Bulhão Pato

Raimundo António de Bulhão Pato (03/03/1829-24/08/1912) nasceu em Bilbau, Espanha, e faleceu no Monte da Caparica, perto de Lisboa. Era filho de portugueses, tendo seu pai, Francisco Bulhão Pato, sido conhecido como poeta. Passou a sua infância numa aldeia perto de Bilbau. A família regressa a Lisboa e Bulhão Pato matricula-se na Escola Politécnica. Começa a colaborar em vários jornais e revistas, de que se destacam O Panorama e a Revista Universal Lisbonense. Convive com Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Latino Coelho, Gomes da Silva, Antero de Quental e Gonçalves Crespo. Dedica-se à poesia e à tradução, vertendo para português Shakespeare, Saint-Pierre e Victor Hugo. Eça de Queirós caricaturou-o através da personagem Alencar do romance Os Maias, por ser um dos representantes do Ultra-Romantismo português. Obras: Poesias (1850), Paquita (romance, 1856), Flores Agrestes (poesia, 1870), Memórias (vários volumes, publicados entre 1877-1907).




Memórias

A PRIMEIRA VISITA AO VALE DE SANTARÉM

Aires de Sã Nogueira irmão do marquês de Sã, homem de grande actividade e empreendedor, fundou, em 1849, uma associação agrícola, chamada a Liga. As primeiras reuniões deram-se no Teatro de D. Maria II.

O pai de Rebelo da Silva, Luís António Rebelo da Silva, era homem de talento e jurisconsulto notável. Tinha a palavra exuberante, conquanto não possuísse a faísca genial do filho, e a graça viva, que se desatava em torrentes na conversação improvisa, uma das condições daquele privilegiado e robusto talento, que escreveu a Mocidade de D. João V.

Luís António, quando tinha demandas entre mãos, tornava-se terrível; era um maçador desumano! Numa palavra, declamava os autos!

– O que fazia o pasmo e muitas vezes o desespero de Alexandre Herculano, de quem era íntimo.

De uma vez, preparou ele a mala, para passar uns quinze dias na sua quinta do Vale de Santarém. Ás cinco da -manhã estava na rua, com o criado atrás, a caminho do Terreiro do Paço, para chegar ao vapor, que partia cedo. Note-se que então a viagem a Santarém levava desde as sete da manhã até às dez da noite, e às vezes mais!

Luís António descia a Rua de S. Bento – trazia nesse tempo demanda consigo -e à esquina da Calçada da Estrela deu de cara com Rodrigo da Fonseca Magalhães, que uma circunstância imprevista obrigava a sair àquela hora.

– Ó Rodrigo, tu por aqui, a estas horas?!

Rodrigo ficou varado. Conheceu-lhe logo, no aceso dos olhos, a febre da demanda. Soltou um suspiro, dizendo:

– E com muita pressa, muita pressa.

– Ora, ouve lá.

– É negócio urgentíssimo -retrucou Rodrigo, a ver se escapava.

– Escuta lá, homem. Aquele iliçador e burlão desta terra...

O burlão e iliçador era sempre o seu antagonista no pleito.

Tinha já aferrado Rodrigo pela banda do redingote. Não havia largar; possuía a garra de um falcão real!

Às dez horas, Alexandre Herculano dobrou a Calçada da Estrela, encaminhando-se para a Torre do Tombo. Vendo-os, coseu-se com a parede. Rodrigo estava lívido! Luís António suava, mas falava ainda!

Não se imaginam os gestos e os chistes de Rodrigo da Fonseca Magalhães contando esta anedota. Muitas vezes lha ouvi.

Um domingo – na Liga –, o pai de Rebelo pediu a palavra, disse a primeira frase e caiu morto.

***

Luís Augusto, filho único, ficara com todos os haveres do pai, importantes, entre os quais se contavam a casa e a quinta do Vale de Santarém. Um mês depois da morte do pai, Rebelo da Silva pediu a Herculano e a mim para que o acompanhássemos a passar uns dias na sua propriedade. Herculano, como muito entendido em coisas agrícolas, devia esclarecê-lo, indicando-lhe os meios de tirar maiores vantagens da quinta.

A viagem no vapor era tardia, mas agradável; quase sempre concorrida e animada. A primeira paragem dava-se em Alhandra, a segunda em Vila Franca de Xira, seguia-se Vila Nova e depois o Carregado. A travessia pela vala, à sirga, muito demorada e monótona; mas lá vinham umas margens bordadas de freixos e salgueiros; as batardas, atravessando com o voo descansado e a envergadura enorme; as bandadas de patos bravos no Inverno e de mancões no Verão; os pertos e longes da campina; os toiros ruminando no ervaçal, mansos, sem sombras de aspecto minaz, como se lhes não corresse no sangue a nativa ferocidade; e o campino, com o seu cavalo e a sua vara.

O nosso campino é o cavaleiro mais gentil de toda a Península. Os guardadores espanhóis são desempenados e elegantes, mas não ombreiam com os nossos, quando trajam a rigor: sapato aberto, de salto raso e prateleira, meia, calção, fivela, cinta, colete muito decotado, jaleca quase sempre ao ombro e barrete.

Os campinos, naquele tempo, eram como uma raça à parte: sem serem nómadas tinha o que quer que fosse do árabe: o cavalo, o pampilho, que é a sua lança, e a hospitalidade na poisada!

