Projecto Vercial

Júlia Nery


Júlia Nery

Júlia Nery nasceu em Lisboa, no dia 28 de Outubro de 1939. Licenciou-se em Filologia Românica na Universidade Clássica de Lisboa, em 1964, e é diplomada em Estudos Franceses pela Universidade de Poitiers. Actualmente, é professora na Escola Secundária de Cascais e formadora no domínio da Didáctica Específica do Português. A par da investigação nos domínios da didáctica e da pedagogia da Língua Materna, tem-se dedicado à dinamização de oficinas de escrita criativa, tendo também realizado dramaturgias de espectáculos destinados ao público juvenil, em colaboração com o Teatro Experimental de Cascais e o Grupo Nós e Vozes; é autora de teatro radiofónico e de crónicas radiofónicas, assim como de colaboração dispersa por jornais e revistas.

Obras publicadas – Ficção: Pouca Terra... Pouca Terra (Rolim, Lisboa, 1984); O Cônsul (Publicações D. Quixote, Lisboa, 1991; Edição do Círculo de Leitores, Lisboa, 1993; tradução francesa, editora Le Mascaret, Bordéus, 1992; tradução alemã, Editora Epoca, Zurique 1997; Editora Pipper, Munique, 1999); Valéria, Valéria (Editorial Notícias, Lisboa, 1998); Infantas de Portugal (Editorial Notícias, Lisboa, 1998; WWW.morte.com (Editorial Notícias, Lisboa, 2000). Teatro: Na Casa da Língua Moram as Palavras (Edições Asa, Porto, 1993); O Plantador de Naus a Haver – Prémio Eça de Queirós 1994 – (Edições Asa, Porto, 1994); Do Forno 14 ao Sud Express com Autos e Foral (Edição da Câmara Municipal, Nelas 1996).



Valéria, Valéria

17 de JUNHO 197521,30 – Reunião «Sempre os galos cocorocam à vista das galinhas.»

Mais do que ouvi-los, Marinela gostava de os atiçar. As assembleias começavam a aquecer bem depois da meia-noite. Para alguns, o marxismo só nas palavras, que no pensamento ela descobria-lhes manhas freudianas. Sentia o picante de estar ali a dar e a retirar a palavra, a meter pauzinhos secos nos acesos da discussão. Por ela se calavam, mudavam de tom, se exaltavam ou concordavam com tudo. Não era parvo quem a propusera para presidente da Mesa. Aqueles indivíduos de idades e educações tão diferentes pareciam meninos de vivenda a brincar às revoluções com os filhos do jardineiro. Uns, por tanto terem sonhado com elas a ler o livro vermelho do Mao Tsé Tong trazido entre a roupa suja num regresso de Londres ou Paris; os outros, sentindo-se porta-estandarte das revoltas transmitidas por gerações de camponeses e operários. Aqueles, que iam às assembleias por convicção e direito de classe e que queriam fazer-se ouvir, irritavam-se, faziam pontos de ordem à Mesa e requerimentos para fazer avançar os trabalhos.

Num dia em que dois grupos estavam quase a engalfinhar-se, só porque alguém propusera um entendimento com outro partido político, a ela apetecera-lhe incitar a qualquer coisa de extremo; tomar o pulso ao desejo que lhes adivinhava de se fazerem valentões diante daquela loira cujo marido, que eles bem sabiam ser alérgico a cravos vermelhos, lhe enviava do Brasil os cheques com que ela se pagava as despesas militantes, até a cola, os baldes e os pincéis para as colagens.

Grupo em que Marinela participasse seria capaz de encartezar todas as paredes de Lisboa, à compincha com ela, que esticava as pernas, longas, bem tratadas, muito bem feitas, e os braços até fazer estoirar os botões pela pressão dos seios, quando alisava os cartazes com as mãos espalmadas, com aquele seu vício de querer tudo bem feito.

A partir desta data e durante muitas páginas, este diário é um memorando de encontros, comícios e reuniões, de que podemos inferir que ela estava constantemente mobilizada para a acção e que os seus projectos de felicidade se ligavam cada vez mais com uma arte de viver novas relações com os outros e com o futuro.

Pelos apontamentos de Marinela correm as mais insólitas personagens, pois que era aquele um tempo em que bastava um cravo vermelho para abrir a porta das casas e dos corações, e por isso mesmo propício à exploração de românticas ingenuidades, como fora o caso de uma antiga colega de carteira de Marinela, uma universitária militante, mantida pelo novo riquismo dos pais num bairro acima de qualquer suspeita. Nos seus braços acabara por acoitar-se um sul americano bem musculado, cujas camisas de seda pura destoavam da sua boina à Che Guevara; um homem que lhe dera grandes sobressaltos e despesas, quando viera a descobrir-se que ele era afinal um traficante de armas que estava em Portugal a sondar o mercado, enquanto incitava um grupo de idealistas contra os monopolistas e os grandes latifundiários.

O diário de Marinela dá-nos daqueles tempos a imagem metafórica de uma cidade púlpito invadida por palavras. Uma imensa varanda de janelas escancaradas, onde se erguiam as trombetas dos pregoeiros das diárias novas e do toque a reunir. Anotara tudo em frases tão apressadas que, se não fossem as cartas que escreveu para o marido, encontradas entre as folhas do diário, pouco se saberia de como ela se aguentara nas ondas de ideais e oportunismos que se agitavam em Portugal naquele Verão quente e cujas frequentes manifestações de rua eram a principal atracção turística para muitos estrangeiros curiosos que vinham aqui gozar o frémito de uma revolução que não lhes custava nada.

(...) Durante os últimos anos , Marinela vivera absorvida pelo trabalho e procurando no cansaço uma espécie de indiferença pelos apetites do corpo e a negação dos afectos- um estado de alma que a protegia, pois que a não sujeitava nem á dor nem ao prazer, nem à mistura de um e de outro. Agora, liberta do olhar interpretativo e da mudez censória da mãe, da tutela do marido e, principalmente, dos sentimentos de pudor e comedimento nas acções, com os quais a educação a condicionara a ser uma infeliz fotocópia esborratada de si mesma, Marinela julgava-se preparada para ser senhora do seu quotidiano, para o fruir, finalmente, na plena liberdade das suas emoções. Não sabia ainda que sentir-se livre é uma ilusão de névoa que, ao calor de qualquer afecto, se esvai. E, no coração de Marinela, protegido de todas as mudanças que em si acontecessem, aninhava-se o amor por Valéria, a sua menina que se fazia mulher.

Eis-nos chegados ao tempo de Valéria...

Júlia Nery, Valéria, Valéria, Editorial Notícias, Lisboa, 1998, pp. 57 e 72 (reprodução autorizada pela autora).



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