Abade de Jazente

Paulino António Cabral (1719-1789), Abade de Jazente, nasceu e faleceu em Amarante. Foi abade da freguesia de Jazente, advindo-lhe daí o nome por que é mais conhecido. Pertenceu à Arcádia Portuense, juntamente com Xavier de Matos, seu colega de Coimbra, cidade onde ambos estudaram. Embora clérigo, escreveu poesias onde se canta o amor epicurista e horaciano. As suas obras foram publicadas em dois volumes: Poesias de Paulino Cabral de Vasconcelos, Abade de Jazente, vol. I (Porto, 1786) e Poesias de Paulino António Cabral, vol. II (Porto, 1787).

Outras páginas sobre o autor:

  • Obras Integrais de Autores Portugueses do Século XVIII



  • ALGUNS SONETOS


    Amor é um arder, que se não sente;
    É ferida, que dói, e não tem cura;
    É febre, que no peito faz secura;
    É mal, que as forças tira de repente.

    É fogo, que consome ocultamente;
    É dor, que mortifica a Criatura;
    É ânsia a mais cruel, e a mais impura;
    É frágoa, que devora o fogo ardente.

    É um triste penar entre lamentos,
    É um não acabar sempre penando;
    É um andar metido em mil tormentos.

    É suspiros lançar de quando, em quando;
    É quem me causa eternos sentimentos:
    É quem me mata, e vida me está dando.

    I, 55




    Brutos penhascos, rústicas montanhas,
    Medonhos bosques, hórrida maleza,
    Que me vedes, coberto de tristeza,
    Saudoso habitador destas campanhas.

    Para me suavizar mágoas tamanhas,
    Alteremos um pouco a Natureza;
    Civilize meu mal vossa dureza,
    Barbarizai-me vós estas entranhas.

    Meu pranto vos comova algum afecto
    De branda compaixão; pois da impiedade
    Encontra sempre em vós um duro objecto.

    Pode ser, que com esta variedade,
    Seja mais agradável vosso aspecto,
    Sinta eu menos cruel minha saudade.

    I, 11



    A Manhã fresca está, sereno o vento,
    O monte verde, o rio transparente,
    O bosque ameno; e o prado florescente
    Fragâncias exalando cento a cento.

    O Peixe, a Ave, o Bruto, o branco Armento,
    Tudo se alegra; e até sair a gente
    Dos rústicos casais se vê contente,
    E discorrer com vário movimento.

    Este cava, outro ceifa e aquele o gado
    Traz no campo a pastar de posto em posto;
    Outro pega na fouce, outro no arado.

    Tudo alegre se mostra: e só disposto
    Tem contra mim o indispensável fado,
    Que em nada encontre alívio, em nada gosto.

    I, 41




    Tudo se muda: o génio unicamente
    Em ser constante nos mortais porfia,
    Connosco a vir ao mundo principia,
    Connosco morre, e nunca se desmente.

    Ele as paixões na idade mais florente,
    Ele as acende na velhice fria:
    É sempre o mesmo, e em nada se varia
    Por mais que à vida a duração se aumente.

    Dissimula-se sim, mas qualquer hora,
    Apesar da mais rígida cautela,
    Nos entrega cruel, e as faces cora.

    Assim o antigo ardor, que me atropela,
    Assim me incita, ó Nize, a que inda agora
    Te adore amante, e te celebre bela.

    I,167



    VERDADES SINGELAS


    Estas verdades singelas,
    Sem artifício e conceito,
    Pode-as ler qualquer sujeito;
    E, se vir que alguma delas
    Lá pela roupa lhe toca,
    Tape a boca.

    Dizer um senhor fidalgo
    Que tem três contos de renda;
    E que gasta uma fazenda
    Só em sustentar um galgo,
    Que todas as lebres mata,
    Patarata.

