Camilo Castelo Branco

Camilo Castelo Branco, «Luís de Camões: Apontamentos Biográficos». Prefácio da Edição do Camões de Almeida Garrett com notas de Teófilo Braga

I

O protagonista do sempre formoso poema de Almeida Garrett é um Luís de Camões romântico, remodelado na fantasia melancólica dum grande poeta exilado, amoroso, nostálgico. A ideal tradição romanesca impediu, com as suas névoas irisadas de fulgores poéticos, passante de duzentos e cinquenta anos, que o amador de Natércia, o trovador guerreiro, fosse aferido no estalão comum dos bardos que imortalizaram, a frio e com um grande sossego de metrificação, o seu amor, a fatalidade do seu destino em centúrias de sonetos. Garrett fez uma apoteose ao génio, e a si se ungiu ao mesmo tempo príncipe reinante na dinastia dos poetas portugueses, criando aquela incomparável maravilha literária. Ensinou a sua geração sentimental a ver a corporatura agigantada do poeta que a critica facciosa de Verney e do padre José Agostinho apoucara a uma estatura pouco mais que regular.

Camões ressurgiu em pleno meio-dia do romantismo do século XIX, não porque escrevera Os Lusíadas, mas porque padecera duns amores funestíssimos. O século XVIII citava-o apenas nos livros didácticos, e nas academias eruditas, como exemplar clássico em epítetos e figuras da mais esmerada retórica. Tinha caído em mãos esterilizadoras dos gramáticos que desbotam sapientissimamente todas as flores que tocam, apanham as borboletas, pregam-nas para as classificarem mortas, e abrem listas de hipérboles e metáforas para tudo que transcende a legislatura codificada de Horácio e Aristóteles.

Luís de Camões, qual o figuram Garrett no poema trágico e Castilho no drama ultra-romântico, e as musas indígenas e forasteiras nas suas contemplações plangentes, é o que se requer que seja o mártir do amor, o soldado ardido, o talento menoscabado pela camarilha dos reis. Os maviosos sentimentalistas afizeram-nos a estas cores prismáticas – às refulgências das auroras e dos luares teatrais. Mal podemos encarar o nosso Camões a uma grande luz natural. Queremo-lo na tristeza crepuscular das tardes calmosas, na mesta solidão dos mares, nas saudades do desterro. no desconforto das primeiras precisões, vivendo da mendicidade do Jau – do escravo, como se alguma hora houvesse em Portugal escravos de procedência asiática – e das economias da preta, arrastando-se sobre muletas do adro de S. Domingos para o catre do hospital. Quem nos mostrar Camões à luz com que a história e a crítica indutiva elucidam as confusas obscuridades dos homens extraordinários – e por isso mais expostos à deturpação lendária – poderá avizinhar-se da verdade; mas, do mesmo passo, se desvia da nossa inveterada opinião, e talvez incorra em delito de ruim português. (1)

Eu me vejo neste perigo e não me poupo às eventualidades da ousadia. Pretender exibir novidades inferidas de factos comparados e probabilidades em uma biografia tantas vezes feita e refeita, será irrisório atrevimento quando mas puderem contraditar com provas solidamente cimentadas. O que não parecer novo nestes traços será uma justificada emenda aos erros dos biógrafos antigos e recentes em que nomeadamente avultam os senhores visconde de Juromenha e doutor Teófilo Braga que segue muito confiado aquele douto investigador com uma condescendência extraordinária para escritor que tanto averigua. (2)

II

Direi primeiro do amor meio lendário de Luís Vaz de Camões a D. Catarina de Ataíde, como causa essencial da sua vida inquieta e dos reveses da sinistra fortuna procedentes desse desvio da prudência na mocidade.

