Projecto Vercial

Rui de Pina


Rui de Pina nasceu na Guarda em 1440 e faleceu na mesma cidade em 1522. Foi cronista oficial de D. João II e de D. Manuel I. D. João II nomeou-o diplomata, participando em várias embaixadas à corte de Espanha e ao Vaticano. Foi o embaixador enviado por D. João II a Espanha para negociar o tratado de Tordesilhas, assinado em 1494. Em 1497 é nomeado por D. Manuel cronista-mor e guarda da Torre do Tombo. É acusado de se ter aproveitado de algumas das crónicas desaparecidas de Fernão Lopes.

Obras: Crónica de el Rei Dom Afonso o Quarto (1653); Crónica do Muito Alto e Esclarecido Príncipe D. Sancho II (1727); Crónica do Muito Alto e Esclarecido Príncipe D. Sancho III (1728); Crónica do Muito Alto e Esclarecido Príncipe D. Dinis (1729); Crónica do Senhor D. Duarte (1790); Crónica do Senhor Rei D. Afonso V (1790); Crónica d'El-Rei D. João II (1792).




CRÓNICA DO SENHOR D. DUARTE (extracto)


Capítulo II

Como o Ifante Dom Duarte foi alevantudo por Rei e como foi aconselhado, que naquela hora se nom alevantasse

Ao outro dia despois do falecimento d'ElRey que eram quinze dias d'Agosto, o Ifante Dom Duarte despois d'haver com os Ifantes seus irmãos conselho e deliberaçam sobre a maneira que ao diante havia de ter como Principe mui Catolico e prudente falou ante menhãa com seu Confessor aquelas culpas de que sentio sua conscientia gravada, e tomou o Santo Sacramento, para com a limpeza d'alma que devia, tomar o Cetro Real que o jaa esperava; e estando-se pera isso vestindo de ricos pano se Reaes, como para tal dignidade e ao auto seguinte convinha, chegou a ele Meestre Guedelha, Judeu, seu Fisico, e grande Astrologo, e lhe disse: «Parece-me Senhor que vos aparelhaes pera logo entrardes na Real Socessam que vos per dereito perteence. Peço-vos, Por merce, que este auto dilatees atee passar o meo dia, e nisso prazendo a Deos farees vosso proveito, e será bem de vosso Regno, porque estas horas em que fazees fundamento seer novamente obedecido mostram seer mui perigosas, e de mui triste constelaçam, ca Jupiter esta retrogado, e o Sol em decaimento com outros sinaes que no Ceo parecem assaz infelices». O Ifante lhe respondeo: «Bem sei Meestre Guedelha, que do grande amor que me tendes vos nacem estes cuidados de meu Estado e serviço, e eu nom dovido que a Astronomia seja boa, e uma das ciencias antre as outras permitidas e aprovadas, e que os Corpos inferiores são sogeitos aos sobrecelestes; porem o que principalmente crêo, e seer Deus sobre todo, e que com sua mão, e ordenança sam todas as cousa: e por tanto este Cargo que eu com sua graça espero tomar, seu é, e em seu nome, e com sperança de sua ajuda o tomo, a ele soo me encomendo, e aa Bemaventurada Virgem Maria Sua Madre Nossa Senhora, cujo dia hoje é, e com muita devaçam e devida humildade peço a Deos que me ensine, favoreça, e ajude a governar este seu povoo, que me ora quer encomendar como sentir que seja mais seu serviço». E Meestre Guedelha tornou dizendo: «Senhor a ele Praza que assi seja; como quer que nom era grande inconveniente sobre serdes nisto üu pouco para se tudo fazer prosperamente, e como devia.» E o Ifante lhe respondeo: «Nom farei, pois nom devo, ao menos por não parecer que mingoa em mi a sperança de firmeza que em Deos, e sua Fee devo ter». E logo Meestre Guedelha afirmou que regnaria poucos annos, e esses seriam de grandes fadigas, e trabalhos, como foram segundo ao diante se dirá.