    Querer outro senhoria
    Quando tinham seus avós.
    Um tu, um você, um vós,
    Somente por cortesia
    Do cura, ou do senhorio,
    Desvario.

    Trazer de luto os criados
    Um senhor mui reverente,
    E dizer a toda a gente
    Que gastou três mil cruzados
    De seu pai no mortuário,
    Gabatório.

    Andar outro embonecado,
    Ter amores, ter afectos,
    E depois de ter já netos,
    Andar inda namorado
    Sem se lembrar da velhice,
    É tontice.

    Dizer um por vários modos
    Que nos seus antepassados
    Tem trinta réis coroados
    Do claro sangue dos Godos
    Que pelas veias lhe gira,
    É mentira.

    Andar outro como brasa
    Vendendo soberba a molhos,
    E metendo pelos olhos
    Os brasões de sua casa,
    E de seus avós o foro,
    Desaforo.

    Andar um para casar,
    Buscando uma entre mil
    Senhora rica, e gentil;
    E entender que há-de achar
    Por cima disto donzela,
    Bagatela.

    Insultar sem causa a gente,
    Dar empuxões em quem passa;
    Querer que lhe façam praça,
    Ser por ofício valente,
    Ser carrancudo e severo,
    Destempero.

    O que consente à mulher
    Andar na dança aos boléus,
    Escrever a chichisbéus,
    E que lhe deixa fazer
    Em tudo a sua vontade,
    Vá ser frade.

    Na de amor louca contenda
    Andar sempre em viva roda;
    Gastar nisto a vida toda,
    O tempo, a vida a fazenda,
    Depois ficar pelitrate,
    Disparate.

    O ter sempre a mesa posta,
    Jogar, andar em caçadas,
    Ter dama, fazer jornadas,
    E nunca tomar resposta
    A quem lhe pede dinheiro,
    Cavalheiro.

    O que tendo filha ou filho,
    Os vê fazer a miúdo,
    Este calção de veludo,
    Aquela rico espartilho,
    E mostra que não entende.
    Que pretende?

    Sustentar doze cadelas,
    Um sacador, um furão,
    Só por numa ocasião
    Sair ao monte com elas
    E caçar coelhos poucos,
    É de loucos.

    Ficar um filho segundo
    Sendo da casa embaraço;
    E viver como madraço
    Com um sossego profundo
    Tocando frauta ou viola,
    Mariola.

    A viúva rica e nova,
    Que na igreja muito atenta
    Lança devota água benta
    De seu marido na cova
    Só com a ponta do dedo,
    Casa cedo.

    A que não conhece o mês
    E que diz que tem catarro,
    Ou é velha ou come barro;
    Ou algum excesso fez,
    Que a curar-lhe leva às vezes
    Nove meses.

    A que entende que nunca
    Pode amor entrar com ela,
    Seja ingrata, seja bela
    Lá lhe há-de vir a maré
    Em que caia a formosura
    De madura.

    A senhora a quem o criado
    Descalça o sapato e meia,
    Se ela não é muito feia
    E o moço não for honrado,
    Faz um bucho retorcido
    A seu marido.

    A que tem dores da madre,
    Que remédio aos mestres pede,
    Que vai ao padre da Rede,
    Ou toma cedo compadre
    E acrescenta a gente em casa,
    Ou se casa.

    Se não é rica uma dama
    E estraga airosa veludos;
    Se acaso os homens sisudos
    Lhe lançam nódoas na fama
    Pela ver com indecência,
    Paciência.

    A que dança de arremesso,
    Que faz versos e é cortês,
    Que joga e fala francês,
    Enfim mulher, que eu conheço,
    Seja clara, seja bela
    Fugir dela.

    A que lê livros de amores,
    Que sabe deitar um mote,
    Que estraga olandas a cote,
    Que faz cortejo aos senhores,
    Se por milagre é donzela,
    Ter mão nela.