Diogo de Paiva de Andrade, sobrinho do celebrado orador, deixou umas Lembranças inéditas que passaram da opulenta livraria do advogado Pereira e Sousa para o meu poder (3). Diogo de Paiva nascera em 1576. É contemporâneo de Camões. Conheceu provavelmente pessoas de convivência do poeta. Poderia escrever amplamente, impugnando algumas notícias de Mariz, de Severim e de Manuel Correia. Era cedo, porém, para que o assunto lhe interessasse bastante. Na juventude de Paiva, as memórias de Camões não tinham ainda atingido a consagração poética de que se formam as nebulosas do mito. Diogo de Paiva pouco diz; mas, nessas poucas linhas, há duas espécies não relatadas pelos outros biográficos:

«Luís de Camões, poeta bem conhecido, tendo 18 anos, namorou Catarina de Ataíde, e principiou a inclinação em 79 ou 20 de Abril, do ano de 1542, em sexta-feira da semana santa, indo ela à igreja das Chagas de Lisboa, onde o poeta se achava. A esta senhora dedicou muitas das suas obras, e ainda que com diferentes nomes é a mesma de que fala repetidas vezes. Foi depois dama da rainha D. Catarina, e continuando os amores com boa correspondência, mudou ela de objecto para os agrados de que Camões se queixa em suas composições. Por estes amores foi quatro vezes desterrado: uma de Coimbra, estando lá a corte para Lisboa; outra de Lisboa para Santarém; outra de Lisboa para a África; e finalmente de Lisboa para a Índia, donde voltou muito pobre, sendo já falecida D. Catarina, por quem tão cegamente se apaixonara.»

O desterro de Camões de Coimbra, onde estava a corte, é a novidade que não pude conciliar com o facto de ter residido D. João III em Coimbra nos anos imediatos a 1542, ano em que o poeta vira D. Catarina na Igreja das Chagas. Os impressos que consultei, e não foram poucos, não me esclareceram. Sei tão-somente que o rei esteve em Coimbra por 1527 e 1550. Nesta segunda data já Camões se repatriara do segundo desterro em África. Quanto à inconstância da dama da Rainha – novidade de mais fácil averiguação – os factos que vou expender a persuadem coerentemente.

D. João III, o rei-inquisidor, e piedoso por antonomásia, antes de fazer um filho em Isabel Moniz, fizera outro em Antónia de Berredo. Eram ambas de linhagem ilustre. A primeira finou-se num convento da Guarda, sem ter visto seu filho Duarte que, aos 22 anos, morreu arcebispo de Braga. A segunda ficou na corte, e achou marido de raça fina, sem embargo da cuncubinagem real, agravada pelo acto da sua notória fecundidade. A criança tinha morrido. Os nobiliaristas chamaram-lhe Manuel e ocultaram-lhe o nome da mãe, visto que ela propagou altos personagens, sujeitos envergonhados.

Antónia de Berredo casara com um viúvo rico e velho, António Borges de Miranda, senhor de Carvalhais, Ílhavo e Verdemilho, que de sua primeira mulher, da Casa de Barbacena, tivera dois filhos, a quem competia a sucessão dos vínculos. D. Antónia concebeu do marido, e deu à luz um menino que se chamou Rui Borges Pereira de Miranda. O marido faleceu. Os filhos do primeiro matrimónio, Simão Borges e Gonçalo Borges foram esbulhados da sucessão dos vínculos – um estrondoso escândalo em que influiu o arbítrio despótico do rei a favor do filho da sua amante. (4)

Apossado iniquamente dos senhorios de Carvalhais, Ílhavo e Verdemilho, Rui Borges, filho de Antónia de Berredo, afeiçoou-se a D. Catarina de Ataíde, filha de Álvaro de Sousa, veador da Casa da Rainha, senhor de Eixo e Requeixo, nas vizinhanças de Aveiro. D. Catarina era pobre, como filha segunda; seu irmão André de Sousa era um simples clérigo, prior de Requeixo; o senhor da Casa era o primogénito Diogo Lopes de Sousa.

