtil desentrançada;
    Já com trémulo pé entra sem tino
    No ditoso aposento,
    Onde do infido amante
    Ouviu, enternecida,
    Magoados suspiros, brandas queixas.
    Ali as cruéis Parcas lhe mostraram
    As ilíacas roupas que, pendentes
    Do tálamo dourado, descobriam
    O lustroso pavês, a teucra espada.
    Com a convulsa mão súbito arranca
    A lâmina fulgente da bainha,
    E sobre o duro ferro penetrante
    Arroja o tenro, cristalino peito;
    E em borbotões de espuma murmurando,
    O quente sangue da ferida salta:
    De roxas espadanas rociadas,
    Tremem da sala as dóricas colunas.
    Três vezes tenta erguer-se,
    Três vezes desmaiada, sobre o leito
    O corpo revolvendo, ao céu levanta
    Os macerados olhos.
    Despois, atenta na lustrosa malha
    Do prófugo dardânio,
    Estas últimas vozes repetia,
    E os lastimosos, lúgubres acentos,
    Pelas áureas abóbadas voando
    Longo tempo depois gemer se ouviram:

    «Doces despojos,
    Tão bem logrados
    Dos olhos meus,
    Enquanto os fados,
    Enquanto Deus
    O consentiam,
    Da triste Dido
    A alma aceitai,
    Destes cuidados
    Me libertai.

    «Dido infelice
    Assaz viveu;
    D'alta Cartago
    O muro ergueu;
    Agora, nua,
    Já de Caronte,
    A sombra sua
    Na barca feia,
    De Flegetonte
    A negra veia
    Surcando vai.



    SONETOS

    1

    Cheios de espessa névoa os horizontes,
    Espantosas voragens vem saindo!
    Foi-se o Sol entre as nuvens encobrindo,
    Voltando para o mar os quatro Etontes

    Caiu a grossa chuva pelos montes,
    Os incautos pastores aturdindo;
    E engrossados os rios vão cobrindo
    Com embate feroz as curvas pontes

    Com medonho estampido, navorosos.
    Os longos ecos dos trovões soando.
    A rezar nos pusemos temerosos.

    Parou a chuva; correm sussurrando
    Os torcidos regatos vagarosos;
    Não me atrevo a sair, fico jogando.

    2

    Ao som dos duros ferros que arrastava,
    A lira de ouro Corydon tangia:
    De Márcia o doce nome repetia,
    Mas no meio do canto soluçava.

    No rosto macerado, que enfiava,
    O lagrimoso pranto reluzia,
    E nos olhos, que aos altos céus erguia,
    O pensamento intrépido voava.

    Não se assombra de ventos insofridos,
    Nem com ousado lenho arar intenta
    O pólo do futuro nebuloso;

    Menos chora terrenos bens perdidos.
    De pouco um peito grande se contenta:
    Antes quer ser honrado que ditoso.



    EPÍSTOLA

    Se não te enjoas de comer sem pompa
    Em toalhas do Minho, em pobre mesa
    Onde não tine a rica porçolana,
    Nem cansa os olhos trémulo reflexo
    De burnida colher, de refulgente
    Britânico saleiro, caro Amigo,
    Sábio, ilustre Sarmento; ou não te assusta
    O suspeito convite de um poeta
    Afeito a dura fome, a duro frio,
    Cujo humilde tugúrio Noto açouta,
    E Áfrico lhe arrepia as leves telhas,
    Hoje podes cear na Fonte Santa:
    Alegres beberemos. Na cozinha
    Estala a seca lenha, brilha o fogo;
    O negro bicho ou negro cozinheiro,
    Enroscado no espeto fica assando
    Um lombo corpulento. Agora deixa
    As sérias reflexões, as esperanças
    Da branca vara, da soberba toga,
    Das rascoas vizinhas, lumes fátuos,
    Que observas com teu longo telescópio.
    A desabrida noite nos convida
    A que juntos passemos poucas horas
    Em doce trato, em doce companhia.
    Teremos bons parceiros, cartas novas,
    E em ruivos castiçais de pechisbeque
    Arderão duas cândidas bugias.
    Já na mesa fumega o precioso
    Natural elixir do rico Oriente,
    O bom chá quotidiano, mais pedido
    Que o pão de cada dia, nesta casa.

    (...)

    Voltar à página inicial