Soares de Passos

Soares de Passos

Soares de Passos (1826-1860) nasceu no Porto, indo estudar para Coimbra onde fundou o jornal O Novo Trovador. Nele colaboraram poetas da segunda geração romântica. Os seus poemas foram publicados em 1856 numa colectânea intitulada Poesias. Soares de Passos faleceu prematuramente, sendo, no entanto, um dos mais significativos poetas ultra-românticos portugueses. A sua composição mais conhecida é O Noivado do Sepulcro, de que os escritores realistas fizeram grande chacota.

  • Versão integral da obra Poesias


    POESIAS (extracto)

    1858 (1ª ed. em 1856)


    O NOIVADO DO SEPULCRO

    BALADA

    Vai alta a lua! na mansão da morte
    Já meia-noite com vagar soou;
    Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
    Só tem descanso quem ali baixou.

    Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
    Funérea campa com fragor rangeu;
    Branco fantasma semelhante a um monge,
    D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

    Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
    Campeia a lua com sinistra luz;
    O vento geme no feral cipreste,
    O mocho pia na marmórea cruz.

    Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
    Olhou em roda... não achou ninguém...
    Por entre as campas, arrastando o manto,
    Com lentos passos caminhou além.

    Chegando perto duma cruz alçada,
    Que entre ciprestes alvejava ao fim,
    Parou, sentou-se e com a voz magoada
    Os ecos tristes acordou assim:

    "Mulher formosa, que adorei na vida,
    "E que na tumba não cessei d'amar,
    "Por que atraiçoas, desleal, mentida,
    "O amor eterno que te ouvi jurar?

    "Amor! engano que na campa finda,
    "Que a morte despe da ilusão falaz:
    "Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
    "Do pobre morto que na terra jaz?

    "Abandonado neste chão repousa
    "Há já três dias, e não vens aqui...
    "Ai, quão pesada me tem sido a lousa
    "Sobre este peito que bateu por ti!

    "Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
    A fronte exausta lhe pendeu na mão,
    E entre soluços arrancou do seio
    Fundo suspiro de cruel paixão.

    "Talvez que rindo dos protestos nossos,
    "Gozes com outro d'infernal prazer;
    "E o olvido cobrirá meus ossos
    "Na fria terra sem vingança ter!

    – "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
    Responde um eco suspirando além...
    – "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
    Formosa virgem que em seus braços tem.

    Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
    Longas roupagens de nevada cor;
    Singela c'roa de virgínias rosas
    Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

    "Não, não perdeste meu amor jurado:
    "Vês este peito? reina a morte aqui...
    "É já sem forças, ai de mim, gelado,
    "Mas inda pulsa com amor por ti.

    "Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
    "Da sepultura, sucumbindo à dor:
    "Deixei a vida... que importava o mundo,
    "O mundo em trevas sem a luz do amor?

    "Saudosa ao longe vês no céu a lua?
    – "Oh vejo sim... recordação fatal!
    – "Foi à luz dela que jurei ser tua
    "Durante a vida, e na mansão final.

    "Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
    "Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
    "Quero o repouso de teu frio leito,
    "Quero-te unido para sempre a mim!"

    E ao som dos pios do cantor funéreo,
    E à luz da lua de sinistro alvor,
    Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
    Foi celebrada, d'infeliz amor.

    Quando risonho despontava o dia,
    Já desse drama nada havia então,
    Mais que uma tumba funeral vazia,
    Quebrada a lousa por ignota mão.

    Porém mais tarde, quando foi volvido
    Das sepulturas o gelado pó,
    Dois esqueletos, um ao outro unido,
    Foram achados num sepulcro só.




    A CAMÕES

    Ai do que a sorte assinalou no berço
    Inspirado cantor, rei da harmonia!
    Ai do que Deus às gerações envia
    Dizendo – vai, padece, é teu fadário;
    Como um astro brilhante o mundo o admira,
    Mas não vê que essa chama abrasadora
    Que o cerca d'esplendor, também devora
    Seu peito solitário.

    Pairar nos céus em alteroso adejo,
    Buscando amor, e vida, e luz, e glórias;
    E ver passar, quais sombras ilusórias,
    Essas imagens de fulgor divino:
    Tais s o vossos destinos, ó poetas,
    Almas de fogo, que um vil mundo encerra;
    Tal foi, grande Camões, tal foi na terra
    Teu mísero destino.

    A cruz levaste desde o berço à campa:
    Esgotaste a amargura ate às fezes:
    Parece que a fortuna em seus revezes
    Te mediu pelo génio a desventura.
    Combateste com ela como o cedro
    Que provoca o rancor da tempestade,
    Mas cuja inabalável majestade
    Lhe resiste segura.

    Foste grande na dor como na lira!
    Quem soube mais sofrer, quem sofreu tanto?
    Um anjo viste de celeste encanto,
    E aos pés caíste da visão querida...
    Engano! foi um astro passageiro,
    Foi uma flor de perfumado alento
    Que ao longe te sorriu, mas que sedento
    Jamais colheste em vida.