D. Catarina aceitara o galanteio do poeta Luís Vaz de Camões, talvez antes de ser requestada por Borges de Miranda. O senhor de Ílhavo, rivalizado pelo juvenil poeta, sentia-se inferior ante o espírito da dama da Rainha. (5) Seria um estúpido consciente: queixou-se talvez à mãe. Não é de presumir que a mulher de D. João m se aviltasse protegendo o galanteio repelido do filho da Berredo – amante notória de seu marido; mas é natural que a mãe de Rui Borges recorresse directa e clandestinamente ao rei solicitando o desterro do perigoso émulo de seu filho. Assim pôde motivar-se o primeiro desterro de Camões para longe da corte, e o segundo para África em castigo da teimosia dele e das vacilações de Catarina de Ataíde na aceitação do opulento Rui Borges, – vacilações transigentes com a riqueza do rival do poeta pobre, a meu ver. A dama não seria muito escoimada em primores de fidelidade. Das damas da corte de D. João III, dizia Jorge Ferreira de Vasconcelos: «todas são mui próvidas em não estarem sobre uma amarra por não ser como o rato que não sabe mais que um buraco» – e talvez pensasse em Camões quando escrevia: «Ele cuida que por discreto e galante há-de vencer tudo; eu quisera-lhe muito mais dinheiro que todas suas trovas, porque este franqueia o campo, e o al é martelar em ferro frio.» (6) Saiu Camões para a África em 1547, e lá se deteve proximamente dois anos. Quando regressou, a dama da rainha era já casada com Rui Borges e vivia na casa do esposo convizinha de Aveiro, entregue ao ascetismo, sob a direcção de Frei João do Rosário, frade dominicano.

Subsistem umas Memórias comunicadas a Herculano em 1852, e datadas em 1573 por aquele frade, nas quais o confessor revela que D. Catarina, quando ele a interrogava acerca do desterro de Camões por sua causa, a esposa discreta de Rui Borges respondia que não ela, mas o grande espírito do poeta o impelira a empresas grandiosas e regiões apartadas. Esta resposta, um tanto anfibológica, argúi e justifica o honestíssimo melindre da esposa.

Se respondesse: «fui a causa de seu desterro», daria testemunho menos nobre da sua ingratidão, e teria de corar como esposa voluntária de Rui Borges, como treda amante do desditoso poeta, e ainda como filha espiritual do frade nimiamente indagador que várias vezes e indelicadamente a interrogava sobre o caso melindroso: E "todas las vezes que no poeta desterrado por sua razão lhe falava..." – escreve Frei João do Rosário.

O arrependimento, o tédio e a saudade não a mortificaram longo tempo. Morreu Catarina de Ataíde em 28 de Setembro de 1551, e foi sepultada na capela-mor que dotara no Mosteiro de S. Domingos de Aveiro em sepultura que talvez mandasse construir.

Camões não ignorava a tristeza raladora de Catarina. Este soneto exprime o sentimento duma vingança nobre até ao extremo de compadecida:

Já não sinto, senhora, os desenganos
Com que minha afeição sempre tratastes,
Nem ver o galardão, que me negastes,
Merecido por fé há tantos anos.
A mágoa choro só, só choro os danos
De ver por quem, senhora, me trocastes!
Mas em tal caso vós só me vingastes
De vossa ingratidão, vossos enganos.
Dobrada glória dá qualquer vingança,
Que o ofendido toma do culpado,
Quando se satisfaz com causa justa;
Mas eu de vossos males a esquivança
De que agora me vejo bem vingado,
Não a quisera tanto à vossa custa.

Semelhante soneto dirigido à outra D. Catarina de Ataíde, dama do paço que morreu solteira, não tem explicação. Claro é que Luís de Camões alude à mulher que o vinga padecendo as mágoas resultantes duma aliança em que ele foi ingratamente sacrificado. À outra dama que morreu, estando para casar, segundo a versão colhida pelos primeiros biógrafos, não diria Camões:

...a vingança
Não a quisera tanto à vossa custa.