O Terreiro dos Paaços d'Alcaçova onde o Ifante pousava foi mui altamente corregido para nele seer alevantado, e obedecido por Rei; ao qual saio em vestiduras Reaes, e mui ricas, acompanhado de mui nobre gente vestida, por aquela hora, de panos e corregimentos de festa, e alegria como é de custume. Assentou-se o Ifante em uma cadeira Real, posta sobre üu cadafalso alto acostado ao longo do Paaço da Galee, e cercado dos Ifantes, e d'outros Senhores, e oficiaes postos na ordenança que a cada üu para tal auto pertencia; e o Conde de Viana, D. Pedro, primeiro Capitam de Cepta, que a este tempo era neste Regno, por ser Alferes Moor, tomou a Bandeira Real, e a teve aa mão direita d'El-Rei revolta em sua haste atee que Dom Alvaro d'Abreu, Bispo d'Evora acabou de prepoer a arenga que em tal cerimonia é custumada, e necessaria; acabada a qual o Bispo se pôz em giolhos, e lhe quisera logo beijar a mão: mas o Ifante, por seu hábito e prelacia, lha não quiz dar; o qual Ifante Dom Duarte ao tempo que foi por Rei alevantado compria idade de quarenta e dous annos, e em se recolhendo para seu logar lhe disse o Ifante: «Bispo se vos bem parecesse eu queria que no cabo deste auto queimassem aqui ante mi üas poucas d'estopas, por lembrança e comparaçam que esta gloria, e pompa do mundo assi dura pouco, e passa mui brevemente.» «Parece-me, Senhor, disse o Bispo, que a memoria e conhecimento que disso tendes, escusa por agora outra cerimonia.» E a El-Rei pareceo bem. E logo o Conde Dom Pedro, despois de os Reis d'Armas darem pregões e gritas de silentio, despregou a Bandeira, e em voz alta deu tres vezes o acustumado pregam, declarando por Rei o Ifante Dom Duarte; a qual voz depois que o Conde acabou continoáram bradanda os Ifantes, e Senhores, e toda a outra gente que i era, beijando-lhe loga todos as mãos por legitimo, e verdadeiro Rei. e fazendo-lhe toda a outra cerimonia, e acatamento que aa perfeiçam daquele auto compria; e dali se recolheo El-Rei para seus paços, e o Conde com todolos Senhores a cavalo e muito povoo andou com a bandeira despregada por toda a Cidade, dando nas praças dela mais assinadas os mesmos pregões, acabados os quaes, tornáram, e a poseram solta sobre a Torre de Menagem do Castelo onde esteve atee noite, que se El-Rei tornou a seu Paaco, e leixou as vestiduras Reaes, e tomou doo de preto, e os Ifantes tomaram burel, segundo sempre atee aqui se custumou. Por que despois em tempo d'El-Rei Dom Manoel, por cujo mandado esta Cronica se compoz, geeralmente determinou, e mandou, que por nenhüu Rei, nem Principe, nem per outra algüa pessoa se nom trouxesse em seus Regnos burel sob certa pena, e assi se comprio.


Capítulo III

Das feições corporaes, virtudes, e costumes d'El-Rei Dom Duarte

E porque as proporções corporaes dos Princepes passados, e suas virtudes, e costumes algüus historicos as custumaram pôr no cabo de suas estoreas, e muitos mais nos principios: eu neste passo seguirei a openiam dos mais; e por tanto é de saber que El-Rei Dom Duarte foi homem de boa statura do corpo, e de grandes e fortes membros: tinha o acatamento de sua presença, mui gracioso, os cabelos corredios, o rosto redondo e algüu tanto enverrugado, os olhos moles, e pouca barba; foi homem desenvolto, e custumado em todalas boas manhas, que no campo, na Corte, na paz, e na guerra a um perfeito Principe se requeressem; cavalgou ambalas selas da brida e de gineta, melhor que nenhüu de seu tempo; foi mui humano a todos, e de boa condiçam; prezou-se em sendo mancebo de bõo lutador, e assi o foi, e folgou muito com os que em seu tempo bem o faziam; foi caçador e monteiro, sem mingoa nem quebra do despacho e aviamento dos negocios necessarios: foi homem alegre, e de gracioso recebimento; foi Principe mui Catolico e amigo de Deos, de que deu clara prova a boa vontade e grande devaçam com que sempre recebia os sacramentos, e ouvia os Oficios Divinos, e compria mui perfeitamente as Obras da Misericordia; foi mui piadoso, e manteve mui inteiramente sua palavra como scripta verdade; amou muito a justiça; foi homem sesudo e de claro entendimento, amador de ciencia de que teve grande conhecimento, e nom per descurso d'Escolas, mas per continuar d'estudar, e leer per bõos livros, ca soomente foi gramatico, e algum tanto logico; fez um livro de Regimento pera os que custumarem andar a cavalo e compôs per si outro aderençado á Rainha Dona Lianor sua molher, a que entitulou o Leal Conselheiro, abastado de muitas e singulares doctrinas, specialmente para os bens d'alma; foi, e naceo natural eloquente, porque Deos o dotou pera isso com muitas graças; no comer, e beber, e dormir foi mui tenperado, e assi dotado de todalas outras perfeições do corpo, e d'alma.

Rui de Pina, Crónica d'El-Rei D. Duarte, ed. de Alfredo Coelho de Magalhães, Porto, Renascença Portuguesa, 1914, pp. 69-71; 68-82.



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