    Sob a couraça que cingiste ao peito
    Do peito ansioso sufocaste a chama,
    E foste ao longe procurar a fama,
    Talvez, quem sabe? procurar a morte.
    Mas, qual onda que o náufrago arremessa
    Sobre inóspita praia sem guarida,
    A morte crua te arrojou a vida,
    E as injúrias da sorte.

    De praia em praia divagando incerto
    Tuas desditas ensinaste ao mundo:
    A terra, os homens, 'té o mar profundo
    Conspirados achavas em teu dano.
    Ave canora em solidão gemendo,
    Tiveste o génio por algoz ferino:
    Teu alento imortal era divino,
    Perdeste em ser humano:

    Índicos vales, solidões do Ganges,
    E tu, ó gruta de Macau, sombria,
    Vós lhe ouvistes as queixas, e a harmonia
    Desses hinos que o tempo não consome.
    Foi lá, nessa rocha solitária,
    Que o vate desterrado e perseguido,
    À pátria, ingrata, que lhe dera o olvido,
    Deu eterno renome.

    "Cantemos!" disse, e triunfou da sorte.
    "Cantemos!" disse, e recordando glórias,
    Sobre o mesmo teatro das vitórias,
    Bardo guerreiro, levantou seus hinos.
    Os desastres da pátria, a sua queda,
    Temendo já no meditar profundo,
    Quis dar-lhe a voz do cisne moribundo
    Em seus cantos divinos.

    E que sentidos cantos! d'Inês triste
    Se ouve mais triste o derradeiro alento,
    Ensinando o que pode o sentimento
    Quando um seio que amou d'amores canta:
    No brado heróico da guerreira tuba
    O valor português soa tremendo,
    E o fero Adamastor com gesto horrendo
    Inda hoje o mundo espanta!

    Mas ai! a pátria não lhe ouvia o canto!
    Da pátria e do cantor findava a sorte:
    Aos dois juraram perdição e morte,
    E os dois juntaram na mansão funérea...
    Ingratos! ao que, alçando a voz do génio
    Além dos astros nos erguera um sólio,
    Decretaram por louro e capitólio
    O leito da miséria!

    Ninguém o pranto lhe enxugou piedoso...
    Valeu-lhe o seu escravo, o seu amigo:
    "Dai esmola a Camões, dai-lhe um abrigo!"
    Dizia o triste a mendigar confuso!
    Homero, Ovídio, Tasso, estranhos cisnes,
    Vós, que sorvestes do infortúnio a taça,
    Vinde depor as c'roas da desgraça
    Aos pés do cisne luso!

    Mas não tardava o derradeiro instante...
    O raio ardente, que fulmina a rocha,
    Também a flor que nela desabrocha,
    Cresta, passando, coas etéreas lavas!
    Que cena! enquanto ao longe a pátria exangue
    Aos alfanges mouriscos dava o peito,
    De mísero hospital num pobre leito,
    Camões, tu expiravas!

    Oh! quem me dera desse leito à beira
    Sondar teu grande espírito nessa hora,
    Por saber, quando a mágoa nos devora,
    Que dor pode conter um peito humano;
    Palpar teu seio, e nesse estreito espaço
    Sentir a imensidade do tormento,
    Combatendo-te n'alma, como o vento,
    Nas ondas do Oceano!

    O amor da pátria, a ingratidão dos homens,
    Natércia, a glória, as ilusões passadas,
    Entre as sombras da morte debuxadas,
    Em teu pálido rosto já pendido;
    E a pátria, oh! e a pátria que exaltaras
    Nessas canções d'inspiração profunda,
    Exalando contigo moribunda
    Seu último gemido!

    Expirou! como o nauta destemido,
    Vendo a procela que o navio alaga,
    E ouvindo em roda no bramir da vaga
    D'horrenda morte o funeral presságio,
    Aos entes corre que adorou na vida,
    Em seguro baixel os põe a nado,
    E esquecido de si morre abraçado
    Aos restos do naufrágio:

    Assim, da pátria que baixava à tumba,
    Em cantos imortais salvando a pátria,
    E entregando-a dos tempos à memória,
    Como em gigante pedestal segura:
    "Pátria querida, morreremos juntos!"
    Murmurou em acento funerário,
    E envolvido da pátria no sudário
    Baixou à sepultura.

    Quebrando a lousa do feral jazigo,
    Portugal ressurgiu, vingando a afronta,
    E inda hoje ao mundo sua glória aponta
    Dos cantos de Camões no eterno brado;
    Mas do vate imortal as frias cinzas
    Esquecidas deixou na sepultura,
    E o estrangeiro que passa, em vão procura
    Seu túmulo ignorado.

    Nenhuma pedra ou inscrição ligeira
    Recorda o grã cantor... porém calemos!
    Silêncio! do imortal não profanemos
    Com tributos mortais a alta memória.
    Camões, grande Camões; foste poeta!
    Eu sei que tua sombra nos perdoa:
    Que valem mausoléus antes a coroa
    De tua eterna glória?

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