António Mendes Moreira, médico desde 1951, reside em Paredes, onde nasceu em 5 de Julho de 1926. Aqui foi director clínico do hospital, director do centro de saúde e professor do ensino secundário. Álvaro Salema salientou que se trata dum «autor que persevera por gosto de escrever e por mérito próprio, distanciado dos meios onde se forjam e alimentam as reputações literárias». Foi incluído na colectânea de escritores do livro Além Texto, da autoria do crítico e ensaísta Ramiro Teixeira. Em 1991, o Município de Paredes instituiu um prémio bienal de ficção com o seu nome. Obras principais: O Tojo Também Floresce (romance, 1956), Vida de Médico (contos, 1966), Vilateia (narrativa romanceada, 1975), Sobretudo o Amor (contos, 1985), Eu e os Outros (7 volumes em: 1983, 1984, 1987, 1992, 1995, 1997 e 2001), O Homem de Bronze (narrativa romanceada, 1993), A Jornada (compilação de toda a ficção, 1996), >Conversa de Amor (1998), As Minhas Charlas (literatura biográfica, 1999), A Alma Nua de um Médico (narrativas autobiográficas, 2002).
O PRIMEIRO DOENTE
Entrei no consultório e olhei em redor: quatro paredes nuas. Depois, sentei-me à escrivaninha e contemplei a estante dos livros, que devia ter impressos no cérebro, mas sentia-o oco e via-os brancos. Folheara-os quase sempre placidamente, de olhos postos numa meta – o exame, e num prémio – a aprovação, pois só no derradeiro esforço de cada ano, quando julgava tudo esquecido e me pareciam intermináveis, os açoitara com dedos aflitos. A verdade, porém, é que nunca pensara neste dia. De facto, cada cadeira feita representava um volume arrumado ou uma sebenta vencida, melhor dizendo, uma matéria mais ou menos atirada ao esquecimento.
Naquela ocasião tinha diante de mim um pequeno rectângulo de papel branco com o esquema do exame clínico: identidade, antecedentes pessoais e familiares, história da doença, exame objectivo dos diferentes aparelhos e sistemas... Já o lera inúmeras vezes. Sim. Sabia-o! E receitar? As especialidades luziam-me como estrelas dum céu onde não conseguia distinguir as de maior grandeza. Depois meditava nos casos que poderiam surgir e relia, amedrontado, logo em seguida e mais uma vez, o esquema. Julguei ouvir estas palavras dum velho camarada:
– Trate sintomas até chegar ao diagnóstico, se chegar a ele...
Bateram à porta e corri a abri-la.
Na minha frente, ao colo duma mulher de aspecto miserável, uma criança de poucos meses, mas em que só consegui ver o monstro da doença!, a enfrentar sozinho pela primeira vez! Vacilei e encostei-me à secretária.
– Com sulfamidas, regimes alimentares e vitaminas resolve-se a clínica infantil – veio-me à memória esta frase dum colega rural.
Discordara intimamente da ligeireza de semelhante síntese, mas que ressuscitava, agora, com o prazer dum achado.
Sentei-me e convidei a mulher a fazer o mesmo. Percorri mansamente o cabelo com a mão, como se procurasse afagar o cérebro. Aquilo que me formigava no corpo era idêntico ao já vivido nos exames. Só com uma diferença: em vez dos olhos do mestre, tinha os duma mãe angustiada, porventura mais severos ainda. E, se não havia responsabilidade de palavras, tinha-a de acções, o que era bem pior.
Enchi-me de ânimo e peguei no auscultador, precisamente na altura em que a pequerrucha, ao ser despida, começou a berrar. Finos e cortantes, esses gritos foram-me esgadanhando os nervos e a paciência. Vencendo-me, procurei calá-la com atitudes virgens de pediatra, misturadas às de ama improvisada, mas sem êxito. Não, não poderia observá-la assim!
