Antero Tarquínio de Quental nasceu em Ponta Delgada no dia 18 de abril de 1842, Açores, e faleceu na mesma cidade no dia 11 de setembro de 1891. Frequentou a Universidade de Coimbra, tendo passado depois algum tempo em Paris. Viajou pelos Estados Unidos e Canadá, fixando-se em Lisboa. Pertenceu à chamada Geração de Setenta, grupo que pretendia renovar a mentalidade portuguesa, e participou nas Conferências do Casino. Foi amigo, entre outros, de Eça de Queirós e Oliveira Martins. Atacada por uma doença do foro psiquiátrico, regressa aos Açores onde se suicida. As suas obras vão da poesia à reflexão filosófica.
Obras: Sonetos de Antero (1861); Beatrice e Fiat Lux (1863); Odes Modernas (1865; 2.ª ed. em 1875); Bom Senso e Bom Gosto (opúsculos, 1865); A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais (1865); Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX (1865); Portugal perante a Revolução de Espanha (1868); Primaveras Românticas (1872); Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa (1872); A Poesia na Actualidade (1881); Sonetos Completos (1886); A Filosofia da Natureza dos Naturistas (1886); Tendências Gerais da filosofia na Segunda Metade do Século XIX (1890); Raios de Extinta Luz (1892).
Outras páginas sobre o autor:
À HISTÓRIA
VI
Se um dia chegaremos, nós, sedentos,
A essa praia do eterno mar-oceano,
Onde lavem seu corpo os pustulentos,
E farte a sede, enfim, o peito humano?
Oh! diz-me o coração que estes tormentos
Chegarão a acabar: e o nosso engano,
Desfeito como nuvem que desanda,
Deixará ver o céu de banda a banda!
Felizes os que choram! alguma hora
Seus prantos secarão sobre seus rostos!
Virá do céu, em meio de uma aurora,
Uma águia que lhes leve os seus desgostos!
Há-de alegrar-se, então, o olhar que chora...
E os pés de ferro dos tiranos, postos
Na terra, como torres, e firmados,
Se verão, como palhas, levantados!
Os tiranos sem conto velhos cultos,
Espectros que nos gelam com o abraço...
E mais renascem quanto mais sepultos...
E mais ardentes no maior cansaço...
Visões de antigos sonhos, cujos vultos
Nos oprimem ainda o peito lasso...
Da terra e céu bandidos orgulhosos,
Os Reis sem fé e os Deuses enganosos!
O mal só deles vem não vem do Homem.
Vem dos tristes enganos, e não vem
Da alma que eles invadem e consomem,
Espedaçando-a pelo mundo além!
Mas que os desfaça o raio, mas que os tomem
As auroras, um dia, e logo o Bem,
Que encobria essa sombra movediça,
Surgirá, como um astro de Justiça!
E, se cuidas que os vultos levantados
Pela ilusão antiga, em desabando,
Hão-de deixar os céus despovoados
E o mundo entre ruínas vacilando;
Esforça! ergue teus olhos magoados!
Verás que o horizonte, em se rasgando,
É porque um céu maior nos mostre e é nosso
Esse céu e esse espaço! é tudo nosso!
É nosso quanto há belo! A Natureza,
Desde aonde atirou seu cacho a palma,
Té lá onde escondidos na frieza
Vegeta o musgo e se concentra a alma:
Desde aonde se fecha da beleza
A abóbada sem fim fé onde a calma
Eterna gera os mundos e as estrelas,
E em nós o Empíreo das ideias belas!
Templo de crenças e de amores puros!
Comunhão de verdade! onde não há
Bonzo à porta a estremar fiéis e impuros,
Uns para a luz... e outros para cá.
A li parecerão os mais escuros
Brilhantes como a face de Jeová,
Comungando no altar do coração
No mesmo amor de pai e amor de Irmão!
Amor de Irmão! oh! este amor é doce
Como ambrosia e como um beijo casto!
