Arnaldo Gama

Arnaldo Gama

Arnaldo de Sousa Dantas da Gama (01/08/1828 – 29/08/1869) nasceu e faleceu no Porto. Formou-se em Direito em Coimbra, dedicando-se desde cedo ao jornalismo e à literatura. Fundou o Jornal do Norte, tendo colaborado, entre outros, em A Península, O Nacional, O Porto e a Carta. Os seus romances tornaram-se populares na época. Fixando-se, do ponto de vista literário, no segundo Romantismo português, foi influenciado pelo escritor francês Eugène Sue e por Camilo Castelo Branco. Dedicou-se sobretudo à escrita de romances de ambiente histórico. Obras: Génio do Mal (em quatro volumes publicados entre 1856-1857); Poesias e Contos (1857); Verdades e Ficções (1859), Um Motim há Cem Anos (1861), O Sargento-Mor de Vilar (1863), O Segredo do Abade (1864), A Última Dona de S. Nicolau (1864), O Filho do Baldeia (1866), A Caldeira de Pêro Botelho (1866), Honra ou Loucura (1868), O Balio de Leça (1872, ed. póstuma), El-Rei Dinheiro (1876, ed. póstuma).




Verdades e Ficções

A TOMADA DE ORMUZ

I

Era pelas onze horas da manhã do dia 5 de janeiro do ano de 1508.

Uma cobertura espessa e igual de nuvens cor de chumbo recamava o espaço e um calor surdo e abafadiço tornava dificultosa e pesada à atmosfera, cuja quietação só era quebrantada por uma aragem ardente e abrasadora que soprava do lado de terra.

A pequena distância da baía de Ormuz estavam nesse dia fundeadas seis embarcações em que tremulava a bandeira portuguesa. Era a esquadra com que Afonso Albuquerque, o génio mais conquistador que produziu Portugal e um dos maiores que tem produzido a Europa, estava a ponto de reduzir o rei de Ormuz à obediência de el-rei D. Manuel – tornado este por tal conquista senhor da cidade, que era a chave do golfo Pérsico, e por conseguinte senhor de todo o comércio da Arábia.

Um concurso imenso de gente movia-se ao longo da praia e muito principalmente junto dos muros meio acabados da fortaleza que Albuquerque, mau grado o rei da terra, fizera começar ali. Abicados à praia e com as pranchas fora, estavam esquifes, almadias e outras embarcações de pequeno lote, cujos remeiros, já a postos, pareciam aguardar o pronto embarque da gente.

Na armada, porém, composta do Orne, nau capitânia, comandada pelo próprio Albuquerque,do Rei Grande, comandada por Francisco de Távora, do Rei Pequeno, de que era capitão Manuel Teles, da Taforeia, que estava às ordens de Afonso Lopes da Costa, de um navio pequeno, comandado por António do Campo, e da nau Flor de la Mar, que, na ausência do comendador Rui Soares, era comandada pelo capitão João da Nova, reinava um silêncio, que contrastava com o arruído que em terra se ouvia. Apenas aqui e ali se via um ou outro soldado, que, debruçado sobre as arrombadas, vigiava curioso o que os companheiros faziam em terra; ou um e outro gajeiro que, sentado no cesto da gávea, assobiava, baloiçando-se com a mais sublime indiferença, qualquer toadilha malaia.

A cena que vou descrever é passada na nau capitânia.

Dois soldados, encostados à amurada do navio que botava para o lado de terra, um voltada a cara para o companheiro e o outro debruçado sobre a amurada e os olhos fitos na praia, conversavam com ares de descontentes sobre os casos do tempo.

Sobre a coberta do convés, e com as mãos atrás das costas, passeava defronte deles um homem, cujo traje indicava ser pessoa superior a qualquer soldado de leva.

Vestia um pelote de abertos, por entre os quais se lhe via luzir um arnês; do ombro direito corria-lhe para o lado esquerdo um tiracolo de couro branco, de onde pendia uma espada de copos, em forma de concha; as calças e os borzeguins eram de anta e na cabeça tinha uma gorra de pano azul.

As feições deste personagem eram o tipo completo do intriguista e do velhaco. Ao passar pelos soldados, que falavam em voz alta e cuja conversa parecia não atender, mas de que lhe não escapava uma só palavra, lançava de quando em quando sobre eles um olhar de nesga e um sorriso quase imperceptível de satisfação assomava-lhe nos lábios.