As rixas decidiam-se com um pau de cobrir. Eram os primeiros jogadores de todo o país. Desde Alhandra até à Ribeira de Santarém, campino que usasse de navalha seria a desonra de uma família, de avós a netos. Isso hoje mudou e está muito adiantado com a civilização!

Não há cavaleiro em praça, por mais destro que seja, que chegue à elegância de um campino, só, desamparado, virando um toiro, que reponta com todo o poder da sua força folgada, aos círculos, sobraçando o pampilho e metendo-lhe o ferro onde convém. É bonito e é de destemido; mas, como valor, fazem mais. – Andam lavrando com o gado bravo; há toiro que se nega a pegar à charrua? Pois não é raro o campino bater-lhe o pé e as palmas, atirar-lhe com o barrete, abrir-lhe os braços, gritando: – Entra aqui, boi real! – e pegar-lhe desembolado; isto é, jogando a vida presa a um cabelo!

***

Não há passe de capote, nem de muleta, em que o espada mais arrojado se arrisque com tamanha intrepidez!

Falando do Vale de Santarém, Alexandre Herculano disse que, depois das Viagens na minha terra, aquele sítio era como o pomo vedado. De facto, Garrett com tal correcção de linhas e propriedade de colorido o pintou, que não há tocar-lhe. Eu estava nos meus vinte anos; sabia de cor as Viagens; a imaginação era-me um pouco viva, amava a natureza e a arte.

É o que me tem valido! Se não fosse o campo e os livros, vendo isso que para aí está, e lembrando-me dos homens que me desapareceram, tinha rebentado!

Era plena Primavera. Num ramalhete ondeante de loireiros, que sombreavam a azenha, os rouxinóis cantavam e eu julgava ver os olhos verdes de Joaninha, faiscando como esmeraldas, ao escutar os hinos daqueles inovadores alados que, do cair da noite até à madrugada, improvisam, há milhares de anos, o poema vivo que faz palpitar todos os corações juvenis!

Dez anos depois, voltei a esse vale com minha irmã, no momento mais amargo da minha vida, a pouco trecho da morte de minha mãe. Vai hoje para trinta e quatro anos que isto se passou, mas tenho tão vivas como se foram ontem, na memória do coração, as finezas de todo o género que devemos a Rebelo da Silva e a sua mulher, a Srª D. Maria Henriqueta Teixeira Coelho de Melo, numa longa temporada que lá estivemos. Se não fossem eles, talvez eu tivesse perdido minha irmã, em quem o golpe produzira extraordinários fenómenos nervosos, Aquele ar, a beleza do sítio, e principalmente, e sobretudo, o fraterno carinho dos nossos hóspedes, salvaram-na!

O seu filho Luís teria então quatro anos. Era uma criança encantadora. É hoje par do Reino, homem de talento e de probidade suma.

Rebelo da Silva já não pode ver como, passado tanto, lhe sou grato ainda, mas à Srª D. Maria Henriqueta, cujas mãos beijo, aqui lhe renovo os meus agradecimentos.

No dia seguinte à nossa chegada ao Vale -da primeira vez logo de manhã, apareceu uma visita. Era um rapaz na flor da vida, nosso íntimo. Viera de Paris havia pouco, depois de ter completado brilhantemente o seu curso de engenheiro. Assistira à revolução de 48; vibrava ainda com os acontecimentos que entusiasmaram os rapazes daquele tempo. A mocidade de então ainda tinha entusiasmos e não se envergonhava deles! O amigo, que de Santarém viera visitar-nos, era Joaquim Tomás Lobo de Ávila, actual conde de Valbom.

Partimos nesse mesmo dia para sua casa. Lá passámos três deliciosos dias e mais larga seria a hospedagem afabilíssima, se não fosse a urgência de regressarmos ao Vale.

***

Viajar com Alexandre Herculano era, às vezes, ouvir lições de história, na mais elevada, elegante e ao mesmo tempo despretensiosa linguagem. Ao visitarmos as ruínas de Santarém, de uma pedra de mármore, onde o punção abrira algumas letras, de um troço de coluna gótica, de uma volta pontiaguda de abóbada, reconstruía aquele espírito de artista, com a sua grande penetração histórica, como que a primitiva fábrica. Assim nos aconteceu na Alcáçova, quando ele, comovido e entusiasmado, enfurecido às vezes, condenava os iconoclastas que tinham destruído o primor de arte de Pedro Arnaldo!

Anos depois voltou a Santarém e, a propósito da Alcáçova, escreveu uma soberba carta ao marquês de Sabugosa.

Que aprazível convivência foi a nossa no seio da família Lobo de Ávila, onde primava a mais selecta educação. Nessa família resplandecia a irmã, nos primeiros anos da mocidade, simpática, talento vivo, digno do nobre coração, tão nobre que praticou, um dia, um acto de heroicidade!

Hoje, o conde de Valbom, depois de haver exercitado, por vezes, o consulado e representado o seu país nas primeiras cortes da Europa, lá de onde em onde, -há-de relembrar esses dias que o mestre passou em sua casa e, com eles, a aragem fresca e balsâmíca da mocidade!

Monte de Caparica, Torre. Fevereiro 16, 1893.


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