Guilherme de Azevedo

Guilherme de Azevedo

Guilherme Avelino Chave de Azevedo (1839-1882) nasceu em Santarém e faleceu em Paris. Estudou Humanidades no liceu de Santarém, tendo fundado e dirigido o jornal O Alfageme (1871). Fixa-se em Lisboa, onde se junta à Geração de 70, participando nas Conferências do Casino. Colaborou na Lanterna Mágica e no Álbum das Glórias, este último ilustrado com caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro. Sendo correspondente jornalístico do Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, parte em 1880 para Paris, onde viria a falecer. As influências poéticas sofridas vão de Lamartine a Victor Hugo, mostrando a sua poesia algumas semelhanças com a de Cesário Verde. Obras poéticas: Aparições (1867), Radiações da Noite (1871) e A Alma Nova (1874). Em colaboração com Guerra Junqueiro, escreveu Viagem à Roda da Parvónia.

Outras páginas sobre o autor:

  • Versão integral de A Alma Nova


    A ALMA NOVA

    A Antero de Quental

    Meu amigo,

    Este livro parece-me um pouco do nosso tempo. Sorrindo ou combatendo, fala da Humanidade e da Justiça. inspirando-se no mundo que nos rodeia.
    E porque julgo que ele segue na direcção nova dos espíritos, ofereço-o a um obreiro honesto do pensamento: a uma alma lúcida, moderna e generosa.

    Dezembro de 1873.

    Guilherme d'Azevedo.



    I

    Eu poucas vezes canto os casos melancólicos,
    os letargos gentis, os êxtases bucólicos
    e as desditas cruéis do próprio coração;
    mas não celebro o vício e odeio o desalinho
    da musa sem pudor que mostra no caminho
    a liga à multidão.

    A sagrada poesia, a peregrina eterna,
    ouvi dizer que sofre uma afecção moderna,
    uns fastios sem nome, uns tédios ideais;
    que ensaia, presumida, o gesto romanesco
    e, vaidosa de si, no cola ebúrneo e fresco,
    Põe cremes triviais!

    Oh, pensam mal de ti, da tua castidade!
    Deslumbra-os o fulgor dos astros da cidade,
    os falsos ouropéis das cortesãs gentis,
    e julgam já tocar-te as roçagantes vestes
    ó deusa virginal das cóleras celestes,
    das graças juvenis!

    Retine a cançoneta alegre das bacantes,
    saudadas nos vagões, nos cais, nos restaurantes,
    visões d'olhar travesso e provocantes pés,
    e julgam já escutar a voz do paraíso,
    amando o que há de falso e torpe no sorriso
    das musas dos cafés!

    Oh, tu não és, decerto, a virgem quebradiça
    estiolada e gentil, que vem depois da missa
    mostrar pela cidade o seu fino desdém,
    nem a fada que sente um vaporoso tédio
    enquanto vai sonhando um noivo rico e nédio
    Que a possa pagar bem!

    Nem posso mesmo crer, arcanjo, que tu sejas
    a menina gentil que às portas das igrejas
    enquanto a multidão galante adora a cruz,
    a bem do pobre enfermo à turba pede esmola
    nas pampas ideais da moda, que a consola
    das mágoas de Jesus!

    E nas horas de luta enquanto os povos choram
    e a guerra tudo mata e os reis tudo devoram,
    não posso dizer bem se acaso tu serás
    a senhora que espalha os lânguidos fastios
    nos pomposos salões, sorrindo a fazer fios
    à viva luz do gás!

    Tu és a aparição gentil, meia selvagem,
    de olhar profundo e bom, de cândida roupagem,
    de fronte imaculada e seios virginais,
    que desenha no espaço o límpido contorno
    e cinge na cabeça o virginal adorno
    de folhas naturais.

    Teus a linha ideal das cândidas figuras;
    as curvas divinais; as tintas sãs e puras
    da austera virgindade; as belas correcções;
    e segues majestosa em teu longo caminho
    deixando flutuar a túnica de linho
    às frescas virações!

    Quando trava batalha a tua irmã Justiça
    acodes ao combate e apontas sobre a liça
    uma espada de luz ao Mal dominador:
    e pensas na beleza harmónica das cousas
    sentindo que se move um mundo sob as lousas
    no gérmen duma flor!

