Projecto Vercial

Gomes Eanes de Zurara


Gomes Eanes de Zurara (1410-1474) era filho de João Eanes de Zurara, não se conhecendo o local de nascimento. Viveu em Santarém, usufruindo das comendas de Alcains, Granja do Ulmeiro e Pinheiro Grande. Teve a seu cargo a guarda da Livraria Real, obtendo em 1454 o cargo de cronista-mor da Torre do Tombo, sucedendo assim a Fernão Lopes. Em 1467 deslocou-se a Alcácer Ceguer, na costa de Marrocos, a fim de recolher informações para a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses.

Obras: Chronica del Rei D. Joam I de boa memória. Terceira parte em que se contam a Tomada de Ceuta (1644); Chronica do Conde D. Pedro de Menezes (1792); Chronica do Conde D. Duarte de Menezes (1793); Crónica do Conde D. Duarte de Meneses (1793); Chronica do Descobrimento e Conquista da Guiné (1841).




Crónica da Tomada de Ceuta

ou Terceira Parte da Crónica de D. João I

CAPÍTULO 18

Como os embaxadores tornaram e da reposta que trouveram.

Senhor, disse o priol, de cousa que visse nem achasse, nom vos ei de dar reposta atee que me façaes trazer quatro cousas: duas carregas de area e uu novelo de fita e meio alqueire de favas e üa escudela». «Cuidaes, disse elRei, que nom teemos aqui o capitam com suas profecias». E entom começou de se rir, e disse que leixasse o jogo, e que lhe desse recado do que lhe preguntava. «Senhor, disse o priol, eu nom tenho custume de joguetar com vossa mercee, mas ainda vos tomo a dizer que sem as ditas cousas vos nom darei nenhüa reposta». Ja elRei começava de tomar algüu queixume pensando que os embaxadores nom arrecadarom seu feito per a guisa que lho ele mandara.

«Veede, disse ele contra seus filhos, que bem concertadas duas repostas pera homeês de tal autoridade, estou lhe preguntando per as cousas a que os mandei, e uü me fala em estrolomia, outro me fala em semelhança de feitiços. Quem havia de cuidar que taes dous homeës houvessem de trazer semelhante recado.» Os ifantes conhecendo quem era o priol, nom podiam entender que ele tornasse de sua viagem sem trazer certo recado. Porem lhe disserom que se arrecadara como dele confiavam, que desse a reposta a elRei seu padre. O priol estava rindo porque via que elRei nom conhecia sua teençom, porem disse que ainda que ele quisesse responder que nom saberia sem lhe trazerem as ditas cousas, as quaes lhe forom trazidas per a guisa que as ele requeria. E tanto que as teve dentro em üa camara meteo-se dentro soo, e com aquela area começou a devisar sua embaxada per esta guisa. Tomou aquela escudela e fez logo o monte da Almina com toda a cidade assi como jaz com suas alturas e os vales e fundos delas, e desi a Aljazira com a serra de Xemeira assi como jaz em sua parte, e onde havia de fazer mostra de muro cercava com aquela fita, e onde havia d'assinar casas poinha aquelas favas, em tal guisa que lhe nom ficou nada por devisar. E depois que todo teve assi acabado, chamou elRei e seus filhos e disse-lhe: «Agora podees veer a semelhança dos meus feitiços, ora me podees preguntar por todo o que vossa mercee for. E eu poder-vos ei responder com espiriencia ante vossos olhos». Esguardou elRei mui bem toda aquela mostra como estava, e desi o priol começou-lhe a devisar todo, mostrando-lhe logo toda a longura do muro como estava da parte do mar, e quanto era acompanhado de torres, e de que altura era a maior parte delas, e depois lhe mostrou o castelo com todo seu assentamento, e quaes eram os lugares per onde a cidade podia receber combate, com todalas outras cousas que a elRei prouve de saber. E como quer o filosofo diga que o conhecimento da cousa é mais forte conhecida per si meesma que per sua semelhança, nom reprovando seu dito que seria escarnho pera mim, certamente nom faleceo nenhüa cousa daquelas que eram na cidade pera veer e saber, que todas i nom fossem mui bem declaradas e conhecidas segundo compria, da qual cousa elRei foi mui contente louvando muito a boa discriçom do priol, e muito lhe pareceo aquela cidade aazada pera o que ele desejava. E depois dalgüu pequeno rezoado que sobre aquele feito houve, mandou elRei que tirassem a area e aquelas cousas que ali estavam, e por entom nom se falou mais em cousa que aaquele caso perteecesse.


CAPÍTULO 87

Como o autor declara o tempo em que a cidade foi tomada, e quaes eram os trabalhos dos homeës naquela noute.