    Sair sem causa da terra,
    Ir vagar pelas estranhas,
    Ir por vontade às campanhas
    E trazer sempre na guerra
    Pendente a vida de um fio,
    Desvario.

    Ser de damas confessor
    E ser cónego em sé vaga,
    E ter quem lhe cure a chaga
    Do tirano e cego amor
    Lá muito pela escondida,
    Boa vida.

    Servir a el-rei toda a vida,
    E depois em recompensa
    Ter trinta mil réis de tença
    Que é somente recebida
    Lá no cabo da velhice,
    Parvoíce.

    Trazer títulos de Roma
    Sem primeiro ter que gaste,
    E ter bispo de Tagaste
    Sem ter já rendas que coma,
    Pagar a bula e gabela,
    Bagatela.

    Uma fidalga noviça,
    Que quer, com grande insolência,
    Ser tratada de excelência,
    Com chinelas de cortiça
    E manto de tafetá,
    Arre lá.

    Jogar de abono, e perder,
    E não ter com que pagar;
    Ter amor e ver mudar
    A dama que bem se quer,
    E não ter lenha no Inverno,
    É inferno.

    Ministro que lê Descartes
    Em vez de ler por Temudo,
    Ou que faz na solfa estudo
    Mais que nos feitos das partes,
    Está mui bem premiado
    Aposentado.

    No que tem filhas bonitas,
    E no dia dos seus anos
    Consente que alguns maganos
    Lhe façam não só visitas
    Mas também algum calote,
    Chicote.

    A que bebe sem vergonha,
    Que toma tabaco e dança,
    Que do jogo não se cansa,
    Que é toda guapa e risonha,
    Se por milagre é donzela,
    Ter mão nela.

    Ser bispo sem jurisdição,
    Capitão de auxiliares,
    Cadete nos militares,
    Cavalheiro de esporão,
    E casar-se na velhice,
    Parvoíce.

    O que passeia montado
    Sobre rocim muito podre,
    Com xairel de pele de odre,
    Com teliz esfarrapado
    E lacaio de capote,
    Dom Quixote.

    A que tem só um amante
    E lhe manda a consoada;
    E, se o vê fazer jornada,
    Nunca mais sobe ao mirante
    Pelo respeitar ausente,
    É inocente.

    Ver uma dama noviça
    Querer ela ser senhora
    Tendo vindo de pastora,
    Que de alguém o afecto atiça
    Só por ter quem a sustente,
    Não é gente.

    Ver andar de ceia em ceia
    Alguns, que aqui não nomeio,
    Ir ao jogo, ir ao passeio,
    E pretenderem que eu creia
    Que vão só tomar café,
    Não bofé.

    Naquele que anda em carroça
    E pretende senhoria,
    Sem se lembrar que algum dia
    Andava seu pai de croça
    E sua mãe de tamanca,
    Boa tranca.

    Letrado que atrasa a causa
    Com mui enredos astutos,
    Que lê feitos circundutos,
    E se passeia com pausa,
    Falando só no escritório,
    Farelório.

    Mercador que faz rebates
    Depois de casar as filhas,
    Que manda navio às ilhas
    E não paga aos calafates
    Senão depois de citado,
    Tem quebrado.

    O que nega a mão direita
    A todo o clérigo, e frade,
    E o que por mais vaidade
    A senhoria lhe aceita,
    E lhe fala impessoal,
    Animal.

    O que namora a mulher
    Na igreja ou camarote;
    E que a deixa dar um mote
    Em noite de baile, e quer
    Que aos mais pareça discreta,
    É pateta.

    O que vai sempre ao café,
    Que traz papéis no cabelo,
    Que dá muito ao cotovelo
    E que em passo de cupé
    Caminha pelo ladrilho,
    Peralvilho.

    Se às vezes traz a verdade
    Algum dissabor consigo,
    Aquele que das que digo
    Não mostrar nunca vontade,
    Tenha ao menos por prudência
    Paciência.

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