Como o vingaria ela, desconhecendo as tristezas de casada que não chegou a ser? Era mister que se desse mudança de vida irremediavelmente aflitiva e remordida de arrependimento para que o poeta se ufanasse de vingado, – e tanto que implicitamente lhe perdoa. O soneto que trasladei não atraiu ainda notável reparo dalgum biógrafo, sendo a página mais para estudo nos amores de Camões. (7) Antes do generoso soneto, quando a julgava contente, Camões exprimia-se de mui diverso teor. O ciúme, o despeito e a cólera desafogara noutros versos perdoáveis à dor, mas somenos fidalgos. Chamou-lhe cadela.

O viúvo Rui Borges passou logo a segundas núpcias como quem procura em outra mulher a felicidade que não pudera dar-lhe a devota Catarina absorvida no misticismo, como num refúgio aos pungitivos espinhos da sua irremediável ingratidão.

O poeta granjeara inimigos na corte. Deviam ser os Berredos e os parentes de Rui Borges de Miranda. Entre os mais próximos deste havia um seu irmão bastardo, Gonçalo Borges, criado do paço, a cargo de quem corria a fiscalização dos arreios da Casa Real. Teria sido esse o espia, o denunciante das clandestinas entrevistas do poeta com a dama querida de seu irmão?

Em Maio de 1552, Gonçalo Borges curveteava u seu cavalo entre o Rossio e Santo Antão, no dia da procissão de Corpus-Christi, em que se mesclava um paganismo carnavalesco de exibições mascaradas. Dois incógnitos de máscara enxovalharam Gonçalo Borges com remoques. Houve um recíproco arrancar das espadas. Neste comenos, Luís de Camões enviou-se ao irmão de Rui Borges e acutilou-o no pescoço. O golpe, segundo parece, era a segurar; mas não deu resultados perigosos para o ferido. Camões foi preso; e, ao terminar um ano de cárcere, solicitou perdão de Gonçalo Borges que, voluntário ou coagido por empenhos, lhe perdoou, visto que não tinha "aleijão nem deformidade". A Carta de perdão, produzida pelo Sr. Visconde de Juromenha, é datada em 7 de Março de 1553, e está integralmente copiada. (8)

Dias depois, Luís Vaz de Camões safa para a Índia, na mesquinha posição de substituto dum Fernando Casado, e recebia 2$400 réis como todos os soldados rasos que embarcavam para o Oriente: e para isto mesmo prestou a fiança de Belchior Barreto, casado com sua tia. Aqueles 2$400 réis eram o primeiro quartel dos 9$600 réis, soldo anual do soldado reino!.

Expatriou-se na humilhação dos mais desprotegidos. Devia de ter alienado a estima e o favor de amigos influentes, porque saía do cárcere rebaixado pelo desbrio com que implorara o perdão, e réu confesso de uma vingança por motivos menos honestos aos olhos dos velhos sérios, e desdourados na própria fidalguia pelas ribaldarias amorosas dum mancebo de nascimento ilustre. Se Luís de Camões embarcasse para a Índia como o comum dos mancebos fidalgos, receberia 300 ou 400 cruzados de ajuda de custo.

A família "Camões", no reinado de D. João III, esteve relegada da consideração da corte. O mais notável dessa família, o crúzio D. Bento, prior-geral da sua Ordem, gozou apenas a prelazia monástica, mas sem influência civil dalguma espécie. Simão Vaz de Camões, parente do poeta, senhor dum morgado mediano, era, por esse tempo, um libertino espiado pela justiça, desonrado por delitos graves e alianças matrimonialmente ignóbeis. Os outros ramos vegetavam obscuros; e alguns dessa família que militaram na Ásia não alcançaram alguma qualificação notável nos minuciosos anais de Gaspar Correia. Diogo do Couto nem sequer os nomeia.

