João de Deus

João de Deus

João de Deus (1830-1896) nasceu em São Bartolomeu de Messines, no Algarve. Frequentou o curso de Direito na Universidade de Coimbra e, acabado o curso, dedicou-se ao jornalismo e à advocacia em Coimbra, Beja, Évora e Lisboa. Ligado inicialmente ao ultra-romantismo, depressa o abandonou seguindo uma estética muito própria. As suas poesias foram reunidas na colectânea Campo de Flores, publicada em 1893, incluindo-se nesta duas obras anteriores: Flores do Campo e Folhas Soltas. Dedicou-se à pedagogia, resultando daí a Cartilha Maternal, publicada em 1876 e tendo como fim o ensino da leitura às crianças. Foi um dos grandes amigos e admiradores de Antero de Quental.

  • Versão integral da obra Campo de Flores, vol. I e II



    CAMPO DE FLORES (extracto)


    A VIDA

    Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
    a luz que nesta vida me guiava,
    olhos fitos na qual até contava
    ir os degraus do túmulo descendo.

    Em se ela anuviando, em a não vendo,
    já se me a luz de tudo anuviava;
    despontava ela apenas, despontava
    logo em minha alma a luz que ia perdendo.

    Alma gémea da minha, e ingénua e pura
    como os anjos do céu (se o não sonharam...)
    quis mostrar-me que o bem bem pouco dura!

    Não sei se me voou, se ma levaram;
    nem saiba eu nunca a minha desventura
    contar aos que inda em vida não choraram ...

    ......................................................

    A vida é o dia de hoje,
    a vida é ai que mal soa,
    a vida é sombra que foge,
    a vida é nuvem que voa;
    a vida é sonho tão leve
    que se desfaz como a neve
    e como o fumo se esvai:
    A vida dura um momento,
    mais leve que o pensamento,
    a vida leva-a o vento,
    a vida é folha que cai!

    A vida é flor na corrente,
    a vida é sopro suave,
    a vida é estrela cadente,
    voa mais leve que a ave:
    Nuvem que o vento nos ares,
    onda que o vento nos mares
    uma após outra lançou,
    a vida – pena caída
    da asa de ave ferida -
    de vale em vale impelida,
    a vida o vento a levou!

    ........................



    AROMA E AVE

    Eu digo, quando assoma
    o astro criador:
    – Deus me fizesse aroma
    de alguma pobre flor!

    E digo, quando passa
    uma ave pelo ar:
    – Deus me fizesse a graça
    de asas para voar!

    Aroma da janela
    me evaporava eu,
    me respirava ela
    e me elevava ao céu!

    E quem, se eu fosse uma ave,
    me havia de privar
    a mim da luz suave
    daquele seu olhar?



    ADORAÇÃO

    Vi o teu rosto lindo,
    esse rosto sem par;
    contemplei-o de longe, mudo e quedo,
    como quem volta de áspero degredo
    e vê ao ar subindo
    o fumo do seu lar!

    Vi esse olhar tocante,
    de um fluido sem igual;
    suave como lâmpada sagrada,
    bem-vindo como a luz da madrugada
    que rompe ao navegante
    depois do temporal!

    Vi esse corpo de ave,
    que parece que vai
    levado como o Sol ou como a Lua,
    sem encontrar beleza igual à sua,
    majestoso e suave,
    que surpreende e atrai!

    Atrai, e não me atrevo
    a contemplá-lo bem;
    porque espalha o teu rosto uma luz santa,
    uma luz que me prende e que me encanta
    naquele santo enlevo
    de um filho em sua mãe!

    Tremo, apenas pressinto
    a tua aparição;
    e, se me aproximasse mais, bastava
    pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
    Não é amor que eu sinto,
    é uma adoração!

    Que as asas providentes
    do anjo tutelar
    te abriguem sempre à sua sombra pura!
    A mim basta-me só esta ventura
    de ver que me consentes
    olhar de longe... olhar!



    ESTRELA

    Estrela que me nasceste
    quando a vista mal te alcança
    nessa abóbada celeste,
    onde a nossa alma descansa
    a sua última esperança...
    Estrela que me nasceste
    quando a vista mal te alcança!

    Antes nascesses mais cedo,
    estrela da madrugada,
    e não já noite cerrada...
    Que até no céu mete medo
    ver essa estrela isolada...
    Antes nascesses mais cedo.
    estrela da madrugada!


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