– Por minha fé Ruí Preto – dizia o que estava de cara voltada para o companheiro – que já estou mais melancolizado com esta terra de Ormuz. Por S. Pêro, meu advogado, que esta aragem de terra já me tem feito mudar mais de cem vezes a pele, como se fora cobra, e de arte me tem seco os gorgomilos, que estou em dizer que nem quanto vinho tem Setúbal é capaz de mos tornar a humedecer. E afora isto uma água perra e má como é perro e mau o sultão desta terra e a sua excomungada gente! Voto a tal – continuou num acesso de raiva e dando tal punhada sobre a amurada que fez voltar o companheiro – que se o capitão-mor de presto não decide este feito, hei-de fugir-lhe e ir-me para António do Campo, ou outro qualquer que me leve de pronto para onde ganhe mais que zargunchadas e virotes pela cara e pelo corpo, como me aconteceu na tomada da Meri, que por fim o único pago que tive foi ficar-me escalavrado, demais, não lucrei ceitil. Quem tem mulher e filhos como eu, não é para se esperdiçar por i em teimas e porfias de capitães brigosos e repetenados como este nosso. Irra!

– E o mais é – replicou fleumaticamente Rui Preto, sem se mover da cómoda posição em que estava – que se me antolha que teremos novo arruído. Olha: lá vêm as almadias com a gente para as naus; não fica viva alma na fortaleza... Pela Virgem do Carmo! lá tiraram duas arcabuzadas para terra. Olha.

Rui Preto voltou-se e estendeu a cabeça para fora da amurada do navio.

– Pelas barbas de Satanás! – gritou cada vez mais furioso estamos bem aviados! Um ou dois meses mais de demora e inda bem se escapar aos virotes dos mouros. A Deus praza que seja verdade o que dizem por i de quererem os capitães fugir ao capitão-mor, que, se assim for, a minha tenção. está feita.

– Pois eles querem fugir? – perguntou com toda a placidez Rui Preto.

– Rosna-se que sim – tornou o outro – e Deus ou o Diabo lhes meta isso nos cascos, que, se assim for, venho decerto a rabiar como danado. E qual é a tua tenção neste caso, amigo?

– Quanto a mim – respondeu Rui, voltando-se com o maior sossego para o companheiro – dois saltos acima da amurada, um para o mar, e em duas braçadas sou com qualquer desses homens de bom siso. Porque olha, Perno Mendes, aqui para nós, o caso não é para menos. Conta lá: de 24 de Setembro do ano passado, que chegámos, a 5 de janeiro em que estamos, quantos dias vão?

– Três meses e doze dias – respondeu Perno Mendes, depois de ter verificado pelos dedos a soma.

– Três meses e doze dias – repetiu Rui Preto – em que me não tem tinido na fraldiqueira mais que algumas moedas, que al não pude haver da venda daquele famoso cris que houve na pesca dos mouros mortos na armada, que aí destruímos quando chegámos. junta a isto mau passadio e sobretudo cama danada, serviço contínuo e sempre amartelado com medo do cenho tão fero do capitão; e se feridas não hei, é porque de minhas habilidades me tenho valido – sem desar contudo – acrescentou com ar de importância – de minha honra e prol. Ora tudo isto junto, afora a certeza de o capitão querer continuar na porfia de aqui se manter por mais tempo, com grave dano de minha fazenda, resolvo-me a seguir o teu pressuposto: fujo também.

– Pardiez! e farás bem – replicou Perno Mendes – que mais de proveito nos é irmos lá com os fugidos ao cabo de Guardafu, onde de pardaus encheremos as faltriqueiras, que estarmos aqui de quedo e pasmados diante de quatro paredes e com nosso suor e trabalho erguermos uma fortaleza para outros. Quem as come que as colha, que firme estou eu...

– Sus – exclamou então Rui, voltando-se rapidamente para o companheiro. – está a atracar o esquife do capitão; presto será ele em riba. Cala, que nos não ouça.

O personagem, que passeava na frente dos dois soldados, e que nada menos era que António Fernandes, escrivão da nau de Francisco de Távora, compôs logo a cara com mais grave urbanidade e dirigiu-se caminho do portaló, onde em breve assomou o capitão-mor Afonso de Albuquerque.

Afonso de Albuquerque era homem de estatura ordinária, mas reforçada, rosto corado e comprido e o nariz um pouco grande. O todo das feições indicavam logo um homem de génio. Os olhos pretos, que pareciam cintilar, tinham um tal poder que pouca gente ousava fitá-los; o aspecto severo do rosto e duas rugas bem pronunciadas, que lhe encorrilhavam a fronte, demonstravam a energia extraordinária e a vontade tenaz e soberana do homem criado para mandar.

Afonso de Albuquerque, mal deu com os olhos em António Fernandes, deixou logo revelar nas feições o mais profundo desgosto. O rosto assombrou-se-lhe ligeiramente e as duas rugas que tinha na fronte contraíram-se-lhe mais fundas.

– Que pretendeis, António Fernandes? – disse ele, fitando no escrivão da nau Rei Grande os olhos ardentes.

António Fernandes ocultou numa profunda cortesia a fascinação e em certo modo a impressão de medo que lhes puseram ao primeiro encontro os olhos e os ademanes do capitão-mor. Quando ergueu a cabeça, já estava outra vez sossegado e revestido da mais grave e perfeita urbanidade.

– Senhor – respondeu, estendendo para Albuquerque a mão com um papel dobrado – os capitães das naus me ordenaram de trazer ante Vossa Mercê este requerimento.