Vinte e üu dias eram do mes d'agosto, quando andava a era d'Adam que é o ano do mundo, em cinco mil e cento e setenta e seis anos abraicos, e a era do dilúvio, em quatro mil e quinhentos e XVII anos romãos, e a era de Nabucodonosor, em dous mil e cento e sessenta e dous, e a era de Filipe o gram rei de Grecia, em mil e setecentos e XXVII anos, e a era d'Alexandre o gram rei de Macedonia, em mil e setecentos e XXVI, e a era de Cesar emperador de Roma, em mil e quatrocentos e cinquenta e tres, e a era de nosso Senhor Jesu Cristo, em mil e quatrocentos e XV, e a era d'Acimos o Egicião, novecentos e setenta e üu, e a era dos Alarves, em setecentos e noventa e tres, segundo os seus anos, ca os outros anos todos sam romaos, e a era dos Persianos, em setecentos e oitenta e tres, e a era do reinado delRei Dom Afonso, que foi o primeiro rei de Portugal, em trezentos e XII, e o ano do reinado deste rei Dom Joam, em XXXII anos dos anos solares, quando estava o sol em seis graos do sino de Virgo, e a lua sobre o primeiro quarto do seu crecimento, no primeiro grao dos dous gemeos, que sam Polos e Castor filhos de Leda. Já passavam de sete horas e mea depois de meo dia, quando a cidade foi de todo livre dos mouros. E os nossos assi como andavam mui cansados por razam do trabalho, e assi por a força da quentura que passaram, começaram de se apousentar aqueles que ainda nom eram apousentados, ca muitos havia i, que depois que ba vez entraram na casa, ali aguardavam a vinda da noute, outros tomaram as esperanças tam largas, que nom se contentaram do primeiro achadego, e aa derradeira ficaram sem nenhüa cousa. E depois que a noute de todo foi çarrada, tamanho foi o menos preço em que teveram os mouros, pola vitoria que tam ligeiramente cobraram, que nom teveram cuidado de poer nenhua guarda sobre a cidade, soomente quanto teveram acordo de fecharem as portas. Como quer que segundo meu juizo, as guardas nom eram muito necessarias por aquele presente, porque a cidade pola maior parte é cercada d'agua, onde tinha assaz segurança, e aquele pequeno spaço que, ficava da parte do sertão, nom lhe compria milhor guarda, que a gente do Ifante que estava sobre a porta de Fez, e outra muita que isso meesmo estava aa porta d'Alvoro Meendez, e as outras companhas, que jaziam pola cidade, nom tinham maior cuidado doutra cousa, que de apanharem o esbulho. E quanto mais o tempo se afastava do primeiro começo, tanto o fogo da sua cobiça era muito mais aceso. Ca entam começavam de se arrepender do dano que fezeram em muitas cousas, de que se depois poderam aproveitar. Ca logo no primeiro começo, nom esguardando nenhüa cousa, fezeram tamanho dano em muitas cousas de grande valia, cuja cobiça lhes ao depois trazia grande arrependimento, porque muitos que se acertaram primeiramente naquelas logeas dos mercadores que estavam na rua dereita, assi com entravam polas portas, sem nenhüa temperança nem reguardo, davam com suas fachas nos sacos das speciarias, e esfarrapavam-nos todos, de guisa que todo lançavam per o chão. E bem era pera haver doo de semelhante estrago, qual ali foi feito naquele dia, ca as speciarias eram muitas e de grosso valor. E as ruas nom menos jaziam cheas delas, do que poderiam jazer de junco nos dias das grandes festas, as quaes depois que forom acouçadas dos pees da multidam das gentes, que per cima delas passavam, e desi com o fervor do sol que era grande, davam depois de si mui grande odor. Mas porque aquele dano sem proveito lhe podesse logo emproviso trazer arrependimento, a cobiça daquela perda os sojugava ao depois de andarem polas ruas apanhando os pedaços de canela e grãos da pimenta, menos preçando todo trabalho e fadiga que lhe sobre elo vinha. Ca em treze dias que elRei ali depois esteve, nunca as ruas eram desacompanhadas daquelas gentes de pouco valor, entanto que nom podiam os homëes passar livremente que nom fossem empachados daquela multidam. Bucetas de conservas e jarras de mel e manteiga e arrobe e azeite eram ali tantas estroidas, que nom faziam menos enxurro pola rua, que se fossem alguüs canos d'agua quando chove, a qual perda era muito chorada dalguüns daqueles de vil geeraçam, ca os boõs e nobres nom puinham seu cuidado em semelhantes cousas. Mantimentos houveram ali assaz, assi dos que achavam nas casas como outros que faziam vir da frota, espicialmente o vinho, que em semelhante tempo era tam desejado, que este era uü liquor de que nas casas dos mouros havia pequena cantidade, ainda que aaqueles que se acerta de o bever lhe prazera muito do boõ, etc.


