Nélson Ferraz nasceu no Porto em 1952. Foi colaborador, nos anos setenta, do jornal Notícias de Chaves e nos anos oitenta da revista Espaço Aberto do GCDT do BESCL. É cronista dos jornais Maia Hoje e Gondomar Económico.
Obras: Livros de poesia Ternura (edição de autor, 1977); Sintomas (edição de autor, 1978); Coisas do Tempo (edição do SBN, 1999); As Palavras Côncavas (Editora Ausência, 2003). Livros em prosa À Esquerda de Deus (Editora Ausência, 2004), O Coleccionador de Bugigangas (edição de autor, com apoio do SBN, 2008).
Colaborou nos cadernos Pinguim Poesia em Pó (micro colecção semanal do Pinguim Café) e na Antologia 100 anos Federico Garcia Lorca Homenagem dos Poetas Portugueses (Universitária Editora, 1998). Participou na Antologia Poética Além do Arco-Íris (GCDT do BESCL, 1989) e na Colectânea de Poesia Novíssimos (Editora Ausência, 2004).
"Pois com todas estas crónicas deixo o leitor, reiterando-lhe a recomendação inicial de se encontrar com este livro o mais informalmente possível. De qualquer modo, ele contribuirá para a sua (re)formação cívica, dará sentido àquilo que sempre receosamente pensou que não se podia dizer, muito menos escrever ou enfiar por atacado num livro. E acrescentem lá esta pedra do património oral português: Nunca ninguém levantou voo que não fosse contra o vento."
José Viale Moutinho - prefácio de À esquerda de deus, editora Ausência, 2004.
UM POEMA
Tenho saudades mas não tenho
O sentido da dor que sinto
Quando olho para mim.
É curioso como o tempo
Construiu, às escondidas,
Tanta distância assim.
In Coisas do Tempo, 1999 (reprodução autorizada pelo autor).
AQUI
Por mais barcos que o nosso olhar estenda, na maré difusa dos anos que por nós passam, não há senão sofrimentos, inúteis e vincados, na derrota que nos conquista, batalha após batalha.
É a vida, diz-se.
E a vida amarrota-nos, sem penas e sem cuidados, estica-nos a sede, a fome e as lágrimas e, quando damos conta, não temos caminhos, nem mares, nem sopros de vento que alarguem as escolhas ou vençam os desencantos.
E os desencantos chegam, envoltos em amarguras distantes, como se fossem longínquas estas vontades omnipresentes de estar sempre alerta enquanto a bruma se desfaz, lá longe, longe o bastante para que a luz se esventre e adormeça no sangue da noite. Longe, lá longe. Lá. Longe.
De lá longe, como se fosse perto, chegam-nos notícias daqui, iguais aos sonhos que não podemos ter, iguais às feridas que temos e que desabam, sem piedade, a cada passo tímido, a cada esquina vítrea de nós mesmos.
É isto que nós somos? Apenas isto?
Somos parágrafos de uma colecção de ocasos, somos avenidas de uma montanha por desenhar. Às vezes, somos a areia, quase toda, de uma ilha cheia de projectos embrulhados em giz.
E depois chega uma criança que cospe no chão onde estavam as marcas de giz: as nossas marcas de vida e de silêncios secretos.
Quase se apagam, as marcas.
Não. Nem o cuspo vence as quimeras das mãos. Nem há saliva que molhe as linhas trágicas que nos circundam. As linhas são carris de percurso e nós existimos.
Existimos como existem as pedras, por aí. Mas aqui, na nossa verdura linear de inteligência, memória e emoção, sobra-nos a doença, inevitável, incontornável e horrível que, de carimbo em riste, nos escolhe a respiração, nos dita a pulsação e nos circunscreve ao mais ínfimo assomo de dignidade e dependência.
Dependemos da vontade, do tempo e dos conflitos da altura.
A partir de certa idade, vestimo-nos de doença e desatenção. E as amarras que nos seguravam à paz, quebram-se, uma a uma, como tábuas carunchosas de um soalho medieval. E nasce a revolta. E as dúvidas.
Nascemos uma única vez, mas, para mágoa nossa, temos de renascer mil vezes, de reaprender, mil vezes, o bê-á-bá da existência, de ser, mais mil vezes, o patinho feio da turma que nos rodeia. Precisamos de disfarçar, por um milhão de vezes, a tristeza, as lágrimas e a injustiça de sermos, aos olhos de todos os outros, os inúteis velhos e ignorantes em que, dizem, no tornamos.
Torna a vir o Inverno e, com ele, a frígida sensação de nos cansarmos da água que nos molha, do sol que nos amorna e da brisa, tranquilamente sussurrante, que nos aponta a seiva escarlate das veias que nos povoam sem mapas.
Um dia destes, iremos morrer com um sorriso inqualificável e imprevisto.
Um dia destes, iremos morrer com uma pena incompreensível e louca de não sermos eternos.
É melhor assim: não há nada que nos prenda aqui, para além de uma ténue melodia que alguém um afinador de guarda-chuvas, uma mãe, um pai, um filho ou um saltimbanco teima em fazer chegar aos nossos mais puros e límpidos desejos.
Por mais teorias, passeios, cirurgias ou anedotas que se inventem, não se vislumbra a mais pequena razão que nos leve a estar lúcidos em dias como estes.
Ao virar de cada página, há sempre um novo livro que nos desconhece e que nunca nos vai querer ler.
Porque haveríamos nós, aqui, de querer fazê-lo?
In O Coleccionador de Bugigangas, 2008 (reprodução autorizada pelo autor).