António Feijó

António Joaquim de Castro Feijó (1859-1917) nasceu em Ponte de Lima e faleceu em Estocolmo. Estudou Direito em Coimbra, ingressando na carreira diplomática. Exerceu cargos diplomáticos no Brasil e na Suécia. Casou com uma senhora sueca, que morreu prematuramente. Fundou em 1880 na cidade de Coimbra, com Luís de Magalhães, a Revista Científica e Literária. Colaborou nas revistas Arte, A Ilustração Portuguesa, O Instituto, Novidades, Museu Ilustrado, etc. Como poeta, António Feijó é habitualmente ligado ao Parnasianismo. Obras: Transfigurações (1882), Líricas e Opulentas (1884), À Janela do Ocidente (1885), Cancioneiro Chinês (1890), Ilha dos Amores (1897), Bailatas (1907), Sol de Inverno (1922), Poesias Completas de António Feijó (1940).

  • Versão integral do livro Sol de Inverno



    SOL DE INVERNO (extracto)


    CLEÓPATRA

    A José Coelho da Mota Prego

    Como a concha de nácar luminoso
    Em que Vénus surgiu, risonha e nua,
    A Galera vogava ao sol radioso
    Com a graça dum Cisne que flutua.

    Soltas ao vento as velas de brocado,
    Ao som das Liras, sobre o rio imenso,
    Dos remos de oiro e de marfim sulcado,
    O destino do Mundo ia suspenso!

    Como nuvens correndo, as horas passam;
    Já se divisa o porto; o Sol declina,
    E enquanto as velas, marinheiros, cassam,
    Ela que um sonho de poder domina,

    Diante do espelho, a reflectir, perscruta
    Do seu corpo a beleza profanada,
    Como o rufião nocturno, antes da luta,
    Examinando a lâmina da espada!


    António Feijó, Sol de Inverno, 1922




    A LENDA DOS CISNES

    A Júlio Dantas

    Gedulde Dich, stilles, hoffendes Herze!
    Was Dir im Leben versagt ist, weil Du
    es nicht ertragen könntest, giebt Dir
    der Augenblick Deines Todes.


    António Feijó, Sol de Inverno, 1922




    HERDER

    Da praia longínqua, na areia doirada,
    O Cisne pensava, fitando a Alvorada:

    – «Que imensa ventura, na minha mudez,
    Se dado me fosse cantar uma vez!

    Meu canto seria, na luz do arrebol,
    Dos hinos mais altos à glória do Sol...

    Não é das gaivotas e gansos do lago
    O canto que em sonhos ardentes afago;

    É quando nos bosques as aves escuto
    Que a inveja confrange minha alma de luto.

    Se a Aurora se lança do cume dos montes,
    Até de alegria murmuram as fontes;

    Só eu, passeando o meu tédio supremo,
    Nem rio, nem choro, nem canto, nem gemo.

    O Sol, que já vejo surgindo do Mar,
    Tem dó de quem, mudo, não pode cantar!» –

    E o Cisne, em silêncio, chorava, escutando
    A orquestra das aves que passam em bando.

    Das águas rompia a quadriga de Apolo,
    E o pobre a cabeça escondia no colo...

    Mas Febo detém-se nas nuvens ao vê-lo,
    Com feixes de raios no fulvo cabelo,

    E diz-lhe, sorrindo, num halo de fogo:
    – «No Olimpo sagrado ouviu-se o teu rogo...» –

    E nesse momento a Lira Sem Par
    Da mão luminosa deixou resvalar...

    O Cisne, orgulhoso da graça divina,
    Da Lira de Apolo as cordas afina,

    E rompe cantando... Calaram-se as fontes,
    Calaram-se as aves... As urzes dos montes

    Tremiam de gozo a ouvi-lo cantar...
    E o vento sonhava na espuma do Mar.

    O Cisne cantava, tirando da Lira
    Um hino que nunca na terra se ouvira;

    Não pára, nem sente, na sua emoção,
    Que a vida lhe foge naquela canção.

    Mas quando, entre nuvens, a tarde caía
    no enlevo do canto que a essa hora gemia,

    E Apolo no seio de Tétis desceu,
    O pobre do Cisne, cantando, morreu...

    Gemeram as aves; choraram as fontes;
    Torceu-se nas hastes a giesta dos montes,

    E o mar soluçava na tarde sombria,
    Que o manto de luto com astros tecia.

    Solícita espera-o, das águas à beira,
    Do Cisne, já morto, fiel companheira;

    Espera que o Esposo de pronto regresse,
    Mas treme e suspira, que a Noite já desce...

    As águas luzentes parecem-lhe, ao vê-las,
    Um pano de enterro picado de estrelas.

    Então, no seu luto, sentindo que morre,
    Oceanos e praias distantes percorre;

    Mergulha nas águas, coleia nas ondas,
    Espreita as galeras de velas redondas,

    Que ao longe parece que vão a voar...
    E o Cisne não volta, não pode voltar!

    Chorosa viúva, nas águas desliza,
    Levada na fresca salsugem da brisa...