Orvalho santo, que chovido fosse,
E o lírio absorve como etéreo pasto!...
Dilúvio suave, que nos toma posse
Da vida e tudo, e que nos faz tão vasto
O coração minguado... que admira
Os sons que solta esta celeste lira!
Só ele pude a ara sacrossanta
Erguer, e um templo eterno para todos...
Sim, um eterno templo e ara santa,
Mas com mil cultos, mil diversos modos!
Mil são os frutos, e é só uma a planta!
Um coração, e mil desejos doudos!
Mas dá lugar a todos a Cidade,
Assente sobre a rocha da Igualdade.
É desse amor que eu falo! e dele espero
O doce orvalho com que vá surgindo
O triste lírio, que este solo austero
Está entre urze e abrolhos encobrindo.
Dele o resgate só será sincero...
Dele! do Amor!... enquanto vais abrindo,
Sobre o ninho onde choca a Unidade,
As tuas asas de águia, ó Liberdade!
PANTEÍSMO
I
Aspiração... desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa...
A isto chamo eu vida: e, deste modo,
Que mais importa a forma? silenciosa
Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
Cm homem igualmente e astro e rosa!
A própria fera, cujo incerto passo
Lá vaga nos algares da devesa,
Por certo entrevê Deus seu olho baço
Foi feito para ver brilho e beleza...
E se ruge, é que a agita surdamente
Tua alma turva, ó grande natureza!
Sim, no rugido há vida ardente,
Uma energia íntima, tão santa
Como a que faz trinar a ave inocente...
Há um desejo intenso, que alevanta
Ao mesmo tempo o coração ferino,
E o do ingénuo cantor que nos encanta...
Impulso universal! forte e divino,
Aonde quer que irrompa! e belo e augusto,
Quer se equilibre em paz no mudo hino
Dos astros imortais, quer no robusto
Seio do mar tumultuando brade,
Com um furor que se domina a custo,
Quer durma na fatal obscuridade
Da massa inerte, quer na mente humana
Sereno ascenda à luz da liberdade...
É sempre a eterna vida, que dimana
Do centro universal, do foco intenso,
Que ora brilha sem véus, ora se empana...
É sempre o eterno gérmen, que suspenso
No oceano do Ser, em turbilhões
De ardor e luz, envolve, ínfimo e imenso!
Através de mil formas, mil visões,
O universal espírito palpita
Subindo na espiral das criações!
Ó formas! vidas! misteriosa escrita
Do poema indecifrável que na Terra
Faz de sombras e luz a Alma infinita!
Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!
Rolai, ondas sem praia, confundindo
A paz eterna com a eterna guerra!
Rasgando o seio imenso, ide saindo
Do fundo tenebroso do Possível,
Onde as formas do Ser se estão fundindo
Abre teu cálix, rosa imarcescível!
Rocha, deixa banhar-te a onda clara!
Ergue tu, águia, o voo inacessível!
Ide! crescei sem medo! não é avara
A alma eterna que em vós anda e palpita
Onda, que vai e vem e nunca pára!
Semeador de mundos, vai andando
E a cada passo uma seara basta
De vidas sob os pés lhe vem brotando!
Essência tenebrosa e pura... casta
C todavia ardente... eterno alento!
Teu sopro é que fecunda a esfera vasta...
Choras na voz do mar... cantas ao vento...
II
Porque o vento, sabei-o, é pregador
Que através dos soidões vai missionando
A eterna Lei do universal Amor.
Ouve-o rugir por essas praias, quando,
Feito tufão, se atira das montanhas,
Como um negro Titã, e vem bradando...
Que imensa voz! que prédicas estranhas!
E como freme com terrível vida
A asa que o livra cm extensões tamanhas!
Ah! quando em pé no monte, e a face erguida
Para a banda do mar, escuto o vento
Que passa sobre mim a toda a brida,
Como o entendo então! e como atento
Lhe escuto o largo canto! e, sob o canto,
Que profundo e sublime pensamento!
