Gomes Leal

Gomes Leal

António Duarte Gomes Leal (1848-1921) nasceu em Lisboa, filho ilegítimo de um funcionário do Estado. Frequentou o Curso Superior de Letras, não chegando a terminá-lo. Ao ler as obras de Marx, Darwin, Renan e Proudhon, entusiasma-se com o socialismo, aproximando-se ideologicamente de Antero de Quental e Oliveira Martins. Poeta e jornalista, caiu na miséria nos últimos anos da sua vida, sobrevivendo da caridade alheia. Escreveu: O Tributo de Sangue (1873), A Canalha (1873), Claridades do Sul (1875), A Fome de Camões (1880), A Traição (1881), O Renegado (1881), História de Jesus (1883), O Anti-Cristo (1886), Fim de Um Mundo (1900), A Mulher de Luto (1902), A Senhora da Melancolia (1910).

  • Versão integral da obra Claridades do Sul
  • Versão integral da obra A Fome de Camões


    CLARIDADES DO SUL (extracto)


    O VISIONÁRIO OU SOM E COR

    1

    Eu tenho ouvido as sinfonias das plantas.


    Eu sou um visionário, um sábio apedrejado,
    passo a vida a fazer e a desfazer quimeras,
    enquanto o mar produz o monstro azulejado
    e Deus, em cima, faz as verdes primaveras.

    Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado,
    e erro como estrangeiro ou homem doutras eras,
    talvez por um contrato irónico lavrado
    que fiz e já não sei noutras subtis esferas.

    A espada da Teoria, o austero Pensamento,
    não mataram em mim o antigo sentimento,
    embriagam-me o Sol e os cânticos do dia...

    E obedecendo ainda a meus velhos amores,
    procuro em toda a parte a música das cores,
    – e nas tintas da flor achei a Melodia.

    2

    O vermelho deve ser como o som duma trombeta

    (Um cego)


    Alucina-me a cor! – A rosa é como a Lira,
    a Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
    e é já velha a união, a núpcia sagrada,
    entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

    Se a terra, às vezes, brota a flor, que não inspira,
    a teatral camélia, a branca enfastiada,
    muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
    como a perdida cor dalguma flor que expira...

    Há plantas ideais de um cântico divino,
    irmãs do oboé, gémeas do violino,
    há gemidos no azul, gritos no carmesim...

    A magnólia é uma harpa etérea e perfumada,
    e o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
    – tem notas marciais, soa como um clarim.


    Claridades do Sul





    AS ALDEIAS

    Eu gosto das aldeias sossegadas,
    com seu aspecto calmo e pastoril,
    erguidas nas colinas azuladas,
    mais frescas que as manhãs finas de Abril.

    Pelas tardes das eiras, como eu gosto
    de sentir a sua vida activa e sã!
    Vê-las na luz dolente do sol-posto,
    e nas suaves tintas da manhã!...

    As crianças do campo, ao amoroso
    calor do dia, folgam seminuas,
    e exala-se um sabor misterioso
    da agreste solidão das suas ruas.

    Alegram as paisagens as crianças
    mais cheias de murmúrios de que um ninho;
    e elevam-nos às coisas simples, mansas,
    ao fundo, as brancas velas dum moinho.

    Pelas noites de Estio, ouvem-se os ralos
    zunirem suas notas sibilantes...
    E mistura-se o uivar dos cães distantes
    com o cântico metálico dos galos.


    Claridades do Sul




    PALÁCIOS ANTIGOS

    Bons castelos leais, nas rochas construídos,
    às contorções do vento, à chuva enegrecidos,
    que vamos admirar na angústia dos poentes;
    grandes salas feudais com telas de parentes,
    que vamos admirar na angústia dos poentes;
    os antigos heróis e as sombras dos guerreiros?

    Uma grande tristeza enorme vos habita!...
    No entanto, a alma antiga ainda em vós palpita.
    evocando a comoção das crónicas guerreiras :
    e, mau grado o destroço, a erva e as trepadeiras,
    como um desejo bom nas almas devastadas,
    cresce, ao vento, uma flor no peito das sacadas.

    A parasita hera avassalou os muros!
    Aninha-se o bolor nos cantos mais escuros;
    tudo dorme na paz das cousas silenciosas,
    e nos velhos jardins, aonde não há rosas,
    só, resistindo ainda aos séculos injustos,
    uma Vénus de pedra espera, entre os arbustos.

    Paira em tudo o silêncio e o lúgubre abandono
    das cousas que já estão dormindo o grande sono,
    evocando inda em nós as velhos cavaleiros,
    e, às lufadas do vento, os grandes reposteiros,
    entre as nossas visões das épocas sublimes.
    agitam-se, ao luar, sanguentos como crimes.

    Mas, no entanto, o poeta entende aquelas dores.
    e as mudas solidões, os largos corredores,
    as boas castelãs, as góticas janelas,
    abertas toda a noute, a olhar para as estrelas...
    Só ele sabe os ais e os gemidos das portas,
    e inveja, às vezes, ser o pó das cousas mortas!