No reinado de D. João II, Antão Vaz, avô do poeta, casara com D. Guiomar da .Gama, parenta de Vasco da Gama, a quem seguiu à Índia, capitaneando uma caravela, talvez escolhido por Vasco, em atenção ao parentesco. O herói d'Os Lusíadas enviou Antão Vaz embaixador ao rei de Melinde, a cumprimentá-lo, a levar-lhe presentes e a concertar as pazes. (9) Luís de Camões, com rara modéstia, omite o nome de seu ilustre avó; dá-lhe, porém, predicados de elegância oratória e compraz-se em o fazer discursar largamente. Na dilação do discurso transluz uma lícita vaidade. Vasco

Manda mais um, na prática elegante,
Que co rei nobre as pazes concertasse
Partido assi o embaixador prestante,
Com estilo que Palas lhe ensinava
Estas palavras tais falando orava.
(10)

Nenhum biógrafo, que me conste, aproximou ainda a passagem do poema do nome do embaixador Antão Vaz. Verdade é que João de Barros. Damião de Góis e o bispo Osório escondem o nome do enviado; e a maioria dos biógrafos não conheceu os mss. de Gaspar Correia, nem consultou senão os expositores triviais. Antão Vaz, como se lê noutros trechos daquele prolixo cronista, é sempre o preferido nas mensagens em que é essência o discurso. Conhece-se que Vasco da Gama o reputava eficaz no dom da palavra. Passado o ano de 1508 não tenho noticias dele, nem sei que se avantajasse no posto com que saiu do reino, comandante de caravela, em 1502. Provavelmente não fez fazenda, como lá se dizia na Ásia, ou porque tinha espíritos por demais levantados da terra nas asas da eloquência, como se depreende do conceito do neto, ou porque pertencia à raça ainda generosa e desinteressada dos primitivos soldados do Oriente. O certo é que a sua descendência, filho e neto, não inculcam herdar-lhe os haveres.

III

Posto que na Carta de perdão se diga que o pai do soldado, Simão Vaz de Camões, cavaleiro-fidalgo, morava na cidade de Lisboa, isto não afirma que ele, no ano em que o filho embarcou, ali residisse. Simão Vaz estanciara muito pela Índia, e possuíra em Baçaim, em 1543, a aldeia de Patarvali que D. João de Castro, vice-rei, lhe aforara por 60 pardaus. (11) Estes aforamentos eram vitalícios e concedidos como remuneração de serviços a fidalgos pobres, porque, dizia o vice-rei, não dispunha doutra moeda. Falecido D. João de Castro, os governadores subsequentes Garcia de Sá e Jorge Cabral, insinuados por D. João III, que já vivia do expediente de empréstimos, anularam as concessões do vice-rei como nocivas aos interesses da monarquia. A aldeia de Patarvali foi reivindicada para a Coroa, e a fortuna de Simão Vaz manifestou-se na pobreza da sua viúva e do seu filho único. Pedro de Mariz e a série de biógrafos mais antigos testificam que Simão Vaz, tendo naufragado em terra firme de Goa, a custo se salvara e morrera depois nesta cidade. Ora, em 1552, a nau Zambuco varou no rio de Seitapor, a trinta léguas de Goa, salvando-se a tripulação. Seria essa a nau em que Simão Vaz de Camões ia novamente no engodo da fortuna esquiva? Se era, em Março de 1553, quando. Camões saiu do cárcere, a morte de seu pai não podia ainda saber-se em Lisboa.

É certo que, nas Lendas de Gaspar Correia e Décadas de Couto, o nome de Simão Vaz é inteiramente desconhecido. Seja como for, é necessário expungir da biografia de Luís de Camões um Simão Vaz, residente em Coimbra, primo do poeta, que o Sr. Visconde de Juromenha por desculpável equívoco da homonímia reputou pai de Luís, descurando as induções da cronologia e todas as provas morais que impugnam semelhante parentesco.