Ei-lo, o Ancião-dos-dias! ei-lo, o Santo,
Que já na solidão passava orando,
Quando inda o mundo era negrume e espanto!
Quando as formas o orbe tenteando
Mal se sustinha e, incerto, se inclinava
Para o lado do abismo, vacilando;
Quando a Força, indecisa, se enroscava
Às espirais do Caos, longamente,
Da confusão primeira ainda escrava;
Já ele era então livre! e rijamente
Sacudia o Universo, que acordasse...
Já dominava o espaço, omnipotente!
Ele viu o Princípio. A quanto nasce
Sabe o segredo, o germe misterioso.
Encarou o Inconsciente face a face,
Quando a Luz fecundou o Tenebroso.
III
Fecundou!... Se eu nas mãos tomo um punhado
Da poeira do chão, da triste areia,
E interrogo os arcanos do seu fado,
O pó cresce em mim... engrossa... alteia...
E, com pasmo, nas mãos vejo que tenho
Um espírito! o pó tornou-se ideia!
Ó profunda visão! mistério estranho!
Há quem habita ali, e mudo e quedo
Invisível está... sendo tamanho!
Espera a hora de surgir sem medo,
Quando o deus encoberto se revele
Com a palavra do imortal segredo!
Surgir! surgir! é a ânsia que os impele
A quantos vão na estrada do infinito
Erguendo a pasmosíssima Babel!
Surgir! ser astro e flor! onda e granito!
Luz e sombra! atracção e pensamento!
Um mesmo nome em tudo está escrito...
...........................................
Eis quanto me ensinou a voz do vento.
1865-1874
TENTANDA VIA
I
Com que passo tremente se caminha
Em busca dos destinos encobertos!
Como se estão volvendo olhos incertos!
Como esta geração marcha sozinha!
Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!
A noite, longa! o dia, duvidoso!
Vai o giro dos céus, vem vagaroso...
Vem longe ainda a praia do futuro...
É a grande incerteza, que se estende
Sobre os destinos dum porvir, que é treva...
É o escuro terror de quem nos leva...
O futuro horrível que das almas pende!
A tristeza do tempo! o espectro mudo
Que pela mão conduz... não sei aonde!
Quanto pode sorrir, tudo se esconde...
Quanto pode pungir, mostra-se tudo. -
Não c a grande luta, braço a braço,
No chão da Pátria, à clara luz da História...
Nem o gládio de César, nem a glória...
É um misto de pavor e de cansaço!
Não é a luta dos trezentos bravos,
Que o solo amado beijam quando caem...
Crentes que traz um Deus, e à guerra saem,
Por não dormir no leito dos escravos...
É a luta sem glória! é ser vencido
Por uma oculta, súbita fraqueza!
Um desalento, uma íntima tristeza
Que à morte leva... sem se ter vivido!
Não há aí pelejar... não há combate...
Nem há já glória no ficar prostrado
São os tristes suspiros do Passado
Que se erguem desse chão, por toda a parte...
É a saudade, que nos rói e mina
E gasta, como à pedra a gota d'água...
Depois, a compaixão, a íntima mágoa
De olhar essa tristíssima ruína...
Tristíssimas ruínas! Entristece
E causa dó olhá-las a vontade
Amolece nas águas da piedade,
E, em meio do lutar, treme e falece.
Cada pedra, que cai dos muros lassos
Do trémulo castelo do passado,
Deixa um peito partido, arruinado,
E um coração aberto em dois pedaços!
II
A estrada da vida anda alastrada
De folhas secas e mirradas flores...
Eu não vejo que os céus sejam maiores,
Mas a alma... essa é que eu vejo mais minguada!
Ah! via dolorosa é esta via!
Onde uma Lei terrível nos domina!
Onde é força marchar pela neblina...
Quem só tem olhos para a luz do dial
Irmãos! irmãos! amemo-nos! é a hora...
É de noite que os tristes se procuram,
E paz e união entre si juram...
