Projecto Vercial

Ricardo Gil Soeiro


Ricardo Gil Soeiro

Ricardo Gil Soeiro (n. 1981) é ensaísta, poeta e investigador do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde leccionou o curso de Mestrado Memory and Literature in a globalised Culture e Literatura Portuguesa Contemporânea. Orienta a sua investigação nas seguintes áreas: Estudos Comparatistas, Teoria da Literatura, Hermenêutica, Poesia Portuguesa Contemporânea, Literatura de Expressão Alemã e Estudos de Memória.

Participou em diversas conferências da sua área de estudo e em projectos internacionais de investigação, designadamente: o projecto LITEVA– Literary Text in the Visual Age (Universidade de Bolonha, 2005), o seminário internacional The Hermes Consortium for Literary and Cultural Studies: Portraits and Stories of the Self (Universidade de Lisboa, 2005), o seminário internacional The Hermes Consortium for Literary and Cultural Studies: Comparative Literature: Models for Interdisciplinarity in the Humanities? (University College London, 2008). Co-organizou o Colóquio Internacional ACT 20 Philology, Memory, and Forgetfulness e o Colóquio Internacional ACT 23 Repensar as Humanidades, ambos realizados na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Participou igualmente em Expressionando…, um espectáculo sobre poesia expressionista realizado na Reitoria da Universidade de Lisboa em 2001. É ainda membro das seguintes associações académicas: European Network for Comparative Literary Studies, American Portuguese Studies Association, Associazione per gli studi di teoria e storia comparata della letteratura e membro do IAB - Internationaler Arbeitskreis Broch. É colunista da Revista Autor na secção “Cultura e Sociedade', coordenador da secção Teoria da Literatura do projecto editorial Edit on Web e membro do Conselho Editorial do Caderno do Grupo de Estudos Walter Benjamin (GEWEBE).

Doutorado em Estudos de Literatura, publicou os seguintes livros: O Pensamento tornado Dança. Estudos em torno de George Steiner, Lisboa, Roma Editora, 2009, Gramática da Esperança: Da Hermenêutica da Transcendência à Hermenêutica Radical, Lisboa, Nova Vega, 2009, Iminência do Encontro: George Steiner e a Leitura Responsável, Lisboa, Roma Editora, 2009 (Prémio de Apoio à Edição de Ensaio 2009 - Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, Ministério da Cultura) e A Alegria do Sim na Tristeza do Finito, Lisboa, Apenas Livros Editora, 2009. Publicou, ainda, os seguintes livros de poesia: O Alfabeto dos Astros, Edium Editores, 2010 e Caligraphia do Espanto, Edições Húmus, 2010. Tem poemas publicados em revistas como Revista Autor, Revista Desassossego, Revista Textos e Pretextos e Revista Inefável. Foi agraciado com diversos prémios académicos de excelência e desenvolveu os seus estudos musicais (Guitarra Clássica e Piano) na AAM (Academia de Amadores de Música de Lisboa).




Afirmações críticas:

"O poema, ou poemas, de Ricardo Gil Soeiro são mais "longos" do que a língua ou a respiração deles permite. Tal é o ganho que os afecta. O poema é um deslize. E um email, instantâneo, demorado, a partir dos astros, dos outros, do espelho. A vida parece, desaparece, faz sinal. Uma vez começada é um fumo que nunca se sabe bem por onde vai. Solitária e tribal."

Gil de Carvalho, Uma pequena nota sobre 'O alfabeto dos astros'

"Gesto precário, gesto de um dizer paradoxal e evidente como o do último poema, que começa (e acaba) com a palavra adeus, e no qual, entretanto, se alcança uma sabedoria:  Agora sei que jamais começarei um poema por adeus. A poesia é, aqui, um canto de despedida como forma possível de contacto e de presença, um lugar de emoções e sentimentos trocados por um grito claro."

Manuel Gusmão, Um dizer paradoxal

Ao longo deste livro encontram-se alguns indícios que perspectivam uma necessidade que se situa para lá dos limites da matéria. Além do amor que permite por momentos iludir a morte, surgem algumas imagens que remetem para uma espera vigilante que vai muito para além do imediato e circunstancial. O "enigma", a "espera" e a "promessa" determinam um outro espaço que não se pode circunscrever às contingências do corpo ou da palavra e para o qual se mantém aberta a possibilidade.

