Júlio Dinis

Júlio Dinis

Júlio Dinis, pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871), nasceu no Porto e foi entre esta cidade, Ovar e o Douro que passou grande parte da sua vida. Tirou o curso de medicina na Escola Médica do Porto, aliando a profissão de médico à de escritor. Os seus primeiros textos foram publicados em A Grinalda e em O Jornal do Comércio. De uma família de tuberculosos (a mãe e os irmãos morreram com essa doença), Júlio Dinis contrai também a doença e parte numa cura para a Madeira, cura esta que de pouco lhe valeu, falecendo ainda muito novo. Obras: As Pupilas do Senhor Reitor (1867), Uma Família Inglesa (1868), Serões da Província (1870), Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871), Poesias (1873) e Teatro Inédito (3 volumes – 1946-1947).

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  • Obras integrais de Júlio Dinis



    UMA FAMÍLIA INGLESA

    CENAS DA VIDA DO PORTO

    I


    Espécie de prólogo, em que se faz uma apresentação ao leitor

    Entre os súbditos da rainha Vitória, residentes no Porto, ao principiar a segunda metade do século dezanove, nenhum havia mais benquisto e mais obsequiado, e poucos se apontavam como mais fleumáticos e genuinamente ingleses, do que Mr. Richard Whitestone.

    Por tal nome era em toda a cidade conhecido um abastado negociante de fino tacto comercial e génio empreendedor, cujo crédito nas primeiras praças da Europa e da Améria, e com especialidade nos vastos empórios da Grã-Bretanha, se firmava em bases de uma solidez superabundantemente provada.

    Nos livros de registo do Bank of England, bem como nos de alguns Joint-Stock banks e dos banqueiros particulares da City ou de West-End, podia-se procurar com êxito documentos justificativos deste crédito florescente.

    Não era Mr. Richard homem para seguir somente caminhos batidos, nem para empalidecer ao abalançar-se em veredas não arroteadas, onde se achava a sós com os seus esforços e tenacidade.

    Por vezes arriscara capitais a inaugurar companhias, a plantar novos ramos de comércio, a auxiliar indústrias nascentes, aventurando assim proveitosos exemplos, para serem seguidos depois, já com melhores garantias de lucro, por seus colegas, caracteres em geral cautelosos e positivos e sempre desconfiados a respeito de inovações.

    Apesar disso, as crises, essas derruidoras tempestades tão frequentes na vida do comércio, tinham passado por cima da casa Whitestone, respeitando-a. Através das nuvens negras, que tantas vezes assombram o mundo monetário, vira-se sempre brilhar a firma do honrado Mr. Richard, com o esplendor tradicional; enquanto que não sorriam fados tão propícios às de muitos meticulosos e precatados, não obstante egoístas abstenções.

    Era o caso de mais uma vez repetir o Audaces fortuna... de já estafada memória.

    Esta imunidade, em parte devida à lúcida inteligência, com a qual Mr. Richard sabia superintender nos variados negócios do seu trato, em parte a não sei que benigno espírito, ou acaso feliz, a que muitas vezes parece andar subordinada a fortuna, valera-lhe uma ilimitada confiança entre todos, com quem o negócio o ligava, confiança da qual, nem em circunstâncias frívolas, se mostrou nunca indigno depositário.

    O quotidiano aparecimento do negociante estrangeiro na Praça – nome que entre nós se dá ainda à Rua dos Ingleses, principal centro de transacções do alto comércio portuense – festejavam-no benevolentes sorrisos, rasgadas e pressurosas reverências, frases de insinuantes amabilidades e afectuosos shake-hands, segundo o mais ou menos adiantado grau de familiaridade, que cada qual mantinha com ele.

    Ninguém se dispensava de qualquer destas demonstrações de estima, ou as impusesse o prestígio dos avultados capitais e da social liberalidade do comerciante britânico, ou como de preferência opinarão os que melhor conceito formam dos homens – um longo passado sem mancha, uma rectidão e cavalheirismo, aquilatados todos os dias.

    Mr. Whitestone não se deixava porém desvanecer com estas homenagens dos seus confrades, aliás merecidas.

    Decididamente não era a vaidade o seu defeito dominante. Aspirando essa espécie de incenso moral, que tão bem formadas cabeças atordoa, não sentia, no íntimo, turbar-se a limpidez, verdadeiramente cristalina, da razão, nele pouco sujeira a esvaimentos.

    Os gelos daquele coração, formado e desenvolvido a 51 graus de latitude setentrional, não se fundiam com tão pouco.