Das poesias de Camões nada se depreende quanto aos seus progenitores. Em toda a obra poética e variadíssima do grande cantor não transluz frouxo sentimento filial, – nem um verso referente ao pai. Em todos os seus poemas escritos na África e Ásia, na juventude e na velhice, não há uma nota maviosa de saudade da mãe. Os poetas da Renascença tinham esse aleijão como preceito de escola. Desnaturalizavam-se da família, da trivialidade caseira para se enaltecerem às coisas olímpicas. Gastavam-se na sentimentalidade das epopeias e das éclogas. O amor da família, se alguma hora reluz, não é o da sua – é o das famílias heróicas. Apaixonavam-se pelo mito, timbravam em nos comoverem com as desgraças de Agamémnon ou Níobe. Isto não desdoura a sensibilidade do cantor de Inês e de Leonor de Sá; mas vem de molde para notar que do poeta para com seus pais não se encontra um endecassílabo que lhe abone a ternura. O mesmo desamor se verifica em todos os poemas coevos, quer épicos, quer líricos. Só uma vez em Diogo Bernardes se entrevê tal qual afecto de família a um irmão que professa na Arrábida, e em Sá de Miranda a um filho e à esposa mortos; mas de amor filial é escusado inquirir-lhes o coração nas rimas. Parece que o haverem sido um produto fisiológico do preceito da propagação os sentava de grandes afectos e respeitos a quem os gerou. Não os escandecia em raptos poéticos essa vulgar aliança de filhos a pais.

IV

Luís de Camões achou-se bem, confortavelmente em Goa. As suas cartas conhecidas não inculcam nostalgia, nem a estranheza dolorosa do insulamento em região desconhecida. Rescendem o motejo, o sarcasmo e a vaidade das valentias. Não se demora a bosquejar sequer, com séria indignação, o estrago, a gangrena que lavrava no decadente Império Índico pelos termos graves de Simão Botelho, de Gaspar Correia, António Tenreiro, Diogo do Couto e dos teólogos. Narra de relance e com frases jocosas as façanhas desses ignorados acutiladiços, as bazófias de Toscano, a moderada fúria de Calisto, e as proezas do duelista Manuel Serrão. Era este Serrão um ricaço de Baçaim, senhor de quatro aldeias, que fizera desdizer um bravo da alta milícia. Comprazia-se Camões nestas histórias façanhosas, chasqueando os pimpões de lá e os de cá, uns que nunca lhe viram as solas dos pés por onde unicamente podiam vulnerá-lo como ao herói grego. Acha-se tranquilo como em cela de frade pregador, e acatado na sua força como os touros da Merceana. Preocupava-o fortemente a bravura.

Como a metrópole da Índia portuguesa, não havia terra mais de feição para chibantes. Escrevia Francisco Rodrigues da Silveira: «Dentro em Goa se cortam braços e pernas e se lançam narizes e queixadas em baixo cada dia e cada hora, e não há justiça que sobre o caso faça alguma diligência: dando por razão que o não permite a Índia, porque ceda qual pretende satisfazer-se por suas mãos de quem o tem agravado». (12)

Depois, as mulheres. As portuguesas caem de maduras, ou porque a lascívia as sorvou antes de sazonadas, ou porque vêm ao chão de velhas: – é opiniativa a inteligência do conceito picaresco. As indígenas são pardas como o pão de rala, têm uns palavreados que travam a ervilhaca, e gelam os mais escandecidos desejos. São carne de salé onde amor não acha em que pegue. Lembra-se das lisboetas que chiam como pucarinho novo com água, e manda-lhes dizer que, se lá quiserem ir, receberão das mãos das velhotas as chaves da cidade. De envolta com estas prosas facetas, envia um soneto e uma écloga fúnebres à morte dum amigo.

Esta carta encerra a nota melancólica duma frase de Cipião: «Pátria ingrata, não terás meus ossos». Mas a comparação, para não ser um dislate de orgulho, era decerto um gracejo de Luís de Camões. Que lhe devia a pátria em 1553? Ele tinha 30 anos; escrevera poemas líricos excelentes, apenas louvados na roda dos palacianos e dos menos cultos. Ferreira e Sá de Miranda parece que não o conheciam. O bravo que saíra do cárcere com perdão de Gonçalo Borges a quem golpeara o cachaço, ou o toutiço, como disseram os físicos do exame, em verdade, confrontando-se com Cipião Africano, ao desterrar-se, não primava em pontos de modéstia. O seu avantajado e indiscutível direito à gratidão da pátria era um poema começado apenas, ou talvez ainda não tracejado. Camões tem ante si dezasseis anos para pleitear com Vasco da Gama a imperecedoura glorificação que lhe prepara. A pátria desconhecia ainda o seu grande acredor que se estava germinando no cérebro potentíssimo daquele seu filho – único filho que todas as nações cultas conhecem, e o máximo na imortalidade que tem de sobreviver à terra que cantou.