Irmãos! irmãos! amemo-nos agora!
E vós, que andais a dores mais afeitos,
Que mais sabeis à Via do Calvário
Os desvios do giro solitário,
E tendes, de sofrer, largos os peitos;
Vós, que ledes na noite... vós, profetas...
Que sois os loucos... porque andais na frente...
Que sabeis o segredo da fremente
Palavra que dá fé ó vós, poetas!
Estendei vossas almas, como mantos
Sobre a cabeça deles... e do peito
Fazei-lhes um degrau, onde com jeito
Possam subir a ver os astros santos...
Levai-os vós à pátria-misteriosa,
Os que perdidos vão com passo incerto!
Sede vós a coluna de deserto!
Mostrai-lhes vós a Via-dolorosa!
III
Sim! que é preciso caminhar avante!
Andar! passar por cima dos soluços!
Como quem numa mina vai de bruços
Olhar apenas uma luz distante!
É preciso passar sobre ruínas,
Como quem vai pisando um chão de flores!
Ouvir as maldições, ais e clamores,
Como quem ouve músicas divinas!
Beber, em taça túrbida, o veneno,
Sem contrair o lábio palpitante!
Atravessar os círculos do Dante,
E trazer desse inferno o olhar sereno!
Ter um manto da casta luz das crenças,
Para cobrir as trevas da miséria!
Ter a vara, o condão da fada aérea,
Que em ouro torne estas areias densas!
É, quando, tem temor e sem saudade,
Puderdes, dentre o pó dessa ruína,
Erguei o olhar à cúpula divina,
Heis-de então ver a nova-claridade!
Heis-de então ver, ao descerrar do escuro,
Bem como o cumprimento de um agouro,
Abrir-se, como grandes portas de ouro,
As imensas auroras do Futuro!
IDÍLIO
Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;
Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:
Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces
O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
A UM POETA
(surge et ambula)
Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.
Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno…
Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!
HINO À RAZÃO
Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre só a ti submissa.
Por ti é que a poeira movediça
De astros, sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
Por ti, na arena trágica, as nações
buscam a liberdade entre clarões;
e os que olham o futuro e cismam, mudos,
Por ti podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
O PALÁCIO DA VENTURA
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d’ouro com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!
CONSULTA
Chamei em volta do meu frio leito
As memórias melhores de outra idade,
Formas vagas, que às noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito…
E disse-lhes: No mundo imenso e estreito
Valia a pena, acaso, em ansiedade
Ter nascido? Dizei-mo com verdade,
Pobres memórias que eu ao seio estreito.
Mas elas perturbaram-se coitadas!
E empalideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena…
E cada uma delas, lentamente,
Com um sorriso mórbido, pungente,
Me respondeu: Não, não valia a pena!
LACRIMAE RERUM
Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!
Aonde são teus sóis, como coorte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza que o conforte?
Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas…
É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas…
A GERMANO MEIRELES
Só males são reais, só dor existe:
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada[, um] imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.
Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?
Oh! Quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só. E nada vira…
Mas, no que se não vê, labor perdido!
Quem fora tão ditoso que olvidasse…
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido!
O CONVERTIDO
Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.
Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza…
Mas um dia abalou-se-me a firmeza,
Deu-me um rebate o coração contrito!
Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!
Amortalhei na Fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento…
Só me falta saber se Deus existe!
MORS-AMOR
Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,
Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?
Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável mas plácido no porte,
Vestido de armadura reluzente,
Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz «Eu sou a morte»,
Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor».
EVOLUÇÃO
Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta…
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo…
Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo…
Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade…
Interrogo o infinito e às vezes choro…
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.
ESPIRITUALISMO
Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,
Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas vagamente…
Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?
Mas na imensa extensão onde se esconde
O inconsciente imortal só me responde
Um bramido, um queixume e nada mais.
COM OS MORTOS
Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos…
E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,
Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.
NOX
Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos...
Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos...
Oh! Antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,
E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!
SOLEMNIA VERBA
Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...
Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!
Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,
Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.