    Loas, hinos encomiásticos, capazes, ainda que em prosa, de atemorizar as modéstias menos esquivas, protestos hiperbólicos de veneração a todo o transe, tudo isso escutava friamente e sem nem sequer experimentar certa agradável e voluptuosa titilação da alma – se me admitem a frase – que em quase todos os filhos de Eva – primeira e mal estreada vítima da lisonja – produzem sempre os panegíricos do merecimento próprio, entoados por bocas alheias.

    A mesma indiferença, a mesma, senão absoluta impassibilidade, estabilidade de razão pelo menos, com que, uns após outros, esvaziava copos de cerveja e cálices do Porto e Madeira, de rum, de conhaque, de kummel, de gingerbeer, e até de absinto, libações que a qualquer pessoa menos inglesmente organizada ameaçariam, em pouco tempo, com as mais pavorosas consquências de um completo alcoolismo; essa mesma indiferença e impassibilidade opunha ao efeito, não menos inebriante, das lisonjas de que lhe enchiam os ouvidos.

    A eloquência cortesã dos seus muitos entusiastas mais do que uma vez a recebia assobiando distraidamente, mas sem a menor afectação, o nacional God save the queen, ao qual marcava o compasso com a cabeça ou com a bengala.

    Não se dava ao trabalho de retribuir um cumprimento com outro cumprimento. Aqueles que têm por costume semear lisonjas, para depois as colherem, em proveito próprio, encontravam em Mr. Richard Whitestone terreno ingrato para tal género de cultura; não vingavam lá.

    A chamar-se delicadeza a certos requebros de linguagem, a certas subtilezas de galanteios, a certos meneios, ares e olhares convencionais, muito à moda nas salas e que variam com as épocas, hesitar-se-ia em conceder a Mr. Richard o nome de delicado.

    A delicadeza que ele praticava não era de facto essa. Fazia-a consistir toda, a sua, nos sentimentos e nas acções inspiradas pelos eternos e invariáveis ditames da consciência e da razão, superiores portanto às flutuações caprichosas da moda. Era uma delicadeza natural.

    Verdadeiro inglês da velha Inglaterra, sincero, franco, às vezes rude, mas nunca mesquinho e vil, podia tomar-se por uma vigorosa personificação do típico John Bull.

    Alheio e pouco propenso à metafísica, não o namoravam as transcendentes questões de filosofia, que preocupavam doentiamente as inteligências da época; todo votado à contemplação da face positiva da vida, se não se arroubava, como os exaltados optimistas, a considerar nos destinos futuros da humanidade, evitava também o estorcer-se nas garras do demónio da hipocondria, como se estorcem tantos, a quem prolongadas meditações sobre os males que perseguem o homem acabam por envenenar o pensamento.

    Possuía em compensação Mr. Richard, e em alto grau, para lutar contra as ocorrentes resistências da vida efectiva, aquela qualidade de espírito, que, segundo Sterne, se diz obstinação nas más aplicações e perseverança nas boas.

    Outra apreciável disposição de ânimo caracterizava ainda o nosso comerciante: – era a de não ser sujeito a longas mortificações, ou pelo menos – e com mais rigor talvez – a de as não manifestar nos gestos ou por quaisquer sinais exteriores.

    Dir-se-ia, a julgá-lo pelas aparências, que espessa camada de estoicismo lhe encrostara o coração, libertando-o da influência dos estímulos, que mais dolorosamente costumam comover essa víscera de tão numerosas simpatias.

    Neste mundo, ao qual os Heraclitos dos séculos cristãos granjearam o título lutuoso e elegíaco de vale de lágrimas, não havia sucesso possível, catástrofe realizável, com força de alterar por muito tempo a costumada expressão fisionómica de Mr. Richard, de lhe desbotar sequer o colorido vigoroso, ou – como julgo se lhe chama em linhagem técnica – o colorido quente, do qual vinha ao gesto certo ar de satisfação, despertador das mais justificadas invejas.

    Nos tipos ingleses, que as ondas do oceano anojam todos os dias às nossas praias, é este fenómeno mais vulgar do que porventura se pensa.

    Cada uma dessas figuras britânicas vale por um protesto mudo, mas eloquente, contra os velhos preconceitos de poetas e de escritores meridionais.

    Teimam de facto estes em que são indispensáveis os vívidos raios do nosso desanuviado Sol, ou a face desassombrada da Lua no firmamento peninsular, onde não tem, como a de Londres – a romper a custo um plúmbeo céu – para verterem alegrias na alma e mandarem aos semblantes o reflexo delas; imaginam fatalmente perseguidos de spleen, irremediavelmente lúgubres e soturnos, como se a cada momento saíssem das galerias subterrâneas de uma mina de pit-coal, os nossos aliados ingleses.