CAPÍTULO 88

Como os cristãos em aquela noute traziam antre si desvairadas ocupações

Toda ocupaçam dos mais daqueles era deleitosa, ca posto que todo aquele dia fossem trabalhados, e o espaço da noute fosse tam pequeno, nom havia i tam preguiçoso que se contentasse de a toda dormir, ca uüs se ocupavam de fazer trouxas daquelas cousas que apanharam, outros estavam igualando suas partilhas com aqueles que primeiramente traziam conserva. Outros andavam cavando as casas, onde achavam a terra movediça, e faziam nelas mui grandes foios, pensando d'acharem alguas riquezas soterradas. E por uü pouco que achavam, desfaziam grandes aliceces, pensando d'acharem mais. Outros tentavam as alturas das aguas que jaziam nos poços, e metiam-se nelas, apalpando com os pees pera veer se poderiam ainda achar algüas riquezas sobre aquelas que ja tinham, e por dizer verdade, que em muitos nom eram seus trabalhos em vão, que se achavam muitas cousas em eles de grossa valia. E os que maior eficacia traziam em estes trabalhos, assi eram as gentes do povo, specialmente os que eram casados, aos quaes nom podia parecer cousa sobeja por refece que fosse, se eles haviam lugar pera a trazer. ó como a ventura muda suas cousas como lhe praz, e acrecenta e mingua segundo seu querer, ca tal havia antre aqueles, que em este reino nom tinha üa choça, e ali acertava por pousada grandes casas ladrilhadas com tigelos vidrados de desvairadas coores, e os teitos forrados d'olivel com fremosas açoteas cercadas de marmores mui alvos e polidos, e as camas brandas e moles e com roupas de desvairados lavores, como veedes que geralmente sam as obras dos mouros. «E em forte hora, deziam eles, aqueles pelejassem sobre tanto viço, pera nos outros mezquinhos, que andamos no nosso Portugal polos campos colhendo nossas messes, afadigados com a força do tempo, e aa derradeira nom teemos outro repouso, senam proves casas, que em comparaçam destas querem parecer choças de porcos. Os nobres homeës tinham o primeiro acertamento ja contentes, e nom curavam doutra cousa, senam despender o tempo que lhes o sono nom ocupava os sentidos, em recontar a grandeza daquela vitoria, e uüs louvavam os golpes que acertaram de veer a seus amigos, ou os aqueecimentos que houveram, outros culpavam alguü estorvo se lhe aqueecera, per que perderam alguü golpe que poderam fazer, outros estimavam a multidam dos mortos quantos seriam, sobre cujo numero eram desvairadas openiões, nom com pequena gloria da desaventura de seus imigos. Mas sobre todalas cousas se falava nos feitos que o Ifante Dom Henrique fezera, que todo o al estimavam por pequena cousa. Outros tinham cuidado de recadarem os prisoneiros, sobre cuja guarda se puinha grande deligencia, uüs levando aas galees, outros metendo em taes prisões, per que tevessem deles segurança. Muitos tinham cuidado de quererem escoldrinhar per qual parte se aazara mais certamente aquela vitoria, e uüs eram que a atribuiam de todo a Deos, os quaes antre todolos outros falavam mais verdadeiramente, dizendo que todalas ordenanças prestaram pouco, se os mouros teveram avisamento de fecharem suas portas e nom quiseram sair fora, ca per pouco tempo que se teveram defendendo sua cidade, nom podera seer que lhe em breve tempo nom viera grande socorro de seus vezinhos e parentes. Outros deziam que aquelo nom prestava, ca posto que eles fecharom as portas, nom teveram vianda, nem lhe podera vir tam asinha de fora, segundo seu grande despercebimento. Como podera seer, deziam aqueles, que os mouros defenderam a cidade, posto que fecharam as portas, ca elRei tinha ordenado de poer seu arraial na Almina, onde os mouros foram assi combatidos per força de seus imigos, e com a multidam da sua gente que nunca se escusara, que em breve tempo nom sobirom os homees per cima de seus muros? E posto que os da cidade teveram mantimentos, nom poderam seer tantos, que podessem abastar tamanha multidom de mouros, corno era na cidade, porque aalem dos moradores dela, eram i outros muitos de fora, que ficavam ali da primeira vez que os navios forom a Barbaçote, leixando os outros que Çala Bem Çala nom quis receber na vila, que estavam fora, os quaes era necessario que recebesse, quando visse que de todo queriam combater a cidade». «Ora vos calae, deziam outros aaqueles, ca, depois de Deos nom tem i nenhüa cousa tamanho louvor, como o nobre conselho que elRei teve. Ca se os mouros teveram avisamento, ainda que mais nom fora que de uü mes, nunca se a cidade cobrara, que se primeiro nom gastara todo Portugal pedaço e pedaço». E assi em estes feitos e departições despenderom as suas gentes aquela parte da noute, mais o entendimento delRei nom buscava nenhüa destas cousas, ante jazia pensando na grande mercee que lhe Deos fezera, pera a qual lhe pedia em sua voontade, que lhe abrisse aazo e caminho como a podesse guardar e defender por testimunho de tamanho milagre, e por tal que a renembrança daquela vitoria ficasse por socessom a todolos reis que depois possuissem sua herdade.


Crónica da Tomada de Ceuta por ElRei D. João I, ed. Francisco Maria Esteves Pereira, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1915.



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