    Num sorriso cruel, pungente d'ironia,
    também sabes vibrar, serena, altiva e fria,
    o látego febril das grandes punições;
    e vendo-te sorrir, a geração doente,
    sentir cuida, talvez, a nota decadente,
    das mórbidas canções!

    Oh, voa sem cessar traçando nos teus ombros
    o manto constelado, ó deusa dos assombros,
    até chegar um dia às regiões de luz,
    aonde, na poeira aurífera dos astros,
    contrito, Satanás enxugará de rastos,
    as chagas de Jesus!

    Lugar à minha fada ó lânguidas senhoras!
    E vós que amais do circo as noites tentadoras,
    os flutuantes véus, os gestos divinais,
    podeis vê-la passar num turbilhão fantástico,
    voando no corcel febril, nervoso, elástico,
    dos novos ideais!


    II

    Eu vi passar, além, vogando sobre os mares
    o cadáver d'Ofélia: a espuma da voragem
    e as algas naturais serviam de roupagem
    à triste aparição das noites seculares!

    Seguia tristemente às regiões polares
    nos limos das marés; e a rija cartilagem
    sustinha-lhe tremendo aos hálitos da aragem,
    no peito carcomido, uns grandes nenúfares!

    Oh! lembro-me que tu, minha alma, em certos dias
    sorriste já, também, nas vagas harmonias
    das cousas ideais! mas boje à luz mortiça

    dos astros, caminhando; apenas as ruínas
    das tuas criações fantásticas, divinas,
    de pasto vão servindo aos lírios da justiça!



    XLII

    OS PALHAÇOS

    Heróis da gargalhada, ó nobres saltimbancos,
    eu gosto de vocês,
    porque amo as expansões dos grandes risos francos
    e os gestos de entremez,

    e prezo, sobretudo, as grandes ironias
    das farsas joviais.
    que em visagens cruéis, imperturbáveis, frias.
    à turba arremessais!

    Alegres histriões dos circos e das praças,
    ah, sim, gosto de vos ver
    nas grandes contorções, a rir, a dizer graças
    de o povo enlouquecer,

    ungidos pela luta heróica, descambada,
    de giz e de carmim,
    nas mímicas sem par, heróis da bofetada,
    titãs do trampolim!

    Correi, subi, voai num turbilhão fantástico
    por entre as saudações
    da turba que festeja o semideus elástico
    nas grandes ascensões,

    e no curso veloz, vertiginoso, aéreo,
    fazei por disparar
    na face trivial do mundo egoísta e sério
    a gargalhada alvar!

    Depois, mais perto ainda, a voltear no espaço,
    pregai-lhe, se podeis,
    um pontapé furtivo, ó lívidos palhaços,
    luzentes como reis!

    Eu rio sempre, ao ver aquela majestade,
    os trágicos desdéns
    com que nos divertis, cobertos de alvaiade,
    a troco duns vinténs!

    Mas rio ainda mais dos histriões burgueses,
    cobertos de ouropéis,
    que tomam neste mundo, em longos entremezes,
    a sério os seus papéis.

    São eles, almas vãs, consciências rebocadas,
    que enfim merecem mais
    o comentário atroz das rijas gargalhadas
    que às vezes disparais!

    Portanto, é rir, é rir, hirsutos, grandes, lestos,
    nas cómicas funções,
    até fazer morrer, em desmanchados gestos,
    de riso as multidões!

    E eu, que amo as expansões dos grandes risos francos
    e os gestos de entremez,
    deixai-me dizer isto, ó nobres saltimbancos:
    eu gosto de vocês!





    (A JOÃO PENHA)

    Sossega: não troquei a lira da vingança
    Pelo doce arrabil dos velhos trovadores,
    E em nada justifico, eu penso, os teus furores,
    Saudando uma mulher, beijando uma criança!

    Courbet que tem pintado as corrupções da França,
    Não sabes o que fez? desenha, às vezes, flores!
    E o realista audaz, cruel, dos Britadores,
    Na tela diminuta o braço então descansa.

    Oh! não conheces bem quanto eu sou generoso!
    Entrega-te uma vez ao momentâneo gozo
    Dum creme perfumado e um cálix de madeira,

    Que não te acusarei, João, de apostasia!
    Tu és sempre o cantor que poz salchicheria,
    Mas que um momento esquece a musa salchicheira!


    Voltar à página inicial