A mãe, com múltiplos carinhos para a serenar, involuntariamente foi-me tranquilizando também. Com as olivas nos ouvidos, aguardei o momento de poder intervir, mas, como o choro não findasse, vi-me coagido a pousar-lhe, de qualquer maneira, o fonendoscópio no tórax. O berreiro, amplificado, zurziu-me impiedosamente os ouvidos, não havendo possibilidade de perceber qualquer ruído patológico... Aparentando indiferença, arrumei o estetoscópio e, ao lembrar-me de que não seguira o esquema de observação, embrenhei-me no interrogatório: idade, antecedentes, regime alimentar... Em seguida, abri à força a boca da doente e espreitei-lhe a garganta. Depois, deitei-a na cama e premi-lhe os ouvidos sem esperar nenhum resultado, porque a imensa gritaria não era susceptível de aumentar com qualquer dor provocada. Também minhas mãos, ao palparem o abdómen, fogo esbarraram na tábua dus músculos contracturados pelo choro. De positivo só o exame da garganta, que nada revelara. Com franqueza: não sabia o que ela tinha! E, se diligenciei continuar a observá-la pormenorizadamente, não foi porque visse possibilidade de chegar a um diagnóstico por entre tanto ruído e movimentos intempestivos, mas para convencer os olhos maternos do meu zelo e competência e ainda para guardar a consolação de me ter dado inteiramente.
Indispensável ser adivinho em certos casos de clínica infantil? Como começar a resolver aquele problema? Sinceramente, não encontrava a ponta do fio no novelo da minha atrapalhação. Recordei a sentença do colega rural e demorei-me numa prelecção sobre o regime alimentar. A mulher olhava-me com uma expressão fechada ao entendimento, pelo que procurei refinar o polimento das palavras, como engraxador que se esmera. Desejava assarapantá-la ainda mais. Tive prazer nisso. De súbito, verifiquei que estava a tornar-me ridículo, e sobretudo para comigo próprio. Era preciso agir! Frisei então, com simplicidade, algumas normas sobre alimentação, martelando-as várias vezes. Cheguei, por último, a pedir-lhe que as repetisse. Depois, sentei-me à escrivaninha e espremi a memória, como quem torce uma peça de roupa húmida, e no papel caiu timidamente um medicamento. Insatisfeito, convidei-a a voltar no dia seguinte. Se pretendia chegar ao diagnóstico e poder curar a criança por um desejo de ser útil, também ambicionava que o meu nome ficasse com boa reputação logo no primeiro caso. Além disso, teria movimento no consultório...
Ao entregar-lhe a receita, com o nervosismo de quem passa uma nota falsa, a desgraçada perguntou-me quanto devia.
– Nada.
Dizia-o sinceramente, pois eu é que lhe devia a iniciação na vida clínica.
– Quero pagar a consulta.
Tornei a recusar. Ela, então, meteu a mão no bolso do avental e começou a deixar cair moedas de pequeno valor no tampo da secretária. A princípio, fiquei petrificado. Depois gritei, enquanto lhe agarrava a mão, como se estivesse a magoar-me:
– Pare! Pare!
Mas não se deteve.
– Tenho de pagar o trabalho – disse, por fim.
Olhei comovido para o dinheiro: não era uma recompensa, mas uma dívida a saldar aos desgraçados.
UMA VISITA
Havia semanas que me fixara na vila, mas os clientes teimavam em ser tão raros como as aves nocturnas durante o dia. Talvez por isso, quando abria o consultório e tirava a bata do cabide, esta nunca deixava de continuar pingando do meu corpo.
Quase invariavelmente, a primeira coisa que fazia era arrumar os medicamentos, cujas embalagens, de diversas cores e formatos, pareciam substituir os brinquedos novos da infância. Precisava de me ver entretido nisso para afugentar o desalento e também sentir a ânsia de encher rapidamente as prateleiras, destinadas a fornecer os mais pobres e aqueles a quem, na dúvida ou na impossibilidade de chegar a um diagnóstico exacto, receitava várias drogas, algumas delas dispendiosas. Procurava, então, pedir amostras aos representantes dos laboratórios que, como cometas, passavam por lá, mas, travado pela desolação quase permanente da sala de espera, depois de examinar o catálogo, nunca apontava mais de três ou quatro.
– Só? Disponha.
Nessa altura, já liberto do acanhamento, apontava as que memorizara, logo saboreando a saída farta das caixas da pasta para o tampo da escrivaninha, e daí para o armário. A seguir, costumava sentar-me e reler sossegadamente um ou outro capítulo dos livros de estudo. Liberto do freio da obrigação, neles topava, agora, atraentemente límpidos, os assuntos obscuros e fastidiosos de outrora. De repente, deparava comigo a rabiscar desenhos, enquanto pensava no casamento e no futuro. Às vezes considerava-me vencido, pois tivera a ilusão de que os doentes pululariam ruidosamente no consultório como pássaros em árvore frondosa ao entardecer. Até ali, no entanto, observara, quase exclusivamente, doentes crónicos: abelhas desgarradas, tocando mais uma flor recém-desabrochada, na busca incansável do pólen capaz de se transformar no mel da cura?; ou, mais prosaicamente, ébrios quando há taberna com pipa nova? Com eles ia consumindo tempo de que não precisava, ao querer, sôfrega e tantas vezes ingenuamente, melhorá-los ou pô-los bons, e isto, em grande parte, para ver se conseguia ultrapassar os colegas. De facto, cansados com o fardo da dor, depois da consulta minuciosa, aqueles pareciam pousá-lo e soltar um «ah!» de alívio, logo se escapando lépidos e contentes!