    Claridades do Sul




    DE NOITE

    Ele vinha da neve, dos trabalhos
    violentos, custosos, da enxada,
    cantando a meia voz, pelos atalhos.

    A mulher, loura, infeliz, resignada,
    cosia junto à luz. O rijo vento
    batia contra a porta mal fechada.

    Ao pé havia um Cristo, um ramo bento
    e uma estampa da Virgem, colorida,
    cheia de mágoa, olhando o firmamento...

    Uma banca de pinho, mal sustida.
    vacilante nos pés; um candeeiro,
    companheiros daquela negra vida.

    O homem, alto, pálido, trigueiro,
    entrou. Tinha as feições queimadas, duras.
    dos que andam, com a enxada, o dia inteiro.

    A mulher abraçou-o. As linhas puras
    do seu rosto contavam já tristezas
    de grandes e secretas amarguras.

    Tinha chorado muito as estreitezas
    daquela vida assim!... Talvez sonhado
    um dia com palácios e riquezas!

    Ele deitou-se a um canto, fatigado
    de erguer-se, alta manhã, todos os dias.
    mal voavam as pombas do telhado.

    Lá foca, nuvens grossas e sombrias
    no pesado horizonte. Ele assim esteve
    – as noites eram ásperas e frias -.

    Ela cobriu-o duma manta leve,
    esburacada, velha. No telhado
    ouvia-se cair, sonora, a neve.

    Ela então meditou no seu passado;
    no seu primeiro beijo, nas lembranças.
    talvez, do seu vestido de noivado,

    e nas tardes das eiras, e das danças
    às estrelas, e aquela vez primeira
    que a rosa lhe furtou das longas tranças;

    e aquela tarde, junto da amoreira,
    que trocaram as mãos; e na janela;
    e quando olhavam, juntas, a ribeira;

    e quando ela tímida e singela...

    .....................

    Lá fora, dava o vento nos caixilhos;
    não brilhava no céu nem uma estrela.

    E, àquela hora da noite, por que trilhos
    andariam no mundo – ela cismava -
    nas misérias, talvez, sem rumo, os filhos!...

    Ele, na manta velha, ressonava.

    Claridades do Sul




    HISTÓRIA DE JESUS (extracto)


    AS MÃES

    Ó suaves mulheres, que ides cantando
    através das searas e das vinhas,
    vinde ouvir uma história, em verso brando,
    que hei-de ensinar a ler às andorinhas.


    É uma história florida como as rosas!
    Quero contá-la aos vossos querubins,
    pelo luar, às horas religiosas,
    quando os cravos concebem e os jasmins.

    Quero falar dum ente extraordinário.
    trágico. meigo, místico, suave;
    dum leão que morreu sobre um Calvário
    e que deixou um testamento de ave.

    Vinde escutar-lhe a história em Galileia.
    seu suor, sua morte e seu lençol,
    e quando electrizava a vil Judeia
    com seus olhos brilhantes como o Sol.

    Desoladas mulheres, que ides chorando
    os maridos que vão para os degredos,
    por alta lua, os filhos embalando
    com seus olhos brilhantes como o Sol.

    vinde buscar a cura a vossos males,
    na narração das lágrimas, das dores
    do que andava nos rios e nos vales
    com os simples, os chãos, os pescadores!

    Vinde ouvir como andava largos dias
    nos lagos e baías prazenteiras
    e electrizava as almas das judias
    sob os seus véus, debaixo das palmeiras.

    Vinde escutar as lástimas estranhas
    das filhas de Sião de longas tranças;
    como ele amava os lagos, as montanhas,
    as pombas, os doentes, as crianças!

    Vinde escutar seus prantos nos abrolhos,
    nas montanhas seu verbo às multidões.
    e, a expulsar dos demónios as legiões,
    a forte luz terrível de seus olhos.

    Ó suaves mulheres, que estais cantando
    ao pôr do Sol, à porta, às criancinhas,
    vinde ouvir uma história, em verso brando.
    que hei-de ensinar a ler às andorinhas.


    História de Jesus





    A MAIOR DOR HUMANA

    SONETO À VIRGEM

    Ó Virgem! eu vi Job leproso em seu lameiro,
    torcido qual carvalho a que o tufão arraste,
    exclamar na aflição: – Maldito o homem primeiro!
    Maldito o ventre, ó Mãe, em que tu me geraste!

    Ó Virgem! eu vi Cristo amarrado ao madeiro,
    como o branco marfim ou lírio roxo na haste,
    suspirar num sol-pôr magoado e derradeiro:
    – Ó meu Deus! Ó meu Deus! porque Me abandonaste?

    Ó Virgem, vi Raquel chorando os filhos mortos,
    errante, esguedelhada, olhos doidos, absortos.
    pelas serras, à lua, encher Judeia de ais.

    Mas vi-Te, ó Mãe, depois ao teu morto estreitada,
    branca, sem cor, sem voz, feita em pedra, pasmada,
    e a soluçar uivei: – Tu é que sofres mais!


    História de Jesus

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