    No seu abandono nem sente canseira;
    Caminha, caminha, fiel companheira,

    Chorando o perdido, desfeito casal...
    Tão funda era a mágoa, tão grande o seu mal,

    Que o peito sentindo de dor estalar,
    – De dor e de angústia começa a cantar!

    E canta com tanta ternura e paixão,
    Que a Vida lhe foge naquela canção.

    As aves despertam; calaram-se as fontes
    Nas hastes tremiam as urzes dos montes;

    A Lua escutava; detinha-se a Aurora,
    E as vagas gemiam no vento que chora...

    Na terra, no espaço, nos astros, no céu,
    Mais alta harmonia ninguém concebeu;

    E os Deuses recebem, ouvindo-a, a chorar,
    A alma do Cisne que expira a cantar...

    Desde esse momento, no Olimpo onde entraram,
    Em honra dos Cisnes que tanto se amaram,

    Das almas que foram leais e sinceras,
    se Vénus se mostra, surgindo da bruma,
    São eles que tiram, nas altas esferas,
    A concha de nácar, cercada de espuma...


    António Feijó, Sol de Inverno, 1922




    O AMOR E O TEMPO

    Pela montanha alcantilada
    Todos quatro em alegre companhia,
    O Amor, o Tempo, a minha Amada
    E eu subíamos um dia.

    Da minha Amada no gentil semblante
    Já se viam indícios de cansaço;
    O Amor passava-nos adiante
    E o Tempo acelerava o passo.

    – «Amor! Amor! mais devagar!
    Não corras tanto assim, que tão ligeira
    Não corras tanto assim, que tão ligeira
    Não pode com certeza caminhar
    A minha doce companheira!»

    Súbito, o Amor e o Tempo, combinados,
    Abrem as asas trémulas ao vento...
    – «Por que voais assim tão apressados?
    Onde vos dirigis?» – Nesse momento.

    Volta-se o Amor e diz com azedume:
    – «Tende paciência, amigos meus!
    Eu sempre tive este costume
    De fugir com o Tempo... Adeus! Adeus!»

    António Feijó, Sol de Inverno, 1922




    TIMIDEZ DE AMOR

    Perguntas donde vem a timidez estranha,
    Este quase terror com que te falo e escuto,
    Como se a sombra hostil duma grande montanha,
    Que se erguesse entre nós, me cobrisse de luto.

    Ignoras a razão deste absurdo respeito
    Com que te beijo a mão, que estendes complacente,
    Fria do ardor que tens concentrado no peito,
    Que mão fria é sinal de coração ardente.

    E admiras-te de ver que os olhos baixo e tremo,
    – Se passas como um sol de plantas cercado –
    Sem dar mostras sequer desse orgulho supremo
    De quem se sente eleito entre todos, e amado!

    Não podes conceber que uma paixão tão alta
    Se vista de recato ou de pudor mesquinho...
    Mas, se é sincero, o Amor só a ocultas se exalta,
    Faz – se tanto maior quanto é discreto o ninho.

    E tudo o que crês fingida gravidade
    É uma íntima oblação, pois nas almas piedosas
    O Verdadeiro Amor é feito de humildade:
    Sobre o anel nupcial não há pedras preciosas.

    António Feijó, Sol de Inverno, 1922




    EU E TU...

    Dois! Eu e Tu, num ser indissolúvel! Como
    Brasa e carvão, centelha e lume, oceano e areia,
    Aspiram a formar um todo,– em cada assomo
    A nossa aspiração mais violenta se ateia...

    Como a onda e o vento, a lua e a noite, o orvalho e a selva,
    – O vento erguendo a vaga, o luar doirando a noite,
    Ou o orvalho inundando as verduras da relva –
    Cheio de ti, meu ser d'eflúvios impregnou-te!

    Como o lilás e a terra onde nasce e floresce,
    O bosque e o vendaval desgrenhando o arvoredo,
    O vinho e a sede, o vinho onde tudo se esquece,
    – Nós dois, d'amor enchendo a noite do degredo,

    Como parte dum todo, em amplexos supremos
    Fundindo os corações no ardor que nos inflama,
    Para sempre um ao outro, Eu e Tu pertencemos,
    Como se eu fosse o lume e tu fosses a chama.

    António Feijó, Sol de Inverno, 1922




    FÁBULA ANTIGA

    No princípio do mundo o Amor não era cego;
    Via mesmo através da escuridão cerrada
    Com pupilas de Lince em olhos de Morcego.

    Mas um dia, brincando, a Demência, irritada,
    Num ímpeto de fúria os seus olhos vazou;
    Foi a Demência logo às feras condenada,

    Mas Júpiter, sorrindo, a pena comutou.
    A Demência ficou apenas obrigada
    A acompanhar o Amor, visto que ela o cegou,

    Como um pobre que leva um cego pela estrada.
    Unidos desde então por invisíveis laços
    Quando a Amor empreende a mais simples jornada,
    Vai a Demência adiante a conduzir-lhe os passos

    António Feijó, Sol de Inverno, 1922


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