Sabia que tal euforia era quase sempre transitória. Muitos não reapareciam. Outros voltavam no mesmo estado, mas ainda com uma réstia de fé. Do joeiramento de todos eles, contudo, ficavam os que tinham melhorado e iam propagandear o meu nome.
Ultimamente, quando era procurado, costumavam comentar:
– Disseram-me que era muito entendido...
E continuava a exceder-me para chegar ao diagnóstico e a um tratamento eficaz.
Entretanto, aproximava-se a hora de fechar o consultório. Olhei o relógio, embora desejasse estar mais tempo, na expectativa de ver chegar novo cliente: o terceiro daquele dia...
De súbito, quando me preparava para despir a bata, esmurraram a porta com aflição. Mandei entrar.
– Tenho a minha mulher a morrer! – anunciou um homenzarrão angustiado.
– De quê? – perguntei, enquanto vestia atabalhoadamente o casaco.
Ficara também atemorizado. Que primeira experiência séria me Esperaria? Havia coisas que temia, como um parto, um ventre agudo...
– Tem um tumor no peito.
Descansei.
– Vamos lá.
Bati, contente, a porta. Nesse dia já não a fechava, olhando para um lado e para o outro, como gatuno receoso da mira da vizinhança. Mais: chegara a arrepender-me de ter o consultório no centro da vila por se poder observar a sua habitual solidão. Naquele momento, porém, estava satisfeito por o caso não me parecer de resolução urgente, dando assim tempo para o estudar, e ainda por ir com alguém que me reclamava.
Caminhei vagarosamente para o carro, chegando até a parar para me deter num interrogatório minucioso sobre a morada. Era desnecessário por levar companhia, mas desejava que vissem o aumento da clientela...
Sentámo-nos no automóvel e, percorridos seis quilómetros, entrámos num caminho muito estreito. Em breve, porém, o homem anunciou, ao mesmo tempo que indicava uma casa térrea, à beira dum pinhal:
– É aqui.
Apressei-me, como qualquer caçador na peugada da presa, até entrar no quarto. O mobiliário resumia-se à cama de ferro, à mesa-de-cabeceira, a uma caixa para guardar a roupa (dessas que os mais abastados usam para a recolha dos cereais) e a duas cadeiras sem pintura. As paredes, que procuravam ser brancas, estavam semeadas de quadros religiosos e fotografias, mais ou menos envelhecidas dos dias festivos, pois mostravam o casal, os filhos e provavelmente os antepassados com os fatos do casamento, da comunhão ou de domingo.
Com um olhar capaz de me sorver, a doente mostrou sem rebuço o tumor luzidio que lhe nascera num seio. Alarmado, sentei-me e observei-o pormenorizadamente. Ao levantar-me, porém, já estava tranquilo, pois, naquela altura, o seu aspecto não passava duma máscara que só podia aterrar os leigos. O caso concedia-me uma boa oportunidade de triunfo? Lavei as mãos e enxuguei-as na toalha de linho.
– Voltarei amanhã para abrir isso.
O marido ficou estupefacto. Soube, depois, que pensava no médico-da-família e naquilo que dissera com ar de quem apresentava pêsames antecipados: «Cancro incurável. Só remédios para as dores...». Ao sairmos do quarto, desfechou esta pergunta, que me intrigou ainda mais:
– Vai abrir o tumor?!
– Sim, vou abri-lo!
Deve ter ponderado que, com a mulher condenada à morte, mal maior não lhe podia advir dessa intervenção. Também, como posteriormente vim a saber, tendo saído da faculdade havia pouco tempo, talvez conhecesse remédios modernos para aquele «mal ruim»... Intimamente, suponho agora, deve ter-se sentido feliz por admitir o «milagre» da cura e, caso contrário, prazer revoltado em assistir ao meu esbarramento.
– Bem, o senhor doutor lá sabe...