Os feitos valorosos de Luís de Camões na Ásia não tiveram a notabilidade que os cronistas do Oriente e de D. João III deram a lances insignificantes de homens obscuros. O difuso autor das Décadas, Couto. apenas o nomeia numa crise de pobreza convizinha da mendiguez. Os antigos biógrafos e comentaristas não o condecoram como quinhoeiro nos fastos das carnificinas memorandas. Seria grande elogio à primorosa probidade de Camões o excluí-lo desses canibalismos, dessa

....bruta crueza e feridade,

como ele invectiva na estância XCIX do canto IV.

Mas entrevejo na cerração de três séculos que o poeta, na apoteose do Albuquerque terrível e do Castro forte – elaborando a epopeia que sagrou em idolatria de semideuses uma falange de piratas, escrevia com as mãos lavadas de sangue inocente do índio, a quem apenas os conquistadores concediam terra para sepultura como precaução contra a peste dos cadáveres insepultos, quando não exumavam as ossadas dos reis indígenas na esperança de que lhas resgatassem com aljôfar e canela. (13) Façanhas de Camões não sei decifrá-las nos seus poemas; eles – os poemas – só por si sobejam na sua história como acções gloriosíssimas.

NOTAS:

(1) Camilo, para fugir à deturpação lendária, apresenta Camões como um criminoso defraudando os dinheiros do cofre dos Defuntos e Ausentes, que se o seu grande génio faz perdoar! Também para se libertar dos convencionalismos da lenda, Antero de Quental considera a vida de Camões como a de um rapaz que teve a ventura de dar largas às solturas da idade. É um realismo subjectivo feito à imagem dos críticos; e quem não for nestas águas, por mais investigações que apure só faz «um misto de ingenuidade crítica e paixão idolátrica.» (T. B.).

(2) Camilo ressentia-se nesta época das agulhas ferrugentas, que o intrigavam capciosamente contra Teófilo Braga. Quando o veio a conhecer, confessou que estava farto daqueles medíocres que se escondiam detrás dele para atacarem Teófilo. E citava-lhes os nomes. Depois disso deu o mais belo testemunho da sua generosidade de espírito no inigualável Soneto da «Maior Dor Humana».

Outros críticos também acusam Teófilo Braga de ir nas pegadas de Juromenha; é tão fácil dizer coisas! Quem corrigiu o erro de Juromenha do pai de Camões, Simão Vaz de Camões, confundido com o homónimo turbulento primo do Poeta? Quem apagou o erro de Camões conhecido por Sá de Miranda e memorado pelo cunhado Manuel Machado de Azevedo, mostrando que se referia a Vasco Pires de Camões, terceiro avô do Poeta? Como estes podem apontar-se mais factos, que não foram exibidos como erros de um benemérito investigador, mas como elementos mais seguros de construção, tais como, o quadro dos estudos de Camões em Coimbra, a corte literária de D. João III, o problema de Ternate e de Macau, dos dois naufrágios e da sua sepultura. Mas a Juromenha caberá sempre a glória de nos ter libertado do quadro de Faria e Sousa e de ter encetado a pesquisa dos cancioneiros manuscritos. (T. B.).

(3) Por compra feita ao livreiro Sr. Rodrigues, da Travessa de S. Nicolau, em 1871.