Afonso de Albuquerque arrancou com modo ríspido das mãos de António Fernandes o papel que este lhe apresentava.

– Sempre requerimentos! sempre requerimentos! – resmungou em tom áspero.

Depois abriu o papel e leu. Dizia assim (1):

Senhor, fazemos isto por escrito, porque por palavras o não ousamos, por quão apaixonadamente nos sempre respondeis; e em caso que vós, senhor, nos tenhais dito por vezes que el-rei vos não manda que tomeis conselho connosco, este caso é de tamanha substância, que nos parece somos obrigados a dar-vo-lo, e, se o não fizéssemos, seríamos dignos de grande castigo. E porque esta guerra, que agora quereis fazer, é muito contra o serviço de el-rei, nosso senhor, nos parece que Vossa Mercê deve de olhar muito bem, antes de a começar, quanta culpa tem Codja-Athar, para sem razão porem-se ao tabuleiro quinze mil cruzados de renda cada ano, afora a honra de tão grande cidade e reino. E se de todo Vossa Mercê determina de lha fazer e quebrara paz e assento, que com ele tem, a nós nos parece que o não deveis de fazer, porque mais serviço de el-rei, nosso senhor, será deixar agora esta cidade e dissimular com Codja-Athar e para o ano vir possante para a senhorear e segurar, que destruí-la para sempre. E se todavia Vossa Mercê determina de fazer a guerra, olhe bem que seja com todo o resguardo e segurança desta armada, em que vai mais ao serviço do dito senhor que ganhar nem per der esta cidade agora, pois a todo o tempo se pode fazer: porque, sai . não Vossa Mercê em terra de Ormuz ou na cidade, nos deter minamos não ir convosco, nem ser em tal guerra nem conselho. E porque disto seja certo e depois de o não possamos negar, o assinamos aqui todos. Hoje cinco dias do mês de janeiro de 1508 anos. – João da Nova – António do Campo – Afonso Lopes da Costa – Francisco de Távora – Manuel Teles.

Ao acabar de ler este papel, pelo rosto de Afonso de Albuquerque passou o reflexo bem pronunciado de vivíssima cólera. Sem dar resposta a António Fernandes, nem atender aos soldados e marinheiros, que das almadias e terradas tinham após ele saltado para bordo e agora o rodeavam, o capitão-mor, abrindo caminho por meio deles, encaminhou-se para a escotilha grande.

– João Estão! – bradou em voz alta.

E logo, voltando-se para o piloto da capitânia, disse-lhe em voz áspera e sacudida pela cólera:

– Tornai a desamarrar o esquife.

Dois minutos depois desta ordem a cabeça de João Estão, escrivão da armada – espécie de rato, agiota de pequeno trato, que no século XVI roía no nosso comércio da Índia, assomou à boca da escotilha grande.

Primeiro o alto da cabeça – de cabelo curto e preto combinado com algumas brancas; logo o rosto – nédio, rechonchudo e corado; após dois ombros hercúleos, um peito largo e carnudo e enfim um abdómen espantosamente proeminente, assentado sobre duas pernas grossas e curtas, cujos dois pontos de apoio eram tão compridos e largos, que só por hábito se lhes podia dar o nome de pés.

A única diferença que havia entre aquele miserável mete-unha da fazenda do reino naquele tempo, e os devoristas gigantes que hoje comerceiam com as rendas públicas, era – que em vez da casaca afilada e de rabo de pega, da calça de fundilhos, da meia suja de algodão e do sapato grosso apertado com atilho de couro, ele, como soldado que era, vestia um caçote de canhamaço, umas calças de anta, e trazia nos pés uns borzeguins da mesma. A cinta, em vez de adaga, trazia um cris malaio, que a sua qualidade de português dessas épocas faz acreditar que não ficaria na bainha em ocasião de arruído.

João Estão, mal surgiu de todo para fora da escotilha, aproximou-se dois passos do capitão-mor e fez uma profunda cortesia, que, traduzida literalmente, queria dizer: – Aqui estou, meu senhor.

Afonso de Albuquerque lançou rapidamente os olhos sobre ele. Depois, em voz incisiva e forte, disse-lhe somente:

– Acompanhai-me. – E tomou em direcção ao portaló da nau

O agiota-escrivão fez uma segunda cortes 'a, que parecia mesmo falar e dizer: – Às vossas ordens – e seguiu após ele.

Ao mesmo tempo que a última extremidade do corpo de João Estão saía para fora da escotilha, ouvia-se sobre o mar, a rés da nau, o som baço e pesado do esquife caindo sobre as águas.

Alguns minutos depois, empuxado por quatro valentes remeiros, o esquife, conduzindo o capitão-mor e os dois escrivães

João Estão e António Fernandes deslizava-se rapidamente sobre as ondas em direcção à nau de Francisco de Távora.


NOTAS:

(1) Comentários de Afonso de Albuquerque, cap. 46, p. 1.


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