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Urbano Bettencourt


Urbano Bettencourt

Urbano Bettencourt nasceu na Piedade, Ilha do Pico em 1949. Frequentou o Seminário de Angra, que abandonou, vindo posteriormente a licenciar-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, depois de uma experiência de dois anos de guerra colonial na Guiné-Bissau. Professor do Ensino Secundário na margem sul do Tejo e em Ponta Delgada, e, desde 1990 Assistente Convidado da Universidade dos Açores, onde tem leccionado Literatura Portuguesa Clássica, Estudos Literários e Literatura Açoriana. Tem colaboração dispersa por jornais, revistas, rádio e televisão, para a última das quais adaptou, com José Medeiros, o romance Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio. Obras: Raiz de Mágoa (poesia), Setúbal, 1972. Ilhas (narrativas), de parceria com Santos Barros, Lisboa, 1976. Marinheiro com residência fixa (poesia, narrativas), Lisboa, 1980. O Gosto das Palavras (ensaios), Angra, 1983. Naufrágios Inscrições (poesia, narrativas), Ponta Delgada, 1987. Emigração e Literatura (ensaio), Horta, 1989. O Gosto das Palavras II (ensaios), Ponta Delgada, 1995. Algumas das Cidades (poesia, narrativas), Angra, 1996.




ALGUMAS DAS CIDADES

9. Ela cantava, a mulher. Ceifeira não seria, embora no seu canto, tal como no da outra, pudesse haver o campo e a lida, um canto de ave ondulando no ar limpo como um limiar.

Teremos nós de dar-lhe um nome a que possa acolher-se ? Ou o nome ficará como a parte irredutível do seu mistério ? Certo é que essa mulher não era mais do que a voz em cujos fios o mundo se enredava e prendia e nós, dela presos, nos perdíamos.

Era no silêncio que ela cantava, quando o rumor das coisas se apaziguava e a calma descia pelas suas mãos até pousar nos móveis e nas flores. Então, a voz erguia-se, vinda do outro lado do tempo, e trazia consigo o sabor do mel, um travo a sal, nesse canto onde se ouvia ainda a agonia de marinheiros perdidos nuns olhos negros ou naufragados entre barcos, entre remos, muito longe do seu chão, talvez na Urzelina, talvez no Maranhão. E enquanto o seu canto se erguia e invadia os mais remotos refúgios da casa, estrelas intangíveis atravessavam o olhar da mulher e caíam no seu regaço, até que um pastor, de voz desfeita e lira quebrada, viesse colhê-las para depor no peito da sua amada Lira morta.

Mas como pode a Lira estar morta, se ela mesma era a mulher que cantava e em cujo canto o tempo se confunde com a eternidade ?



CIDADES DE PASSAGEM

Tenho viajado muito
nem sempre na melhor altura.
Em Bolama ninguém me acompanhou
na casa de chá em ruínas onde as chávenas
estremeciam sempre que uma granada
caía sobre a praia.
Passei por Trieste numa tarde triste.
Na sala do Hotel Garibaldi o pianista
amparava-se nos Nocturnos de Chopin, à meia-luz,
havia uma chuva fina e George Sand
não apareceu.
Del Giudice julgava ainda
poder encontrar-se com Gerti;
ela, porém , partira há muito levada
por um verso de Montale: i sedicenti vivi
non sono tutti morti.
Na estação o Anjo serviu-nos um café forte.
    D.G. partiu também por fim
pude ver o comboio perder-se
por entre a chuva e a noite.
Em Amesterdão
marinheiros mijavam para o céu
que não havia
e as estrelas caíam,
mesmo assim, nos seus cabelos. Um cantor rouco
de raivas e ternuras comovia-se até aos ossos
com a virtude das mulheres infiéis.

(Reprodução autorizada pelo autor)

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