Comecei a refrear o entusiasmo por encontrar no caminho reticências e pontos de interrogação. Desejaria até voltar a vê-la para me certificar melhor, mas contive-me, pois seria fornecer um testemunho de insegurança. Pensei em fustigá-lo com esta frase: «Sei muito bem o que devo fazer». E se errasse? Sim, se errasse!?
– Entendo que devo intervir quanto antes. E a única possibilidade de a salvar.
Calou-se.
– Deviam ter chamado mais cedo... Vamos a ver... O caso é muito mau...
Ficou, assim, atenuada a longínqua previsão dum insucesso ou avantajado o êxito que se avizinhava.
Quando me dirigi para o automóvel, uma mulher gorda e untuosa aproximou-se, e tão vagarosamente que me vi obrigado a compará-la a uma gata prenhe.
– Caso perdido, não é senhor doutor?
Na sua pergunta magoada pareceu-me enxergar certo conforto em ver-se saudável, e precisamente na ocasião em que a vizinha, da mesma idade, estava moribunda... Também, como só depois tive conhecimento, habitava em si o desejo de ir propalar pela freguesia o meu inevitável prognóstico pessimista. Apenas eu desconhecia o que todos sabiam: a doente fora considerada incurável.
– O caso é grave, mas espero salvá-la.
Ficou pasmada. Como arremedo de enfermeira na povoação, deve ter-me considerado inepto ou inconsciente. Percebi até que lhe ferveu no íntimo o desejo de discutir o caso, e tanto mais que costumava ser indicada para a aplicação de injecções. Por outro lado, a frieza com que a tratava não consentia a germinação de qualquer simpatia para comigo e antes a costumada hostilidade contra o que era novo, contra o que vinha perturbar o estabelecido.
– Esperemos que seja feliz...
Entrei no carro. As dúvidas postas pelo marido e pela vizinha que significado poderiam ter? Desconfiança nos meus recursos de principiante? Se, por um lado, isso se tornava desagradável, por outro, não seria mais um trunfo para o sucesso previsto?
Ao guiar, quase não premia o acelerador. Enquanto o automóvel parecia conversar preguiçosamente com a estrada, fui meditando, pois havia qualquer sentimento indefinível que levava a precaver-me. Teria de ser cauteloso... Como? Puncionaria previamente a tumefacção!
Entretanto, como soube mais tarde, a senhora Genoveva não deixou de ir murmurar pela freguesia:
– Há um médico que promete ressuscitar a Guilhermina!
Ao enterro da mulher juntar-se-ia o do meu futuro?...
No dia seguinte, ao aproximar-me da casa da doente, deparei com um ajuntamento anormal. Teria morrido? Pelo sim, pelo não só abri a porta do automóvel depois de se aproximar o habitual enxame de garotos, que nada anunciavam.
Saí e comecei a caminhar por entre rostos desconfiados.
Quando cheguei ao quarto, esterilizei a seringa e aprontei o material cirúrgico sem ouvir uma palavra ou sussurro. Tudo aquilo se me afigurava estranho, ficando até com a impressão de que as imagens religiosas das paredes e o próprio crucifixo da cabeceira da cama me fixavam com severidade. Pela última vez, para certeza final, palpei e percuti a inchação demoradamente. Depois pincelei-a e voltei a pincelá-la várias vezes, como quem deseja viver mais uns minutos de dúvida. Ao pegar na seringa, esta tremeu-me nas mãos, mas, com um impulso repentino, levei a agulha a perfurar a pele. Pus! Pus! Confiante, lancei uns jactos de anestésico até a pele ficar como neve, enquanto mirava, de quando em quando, os circunstantes, que continuavam de olhos espetados no abcesso. A lanceta foi, então, pronta a rasgar a carne para deixar sair um jorro esverdinhado e fétido. Minha mão ajudara a da natureza naquele caso: tudo se resumira a um quartilho de pus.
O marido, com a expressão de quem não teme a negativa, inquiriu:
– Está salva?
– Pois claro! – respondi no tom de voz de quem achava tão supérflua a pergunta como a resposta.
A «enfermeira», três filhos da doente e mais alguns curiosos, de bocas e olhos bem abertos, começaram a mexer as cabeças (pesavam a «façanha»?).
– Muitos parabéns! – interveio a senhora Genoveva, depois de extinta a estupefacção.
Vi que procurava fazer-me festas com as garras da véspera encolhidas. Quereria até lisonjear-me com as primeiras felicitações por me predestinar uma longa vida clínica?...
– Vai precisar de curativos...
– Provavelmente.