João Amadeu Oliveira Carvalho da Silva, Salvar a imperfeição das coisas

"Nesta poesia, a morte não é fissura nem ferida, sequer, apenas uma passagem para a eternidade: "se um dia morri, / foi para acordar em tua alma." (poema 6) O poema faz-se para alcançar a memória de outros, liquefaz-se e retoma novas configurações, matéria alquímica que não se esgota porque a magia da linguagem jamais se esgota. Vai-se a presença, o amor, abrem-se feridas improváveis que a luz das palavras salva."

Maria João Cantinho, Da ruína da palavra à magia do nome: a tarefa (im)possível?




ALGUNS POEMAS (reprodução autorizada pelo autor)


SÓ UM RUMOR, in: Espera vigilante

acredita em mim: é só um rumor:
não sei escrever o vento, nem como se nasce outra vez.

nunca soube como se tece no piano a face vazia do tempo.

por favor, não perguntes:
pois eu não sei como germina um poema,
nem quantos dias cabem no teu rosto.

E como se conjuga a cidade e o adeus?

Perguntas, mas eu não sei o que é a morte.



DEMORA, in: Caligraphia do Espanto

hoje seremos outros ao acordar:
da janela aberta, orquestrando nevoeiros,
escutaremos o sibilar insuspeito da penumbra
a inquietude do acorde menor
escreverá a letras de fogo a solidão das asas.

dormes um pouco mais:
um gotejar de vazio convence-te a ficar
mas nada explica esta demora
o corpo terno hibernando de mansinho
dando um indefeso descanso à sombra diligente

lá fora o dia acossado pelo medo à mercê das luzes estridentes
e aqui a tua pele espreguiça quente, beijando os lençóis descartáveis
enquanto os músculos se rendem a este crime perfeito perpetrado
a bandeira a meia-haste no palácio do sono
protege o casulo transparente em que habitas por agora

sem arrependimentos,
perdemos a tinta fresca do café,
as fotografias anónimas no túnel do marquês
e o paciente virar dos placares publicitários
amanhã vou entregar-me à deriva

deixarei de ser bicho-de-conta sem pressa
e procurarei abrigo nas paragens de autocarro



DIZES, in: Caligraphia do Espanto

dizes um adeus:
o que procuras nas minhas promessas?
passa das dez e é agora enfim que nos temos que separar
estaremos prontos para o que a noite trará?
beijando a neblina incolor
e do relógio fitando os ponteiros de seda
à luz da vela recitamos epopeias
e quase acreditamos que tudo tem um desígnio
como me queres?
rendido ao amplo caudal do firmamento
ou antes ranger de dentes, repartindo a raiva e a miséria
debaixo do colchão?
preciso de saber que ainda me amas
o que agora vai ser da ternura nem eu sei
de tanto ansiar aquele verso,
talvez merecesse a intimidade da quimera
o pisar do caminho e a tristeza de areia
rolando da clepsidra
não te zangues, meu amor
de repente dizes vento
e o vento nasce



O QUE ME TENTA, in: Caligraphia do Espanto

dante, montale, proust
e nem um pouco de ponge me tentam;
a nostalgia supérflua deste caminho abandonado,
a delicadeza deste diário sem ternura
ou o brilho da primeira voz,
redigindo as suas cartas desavindas,
esses sim me dizem alguma coisa sobre
a terra que enrouquece sob a noite costurada;
esse largo gesto inoportuno de traçar a morte,
e onde cabe o mundo e uma magnólia em rascunho,
pouco me fascina:
é certo que, à beira de rasgar o tempo,
algures se ergue o olhar aflito perante o peso da jornada,
mas procuro, ainda assim,
manter-me desatento às odes forasteiras,
adormecendo a minha indiferença antes de uma bica improvável
e mastigando um serão no sofá incerto do destino.



