Camilo Pessanha

Camilo Pessanha

Camilo Pessanha (1867-1926) nasceu em Coimbra, tendo tirado o curso de Direito nessa cidade. Partiu para Macau e aí exerceu funções judiciais. O contacto com a cultura chinesa levou-o a escrever vários estudos e a fazer traduções de vários poetas chineses. Foram, todavia, os seus poemas simbolistas que largamente influenciaram a geração de Orpheu, desde Mário de Sá-Carneiro até Fernando Pessoa. Os seus poemas foram reunidos na colectânea Clepsidra, publicada em 1922, tendo sido Fernando Pessoa o principal mentor da edição. Camilo Pessanha morreu em Macau vítima do ópio.

Outras páginas sobre Camilo Pessanha:

  • Versão integral da obra Clepsidra
  • Uma leitura da poesia "Estátua" de Camilo Pessanha


    CLEPSIDRA (extracto)


    VÉNUS

    À flor da vaga, o seu cabelo verde,
    Que o torvelinho enreda e desenreda...
    O cheiro a carne que nos embebeda!
    Em que desvios a razão se perde!

    Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
    Que a onda, crassa, num balanço alaga,
    E reflui (um olfacto que embriaga)
    Que em um sorvo, murmura de gozo.

    O seu esboço, na marinha turva...
    De pé flutua, levemente curva;
    Ficam-lhe os pés atrás, como voando...

    E as ondas lutam, como feras mugem,
    A lia em que se desfazem disputando,
    E arrastando-a na areia, co'a salsugem.




    Passou o Outono já, já torna o frio...
    – Outono de seu riso magoado.
    Álgido Inverno! Oblíquo o sol, gelado...
    – O sol, e as águas límpidas do rio.

    Águas claras do rio! Aguas do rio,
    Fugindo sob o meu olhar cansado,
    Para onde me levais meu vão cuidado?
    Aonde vais, meu coração vazio?

    Ficai, cabelos dela, flutuando,
    E, debaixo das águas fugidias,
    Os seus olhos abertos e cismando...

    Onde ides a correr, melancolias?
    – E, refractadas, longamente ondeando,
    As suas mãos translúcidas e frias...





    Floriram por engano as rosas bravas
    No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
    Em que cismas, meu bem? Porque me calas
    As vozes com que há pouco me enganavas?

    Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
    Onde vamos, alheio o pensamento,
    De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
    Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

    E sobre nós cai nupcial a neve,
    Surda, em triunfo, pétalas, de leve
    Juncando o chão, na acrópole de gelos...

    Em redor do teu vulto é como um véu!
    Quem as esparze – quanta flor! – do céu,
    Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?




    CASTELO DE ÓBIDOS

    Quando se erguerão as seteiras,
    Outra vez, do castelo em ruína,
    E haverá gritos e bandeiras
    Na fria aragem matutina?

    Se ouvirá tocar a rebate
    Sobre a planície abandonada?
    E sairemos ao combate
    De cota e elmo e a longa espada?

    Quando iremos, tristes e sérios,
    Nas prolixas e vãs contendas.
    Soltando juras, impropérios,
    Pelas divisas e legendas?

    .......................................
    .......................................
    .......................................
    .......................................

    E voltaremos, os antigos
    E puríssimos lidadores,
    (Quantos trabalhos e perigos!)
    Quase mortos e vencedores?

    E quando, ó Doce Infanta Real,
    Nos sorrirás do belveder?
    – Magra figura de vitral,
    Por quem nós fomos combater...




    O meu coração desce,
    Um balão apagado...
    – Melhor fora que ardesse,
    Nas trevas, incendiado.

    Na bruma fastidienta,
    Como um caixão à cova...
    – Porque antes não rebenta
    De dor violenta e nova?!

    Que apego ainda o sustém?
    Átomo miserando...
    – Se o esmagasse o trem
    Dum comboio arquejando!...

    O inane, vil despojo
    Da alma egoísta e fraca!
    Trouxesse-o o mar de rojo,
    Levasse-o na ressaca.





    VIOLONCELO

    Chorai arcadas
    Do violoncelo!
    Convulsionadas,
    Pontes aladas
    De pesadelo...

    De que esvoaçam,
    Brancos, os arcos...
    Por baixo passam,
    Se despedaçam,
    No rio, os barcos.

    Fundas, soluçam
    Caudais de choro...
    Que ruínas (ouçam)!
    Se se debruçam,
    Que sorvedouro!...

    Trémulos astros...
    Soidões lacustres...
    – Lemos e mastros...
    E os alabastros
    Dos balaústres!

    Urnas quebradas!
    Blocos de gelo...
    – Chorai arcadas,
    Despedaçadas,
    Do violoncelo.





    AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

    Só, incessante, um som de flauta chora,
    Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
    – Perdida voz que de entre as mais se exila,
    – Festões de som dissimulando a hora.

    Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
    E os lábios, branca, do carmim desflora...
    Só, incessante, um som de flauta chora,
    Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

    E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
    Cauta, detém. Só modulada trila
    A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
    Quem sabe a dor que sem razão deplora?

    Só, incessante, um som de flauta chora...




    FONÓGRAFO

    Vai declamando um cómico defunto.
    Uma plateia ri, perdidamente,
    Do bom jarreta... E há um odor no ambiente
    A cripta e a pó – do anacrónico assunto.

    Mudo o registo, eis uma barcarola:
    Lírios, lírios, águas do rio, a lua...
    Ante o Seu corpo o sonho meu flutua
    Sobre um paul – extática corola.

    Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
    Dum clarim de oiro – o cheiro de junquilhos,
    Vívido e agro! – tocando a alvorada...

    Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
    Quebrou-se agora orvalhada e velada.
    Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas.





    VÉNUS

    À flor da vaga, o seu cabelo verde,
    Que o torvelinho enreda e desenreda...
    O cheiro a carne que nos embebeda!
    Em que desvios a razão se perde!

    Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
    Que a onda, crassa, num balanço alaga,
    E reflui (um olfacto que embriaga)
    Que em um sorvo, murmura de gozo.

    O seu esboço, na marinha turva...
    De pé flutua, levemente curva;
    Ficam-lhe os pés atrás, como voando...

    E as ondas lutam, como feras mugem,
    A lia em que se desfazem disputando,
    E arrastando-a na areia, co'a salsugem.


    Clepsidra, Lisboa, Casa Editora Lusitânia, 1922


    Voltar à página inicial