Embora essa laconismo azedo estivesse a repeli-la, decidiu acompanhar-me ao carro sempre com trejeitos de felino, e agora com os do que se roça pelo dono.
– Sabia que já tinha sido vista por dois colegas?
Minha primeira impressão foi a de que pretendia dar uma novidade capaz de iniciar relações de convívio. Todavia, ao medir a gravidade das suas palavras, parei subitamente:
– Que me diz?
– E tinham-na condenado à morte.
Senti-me traído. Que pensariam os colegas? Retrocedi para verberar tal atitude, mas correu atrás de mim.
– Senhor doutor, senhor doutor, escute-me!
Não desejava, soube-o mais tarde, que se criassem implicações susceptíveis de porem ao léu a primitiva hostilidade para comigo.
Estaquei.
– Os médicos já cá não vinham há muito tempo e tinham dado licença à família para chamar quem quisesse.
Nesse momento compreendi bem a causa dos pontos de interrogação e das reticências arremessados na véspera pelo marido da doente e pela «enfermeira» e ainda que um diagnóstico será tanto mais certeiro quanto mais tardio... A sorte protegera-me, afinal!
No regresso, à minha alegria associava-se a do ronronar fraterno do automóvel.
OS AMANTES
Certa tarde, precisamente quatro meses após o início da vida clínica, um diálogo, entrecortado de risadas, veio estilhaçar o silêncio da sala-de-espera do meu consultório. Tratava-se dum casal, jovem e descontraído, que mais me pareceu um par de aves folgazãs em noivado de Primavera. De braço dado, saudaram-me com um «boa-tarde» muito comunicativo e sentaram-se.
– Então, que temos de novo? – perguntei, com o modo acolhedor que podia resultar de me sentir ocupado.
– Enjoos, vómitos... – respondeu o moço, de olhos na companheira.
Por via dessas palavras e do aspecto de recém-casados, suspeitei logo de gestação.
– Vamos atalhar isso.
Sorriram e continuaram de braço dado, com as cadeiras muito juntas. Contemplei-os: a rapariga, sacudida e berrante, parecia uma dessas trepadeiras floridas, que as mãos travessas do vento teimam em despir, enquanto o rapaz, moreno e forte, não seria mais do que o tronco onde se enroscava.
Não atingindo a verdadeira finalidade da consulta, folheei disfarçadamente o caderninho de bolso com uma lista de medicamentos, elaborada após a formatura, e isto para encontrar um que lhe extinguisse os vómitos. Achei-o e retive-lhe o nome e a posologia.
Era, no entanto, necessário observá-la para chegar a um diagnóstico, quanto possível exacto, e fazer jus aos honorários da consulta. Depois dum interrogatório meticuloso, que confirmou a suspeita de gestação, palpei-lhe o abdómen, auscultei-a, medi-lhe as tensões, escrevi a receita e garanti com a fé inocente dos primeiros tempos:
– Ficará bem com estas injecções.
Talvez por julgarem colhido o que ambicionavam, saíram trasbordando euforia.
De novo sozinho, e agora com a calma que se segue ao trabalho bem sucedido, procurei dissecar-lhes as palavras e atitudes. Através da reflexão, só nessa altura consegui descortinar olhares maliciosos, cochichos comprometedores, gestos dúbios de amantes e a razão de o moço ter guardado a receita tão ciosamente como uma cautela premiada. Ao descobrir-lhes tão tardiamente a intenção, sorri da minha ingenuidade de principiante. Na rua continuariam embalados pela certeza de terem conseguido o que desejavam, enquanto eu estava convencido de ir abortar os vómitos...
O tempo correu.
Um dia, com grande espanto, vi-os entrar no consultório, de olhos imanizados numa criança de poucos meses. De facto, estranhara não terem voltado, pois era natural que o fizessem ante a ineficácia do tratamento.
Contaram-me que, desaparecidos os vómitos, haviam ficado tranquilos durante algumas semanas. No fim destas, porém, enquanto o rapaz propunha nova consulta, a jovem, de ventre aumentado, começou a sentir como sua a carne que lhe morava nas entranhas. De nada valeu a insistência em contrário do parceiro. Queria se mãe, e foi. O recém-nascido venceu, então, o homem e casaram.
Naquele momento procuravam-me por o pequerrucho estar doente. Lutavam, agora, pela sua vida que, candidamente, também me pertencia um pouco.
© António Mendes Moreira, Vida de Médico, 4ª edição, em A Jornada, Porto, Livraria Civilização Editora, 1996 (Reprodução autorizada pelo autor).