    Como se enganam ou como pretendem enganar-nos!

    É esta uma ilusão ou má-fé, contra a qual há muito reclama debalde a indelével e acentuada expressão de beatitude, que transluz no rosto iluminado dos homens de além da Mancha, os quais parece caminharem entre nós, envolvidos em densa atmosfera de perene contentamento, satisfeitos do mundo, satisfeitos dos homens e, muito especialmente, satisfeitos de si.

    Nem é para admirar que o romancista inglês James ousasse abrir o primeiro capítulo de um romance seu com a seguinte exclamação'

    «Merry England! Oh, merry England!» alegre Inglaterra! oh! alegre Inglaterra!

    E porque se não há-de chamar alegre à Inglaterra? Como se generalizou a infundada crença de que o Inglês é por força melancólico?

    É uma destas abusões, para lhe não dar nome pior, contra as quais ninguém se precavê com suficiente critério filosófico.

    Repare o leitor imparcial para qualquer dos membros da colónia inglesa, à qual Mr. Richard Whitestone pertencia, e verá que nem só nos tempos em que a civilização e a indústria não tinham ainda arroteado as densas florestas britânicas, seria cabido o jovial estribilho da canção que o supracitado romancista pôs na boca do legendário Robin Hood, seu herói: – «Oh, merry England, merry England, ho»; pode ainda cantar, através dos nevoeiros e do fumo das fábricas, o inglês moderno, fiel depositário daquele folgado carácter nacional.

    Eu tenho há muito como ponto de fé, que ainda que o spleen seja doença indígena da Grã-Bretanha; não domina tão fatalmente sob o céu londrino, como muitos parece imaginarem.

    Dryden afirma que as comédias inglesas possuem sobre as de todo o mundo incontestável superioridade.

    E querem saber a que atribuem alguns esta superioridade da comédia inglesa? Ao clima, a esse mesmo clima, que, em contrário, tantos acusam de fomentador de hipocondrias e suicídios.

    O clima inconstante da Inglaterra, aplicam aqueles, é próprio para favorecer o desenvolvimento desses caracteres excepcionais e extravagantes, precioso e inesgotável pábulo do espírito cómico da Grã-Bretanha. A jovialidade dá-se muito bem naquele poderoso império.

    Tom Jones e o próprio Falstaff são tipos mais ingleses talvez do que uns sombrios caracteres, que Byron pôs à moda.

    Ora Mr. Richard, o corajoso leitor do Times, o inimigo declarado da França, apesar de certa severidade de convenção, era metal inglês, livre de toda a liga.

    Nos maiores empertigamentos, a que o respeito pela pragmática inglesa o constrangia, lá lhe estava o gesto a denunciar que era artificial tudo aquilo.

    Enquanto ao físico..., enquanto ao físico era Mr. Whitestone caracterizadamente inglês.

    Não suprirão estas palavras mais circunstanciada descrição?

    Não há entre nós quem, ao ver por aí, nos maiores e mais mesclados ajuntamentos, certa ordem de tipos masculinos, hesite em atribuir-lhes por pátria a velha Albion, a filha dos nevoeiros, a rainha dos mares, a terra dos meeting, dos puddings e de muitas coisas mais?

    Pois bem, todos esses caracteres, todos esses sinais distintivos dos mais perfeitos exemplares da classe, achavam-se reunidos na pessoa de Mr. Richard Whitestone, como certidão de naturalidade, limpa da menor viciação.

    Era aquela conhecida tez, quase cor de tijolo; aqueles olhos azuis, à flor do rosto, a resplandecerem como safiras; aqueles cabelos e suíças ruivas, que, sem grande violência de imagem, poder-se-ia talvez comparar às labaredas do fogo, que lhe inflamava constantemente as faces injectadas; os dentes regulares, como enfiaduras de pérolas, e alvos, como os caramelos das montanhas; a postura erecta; os movimentos prontos, e no rosto o tal continuado ar de satisfação.

    Do vestuário podia dizer-se quase o mesmo. Não falseava o tipo. Era ainda inglês de lei.