(4) Nobiliário das Gerações de Entre Douro e Minho escrito por Manuel de Sousa da Silva. Deste genealógico nos dá notícia abonatória D. António Caetano de Sousa, no Aparato à História Genealógica, pág. CLXIII: «Manuel de Sousa da Silva, filho de António de Sousa Alcoforado e de sua mulher D. Isabel da Silva. filha de Duarte Carneiro Rangel. Foi capitão-mor do concelho de Santa Cruz de Ribatâmega: escreveu notas ao conde D. Pedro em um grande volume em fólio que se conserva original da sua mesma letra na livraria de Luís Carlos Machado, senhor de Entre Homem e Cávado. Escreveu em quintilhas os solares de todas as famílias do reino manuscritas e um grande número de títulos de famílias com muita exacção porque viu os cartórios dos mosteiros antigos do Minho de que tirou muitas antiguidades para as famílias de que tratou».

(5) Camilo adoptou a lenda dos amores de Camões com D. Catarina de Ataíde, filha de Álvaro de Sousa, mas esta hipótese caducou desde que José do Canto publicou a nota da certidão em que se dá baixa no Livro das Moradias da Rainha. em 1543, tendo deixado a corte por casamento com Rui Borges de Miranda. Portanto desmorona-se todo o romance dos ciúmes de Borges de Miranda, e vingança da Berredo, amante de D. João III, causa do conflito do poeta com Gonçalo Borges na procissão de Corpus: e também a inferência de que a conhecesse Camões já de Coimbra, pelas proximidades em que estava de Aveiro. A frase de Paiva de Andrada, nas Lembranças: «Por estes amores foi quatro vezes desterrado: uma vez de Coimbra...» tem outra interpretação, que se não pode referir a Catarina de Ataíde de Lima, porque estava na infância e nunca viera a Coimbra.

Transcrevendo a Nota à margem do Assentamento do Livro das Moradias da Casa da Rainha a VII de Dezembro de 1543 para ser riscada Catarina de Ataíde por ter certificado o seu casamento, concluiu José do Canto: «A esta aérea presunção se opõe um documento existente na Torre do Tombo respectivo ao Livro das Moradias da Casa da Rainha, que fixa o casamento de Catarina de Ataíde, filha de Álvaro de Sousa no ano de 1543.» (Catálogo Camoniano) T. B.

(6) Eufrósina, act. Iº, c. VI, e act. II, c. II.

(7) O facto notado por Camilo está hoje esclarecido na "Recapitulação da História da Literatura Portuguesa" (Renascença, p. 401 a 404). Na Canção I, Camões celebra uma desolada partida de Coimbra, e como ali passara a sua encantada mocidade, enlevado nos mais ideais amores. E esse idílio é celebrado em diferentes Sonetos em que o nome da Belisa e Sibila personifica o objecto desse sonho, orgulhosa, soberba e desigual no seu afecto; era sua prima Isabel Tavares, irmã do estouvado Simão Vaz de Camões. A família dela, opulenta em Coimbra, não levou a bem esses amores com seu primo pobre. E a saída de Coimbra foi forçada, como uma espécie de desterro, para evitar complicações, Isabel Tavares casou pouco depois. Podem-se nos Sonetos, Elegias e Églogas destrinçar aquelas que se dirigem a Isabel Tavares pela psicologia da mulher idealizada, tão diferente da tímida ternura e ingenuidade da Catarina de Ataíde de Lima, que ilumina outros Sonetos. João Vaz de Camões casara em segundas núpcias com Branca Tavares, e dela houve esta filha Isabel Tavares; e para cujo casamento obteve do seu primogénito Simão Vaz de Camões o solar da Porta Nova do Chão de Joane Mendes. Efectivamente casou com um Álvaro Pinto. (T. B.).

(8) Obras de Luís de Camões, ed. Jur., tom. I pág. 166.

(9) Lendas de Gaspar Correia, tom. I, pág. 560 e 561.

(10) Veja as estâncias desde LXXVII a LXXXIV do canto II.

(11) Tombo do Estado da Índia, por Simão Botelho. (Na Colecção dos Inéditos para a História das Conquistas dos Portugueses, pág. 198).

(12) Memórias dum Soldado da Índia, compiladas por A. de S. Costa Lobo, Lisboa 1877.


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