A INVENÇÃO DO SOPRO, in: Caligraphia do Espanto

meu amor,
esse rumor talvez seja um fogo a querer voar;
de costas para o mar, anoitecendo a partida,
só me resta agora um horizonte para dar,
e é tudo

a feroz sombra do vento transparente,
esculpida em água e mordendo a solidão,
diz-me que no coração do dia tudo canta ainda
um só grito bastaria
para coroar o sol húmido da primeira chuva inefável

onde a beleza se demora vagarosamente,
como se tivesse dado a beber o sublime até ao fim do alvorecer
digo amo-te
e tudo permanece enlaçado à pele do chão,
sangrando nos pulsos do silêncio

sem cessar olhando os fios das lágrimas,
espuma branca do adeus,
procuro mas não sei de que lado afluem
as inumeráveis harmonias do mundo
um dia confidenciar-me-ás o trilho de volta da morte

e eu de mão alada caminhando sobre as águas,
preso no intervalo da colina,
de tanto me doer a alegria do que resta,
segredo-te apenas um derradeiro abismo
e ensino-te como se dá a invenção do sopro


EXÍLIO DAS SOMBRAS, in: Labor Inquieto

É apenas uma noite mal dormida.

Quero que saibas que é só isto.
Continuo aqui a escrever,
indistintamente mastigando as dedadas das horas.

E pois já nada me consola,
o meu último trunfo na manga será acenar-te com novelos de ternura.
Talvez, assim, consiga fazer esquecer o lamento onde outrora naufraguei.

Às vezes,
em instantes de fogo,
cintilando em surdina,
as bocas vão trocando os seus silêncios;
levam o seu tempo e, com as pontas dos dedos, recolhem enigmas inesperados
(aí as palavras tudo podem revelar).

Vou pedir que acrescentes a este verso a restante sílaba de amor:
a luz, dizias, sempre principia…

Nada de grave.
Uma noite de eternidade que custou a engolir, apenas isso.
Não te preocupes: este poema assegura-te de que não há razões para alarmes.

Com um pouco de sorte, tudo será como dantes:
os segundos sem repouso, a nudez da luz de Setembro, aquele vestido de linho.

Por momentos, ficamos assim desavindos com a solidão:
as ruas arrastam-se, não doem quase nada agora.
E mesmo os mortos, acumulando-se em clausura telúrica,
aconchegados sob os nossos pés descalços,
não conseguiriam apagar o exílio das sombras.

Enquanto não somos capazes de plagiar todos os sonhos do mundo,
aqui fica a nossa rendição a uma noite de solidão,
somente isso.

Sem receios injustificáveis, nem salas terrivelmente vazias.



CHOVEU, in: O alfabeto dos astros

o dia vai largo, quase transparente
tristemente abandonado pelo mar

choveu

não começou o mundo ainda

e eis que desce o pano:
trocaram-nos os papéis…
és tu quem acende o chão da noite
sou eu quem repete a canção adormecida, estranho ofício

o dia vai largo, e subitamente já não estremeço
contemplo o cenário inventado: sem futuro, desejante, inteiro

no dorso das nuvens tatuado, espreita um sereno nunca
as ruas sem memória, o fulgor da terra, o mudo mar amanhecendo
sem ruído, inclino o coração e a cidade é sem mistério
mordendo a pele da água e beijando o destino no cais da partida

quase transparente este dia que me visita sem aviso prévio
de orvalho vestido, à beira da alegria, avariando as roldanas do tempo
e sussurrando a hesitação do instante que logo recomeça
e é tão breve que a sombra arde em suas chamas

choveu e já não estremeço:
vem vento, dizem: mas, ainda assim, não começou o mundo
vagarosamente vem: é que basta dizeres este corpo em que te deitas
e jurares ao firmamento que em ti começa a neve ausente

não olhes agora e assina, a tinta permanente, a edição ne varietur
decerto tu saberias relatar o meu cv e cobrir o rosto com a limpeza da luz
ouve o rumor da chuva que ainda demora: um perdão de cada vez.
vem vento, dizem, e o dia vai largo, tão largo como o rio em que morreste

o cenário está completo:
a tristeza que em ti se despede não existe
e peço-te que em mim inventes um novo dia,
vamos trocar pela segunda vez os papéis que em sorte nos calharam
não receies, pois sei dos nomes que decoras e dos recados extraviados

já desceu o pano e o mundo tarda em iniciar

choveu



ADEUS, in: O alfabeto dos astros

adeus

já vai longo este poema:
de tudo quanto amei, é a tua sombra que me tenta.
oscilam os dias e é possível ainda ser, por breve mas ígneo instante,
ramo de árvore no leve entardecer.

não bati sequer:
entrei de rompante por entre os teus passos de veludo.
nunca mais seremos os mesmos, eu e tu
trocaríamos arbitrárias rimas antes que outra vida iniciasse,
vertiginosamente, teríamos os mais belos planos para as palavras
secretas, brilhando entre os lençóis.