    Um pequeno fraque de pano azul, fabricado nas melhores oficinas de Yorkshire ou do West of England; as calças, curtas e estreitas, dentro das quais as descarnadas tíbias podiam fazer o efeito do êmbolo em corpo de pneumática; as botas esguias e compridas, onde a elegância era sacrificada à solidez; gravata e colete alvíssimos, como os de um lorde do parlamento, e, de inverno, vestidura completa de gutta-percha que, nestas épocas utilitárias e prosaicas, veio substituir as impenetráveis armaduras da Idade Média – tais eram as peças principais do guarda-roupa do honrado negociante. Coroava finalmente tudo isto o chapéu, aquele chapéu de forma invariável, castelo roqueiro inacessível às ondas destruidoras da moda ; baluarte inabalável no meio dos ventos encontrados dos humanos caprichos; o chapéu, rujo molde clássico dá a um grupo de ingleses um aspecto que é só deles; o chapéu, expressão simbólica da índole industrial e fabril da famosa ilha, pois desperta lembranças das chaminés que ouriçam o panorama das suas mais manufactureiras cidades. Respirando, havia mais de vinte anos, a atmosfera perfumada do nosso clima meridional, e bebendo, em todo este tempo, da própria fonte o predilecto das mesas britânicas, o genuíno Port wine – esse néctar, cujo aroma; ainda mais que os da nossa atmosfera, é grato a pituitárias inglesas, Mr. Richard Whitestone não conseguira, ou melhor, estas influências, com todos os outros feiticeiros atractivos da nossa terra, ainda não haviam conseguido de Mr. Richard Whitestone dois importantes resultados: – a adopção dos hábitos de vida peninsular, contra os quais antes regia sempre com a inteira inflexibilidade de suas fibras britânicas, e o respeito à gramática portuguesa, que, em todas as quatro partes, maltratava com uma irreverência, com um desplante de bradar aos céus e de desafiar os rigores da férula mais indulgente.

    Não desmentia Mr. Richard a asserção do autor das Lendas e Narrativas, quando afirma que sempre que um inglês, em casos desesperados, recorre a algum idioma estranho, nunca o faz, sem o torcer, estafar, e mutilar com toda a barbaridade de um verdadeiro Kimbri.

    De facto, as cinzas de Lobato e de Madureira deviam agitar-se na sepultura sempre que Mr. Whitestone falava, porque as regras mais triviais de regência e de concordância eram por ele atropeladas com uma frieza de ânimo, com uma fleuma, com uma impassibilidade, somente comparáveis às de um membro do jockey-Club, ao passar com um cavalo por cima do corpo de algum transeunte inofensivo ou competidor derrubado na arena.

    Não era mais feliz a prosódia, a alatinada prosódia deste recanto peninsular.

    As combinações gramaticais de Mr. Richard, ao falar a nossa língua, saíam marcadas com um verdadeiro cunho britânico. Vénus, a própria Vénus, perderia aquelas ilusões que nos refere o cantor d'Os Lusíadas, se porventura ouvisse o português que ele pronunciava.

    Transparecia de alguma sorte nas orações do seu discurso o crédito liberal de um verdadeiro cidadão de Londres. O espírito conciliador e ordeiro, o constitucionalismo arreigado naquele ânimo inglês, e a adesão aos princípios interventores adoptados no seu pais, parecia haverem-se estendido, extravagantemente, ao campo da sintaxe portuguesa, levando Mr. Richard, num excesso de tendência harmonizadora, a tentar nela concordâncias de substantivos e adjectivos contra a absoluta e insuperável repugnância de géneros e de números; e a modificar a constituição gramatical de um país aliado, como a Inglaterra gosta de modificar a sua constituição política.

    O efeito reunido daquela prosódia e sintaxe era às vezes de uma resultante cómica que não actuava impunemente sobre os ouvidos, aliás não muito pechosos, dos colegas comerciais, em cujos lábios sorrisos de malícia mal disfarçada vinham por instantes afugentar a sisudez da profissão.

    Mr. Whitestone percebia-os e bem lhes suspeitava o sentido, mas era completamente indiferente ao que percebia e suspeitava.

    Se o contradissessem na pronúncia de uma palavra inglesa, embora das mais controvertidas, se descobrisse um sorriso nos circunstantes, na ocasião em que ele estivesse falando a pátria língua, então sim, então era possível que chegasse a exaltar-se a ponto de quase ameaçar o imprudente com uma irrepreensível aplicação da nobre ciência dos boxers, quase divina arte do soco, que, desde Jack Brougton, tem sido cultivada em Londres «com fanatismo e ensinada com talento» – textuais palavras de escritor ex-professo.

    Mas os sorrisos que lhe valiam as autrocidades praticadas por ele nas gramáticas estrangeiras, esses, sofria-os com impassível indiferença e não sei até se com certos vislumbres de orgulho e regozijo.


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