Se sou inteiro,
perguntas pelo gesto que hesita.

Se na distância te insinuas,
exiges o canto há muito prometido.

Ficamos, pois, assim:
do mundo distraídos, marcando encontros triviais.
ao mínimo ruído seríamos descobertos,
por certo primeira página nos jornais.

Ficamos, de alma pousada no chão:
mentindo sobre o tempo enganador,
mera fábula ou pardo eco sem incêndio,
e desistindo das conclusões e do carinho celeste.

Queres partir:
como é luminosamente triste o teu sorriso…
Só agora me dou conta das luas que te seguem.
Sonhei um dia ter o sol calado da minha infância.
Nesta mão, que agora te toca e te desenha o coração entreaberto,
cabe a madrugada de um aceno e este imperfeito gesto de ser mortal.
Sufoco de ser invisível no manto terrestre e, navegando no silêncio incerto,
ser mera sílaba em excesso.

Vai longo este poema e tu desejas partir.
de tudo quanto amei, amei o grito claro
e a visita guiada pelas asas que o vento oferece.
Vais partir e aguardas um adeus que tarda:
vai tombando a areia na ampulheta,
cada grão um desejo suspendido na corda da memória,
prefiro navegar, em duro exílio, dando a volta ao mundo,
em discreta harmonia com a noite cintilante.

Lá fora, já nasceu o dia
e suspeito que esquecerás o meu nome
quando disser amo-te e tu não estiveres lá,
assistindo na primeira fila ao rasgar do tecido da luz.

Procuro a metáfora que me velasse em mistério:
desajeitado, pobre em rima e caprichoso do sopro que perdi,
balbucio, envergonhado, fantásticas nebulosas e, imóvel,
receio que me condene um deus caído.

Desisto de contemplar os pilares da criação,
permaneço só.

julgava que seria difícil tocar-te, beijar-te sem palavras
pensava que não seria capaz de esquecer o rumo das estrelas:
queimar todos os livros, deitar fora os versos perdidos,
serenamente inventando um novo alfabeto dos astros

insolência a minha,
escrever noite e dia,
em vão murmurando o rosto proibido

em vez disso,
é na imprecisa ausência que me surges mais real
olho-te sem palavras de sangue e sem rugas onde outro mundo se insinua
sou somente a nudez do esquecimento

Queres partir:
mas é mais fácil imaginar-te para sempre
perdida nos confins do oriente
humanamente, penteando os fios pretos,
amplo véu oculto, e de livro na mesa do café,
água a meio, cigarro sumido, revista manchada.
a paz aqui é perfeita e pergunto-te: és feliz?
Queres partir:
e também um dia viajarei por continentes estranhos.
Ninguém saberia que estaria pronto para quebrar a promessa,
procurando a carteira perdida colada à pele;
em gesto ímpar pintaria a boca de silêncio,
confessando ter tido inofensivo encontro com as palavras.

Agora sei que jamais começarei um poema por adeus.
Agora sei que não haverá luta:
as palavras chegam e eu não as procurarei calar.
Só é louco quem nunca perguntou
o que é isto de andar com um nome pelo vento?

Sabes do que falo?

Em salto decidido para o outro lado do tempo,
aprecio (confesso-o) o livro que nunca conseguirei passar para o papel.
É enlaçarem-se mecanicamente os lábios esburacados
e ler-se heidegger sobre nietzsche
e ainda assim não entrever os adolescentes de mãos dadas,
nem tão pouco recordar o tempo em que pintavas
o céu com estrelas transparentes.

Sim, sim.

Vai longo este poema e partes sem mim.

adeus


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