Projecto Vercial

Manuel Maria Barbosa du Bocage


Manuel Maria Barbosa du Bocage

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) nasceu em Setúbal, filho de um advogado e de uma senhora francesa. Vai para a Academia Real da Marinha aos 14 anos e embarca em serviço para a Índia em 1786. Vive dois anos em Goa, regressando a Lisboa com 25 anos de idade. Aí dedica-se a uma vida desregrada entre os botequins e as tertúlias literárias. Pertenceu à Nova Arcádia onde era conhecido pelo pseudónimo de Elmano Sadino. As suas relações com a Arcádia não foram pacíficas, tendo, ao afastar-se, lançando ataques contundentes nos seus versos. O seu pendor satírico levou-o à prisão do Limoeiro, conseguindo a transferência para o mosteiro de São Bento onde vem a falecer pobre e doente. As suas obras tiveram várias edições ainda em vida do poeta: Rimas, tomo I (1791), Rimas, tomo II (1799) e Rimas, tomo III (1804). Em 1811 foram publicadas as Obras Completas no Rio de Janeiro. Ficaram famosos os seus Sonetos, os seus Epigramas e os seus Apólogos.

Outras páginas sobre o autor:

  • Recensão crítica às Fábulas de Bocage publicadas por Daniel Pires



    SONETOS


    1

    À Restauração de Portugal em 1640

    Cesarões, Viriatos, Apimanos,
    Vós que, brandindo vingadora espada,
    Tentastes sacudir da Pátria amada
    O vil, o férreo jugo dos Romanos.

    Surgi, vede-a no sangue de tiranos
    Inda piores outra vez banhada,
    E a nossa liberdade edificada
    No estrago dos intrusos Castelhanos.

    Aos senhores do mundo armipontentes
    Arrancastes, em bélica porfia,
    Parte do loiro que lhe honrava as frentes;

    Porém com milagrosa valentia
    Os vossos memoráveis descendentes
    Fizeram mais livraram-se num dia!



    2

    Lusos heróis, cadáveres cediços,
    Erguei-vos dentre o pó, sombras honradas,
    Surgi, vinde exercer as mãos mirradas
    Nestes vis, nestes cães, nestes mestiços.

    Vinde salvar destes pardais castiços
    As searas de arroz, por vós ganhadas;
    Mas ah! Poupai-lhe as filhas delicadas,
    Que. Elas culpa não têm, têm mil feitiços.

    De pavor ante vós no chão se deite
    Tanto fusco rajá, tanto nababo,
    E as vossas ordens, trémulo, respeite.

    Vão para as várzeas, leve-os o Diabo;
    Andem como os avós, sem mais enfeite
    Que o langotim, diámetro do rabo.



    3

    Ó retrato da morte! Ó Noite amiga,
    Por cuja escuridão suspiro há tanto!
    Calada testemunha de meu pranto,
    De meus desgostos secretária antiga!

    Pois manda Amor que a ti somente os diga
    Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
    Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
    Dorme a cruel que a delirar me obriga.

    E vós, ó cortesãos da escuridade,
    Fantasmas vagos, mochos piadores,
    Inimigos, como eu, da claridade!

    Em bandos acudi aos meus clamores;
    Quero a vossa medonha sociedade,
    Quero fartar meu coração de horrores.



    4

    Meu ser evaporei na lida insana
    Do tropel de paixões, que me arrastava;
    Ah!, cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava
    Em mim quase imortal a essência humana.

    De que inúmeros sóis a mente ufana
    Existência falaz me não doirava!
    Mas eis sucumbe a Natureza escrava
    Ao mal que a vida em sua origem dana.

    Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
    Esta alma, que sedenta em si não coube,
    No abismo vos sumiu dos desenganos.

    Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube,
    Ganhe um momento o que perderam anos.
    Saiba morrer o que viver não soube.



    5

    Camões, grande Camões, quão semelhante
    Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
    Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
    Arrostar co'o sacrílego gigante;

    Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
    Da penúria cruel no horror me vejo;
    Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
    Também carpindo estou, saudoso amante.

    Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
    Meu fim demando ao Céu, pela certeza
    De que só terei paz na sepultura.

    Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...
    Se te imito nos transes da Ventura,
    Não te imito nos dons da Natureza.



    6

    Adamastor cruel! De teus furores
    Quantas vezes me lembro horrorizado!
    Ó monstro! Quantas vezes tens tragado
    Do soberbo Oriente os domadores!

    Parece-me que entregue a vis traidores
    Estou vendo Sepúlveda afamado,
    Co'a esposa e co'os filhinhos abraçado,
    Qual Mavorte com Vénus e os Amores.

    Parece-me que vejo o triste esposo,
    Perdida a tenra prole e a bela dama,
    Às garras dos leões correr furioso.

    Bem te vingaste em nós do afoito Gama!
    Pelos nossos desastres és famoso.
    Maldito Adamastor! Maldita fama!


    7

    SONETO DITADO NA AGONIA

    Já Bocage não sou!... À cova escura
    Meu estro vai parar desfeito em vento...
    Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
    Leve me torne sempre a terra dura;

    Conheço agora já quão vã figura,
    Em prosa e verso fez meu louco intento:
    Musa!... Tivera algum merecimento
    Se um raio da razão seguisse pura.

    Eu me arrependo; a língua quase fria
    Brade em alto pregão à mocidade,
    Que atrás do som fantástico corria:

    Outro Aretino fui... a santidade
    Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
    Rasga meus versos, crê na eternidade!


    8

    AUTOBIOGRAFIA

    De cerúleo gabão não bem coberto,
    passeia em Santarém chuchado moço,
    mantido, às vezes, de sucinto almoço,
    de ceia casual, jantar incerto;

    dos esbrugados peitos quase aberto,
    versos impinge por miúde e grosso;
    e do que em frase vil chamam caroço,
    se o que, é vox clamantis in deserto;

    pede às moças ternura, e dão-lhe motes;
    que, tendo um coração como estalage,
    vão nele acomodando a mil peixotes.

    Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
    cercado de um tropel de franchinotes?
    – É o autor do soneto: – é o Bocage.



    CANTATA À MORTE DE INÊS DE CASTRO


    As filhas do Mondego a morte escura
    Longo tempo chorando, memoraram

    Camões, "Os Lusíadas", Canto III, est. 135



    Longe do caro Esposo Inês formosa
    Na margem do Mondego
    As amorosas faces aljofrava
    De mavioso pranto.
    Os melindrosos, cândidos penhores
    Do tálamo furtivo,
    Os filhinhos gentis, imagem dela,
    No regaço da mãe serenos gozam
    O sono da inocência.
    Coro subtil de alígeros Favónios
    Que os ares embrandece,
    Ora enlevado afaga
    Com as plumas azuis o par mimoso,
    Ora solto, inquieto,
    Em leda travessura, em doce brinco,
    Pela amante saudosa,
    Pelos ternos meninos se reparte,
    E com ténue murmúrio vai prender-se
    Das áureas tranças nos anéis brilhantes.
    Primavera louçã, quadra macia
    Da ternura e das flores,
    Que à bela Natureza o seio esmaltas,
    Que no prazer de Amor ao mundo apuras
    O prazer da existência.
    Tu de Inês lacrimosa
    As mágoas não distrais com teus encantos,
    Debalde o rouxinol, cantou de amores,
    Nos versos naturais os sons varia;
    O límpido Mondego em vão serpeia
    Co'um benigno sussuro, entre boninas
    De lustroso matiz, almo perfume,
    Em vão se doira o Sol de luz mais viva.
    Os céus de mais pureza em vão se adornam
    Por divertir-te, ó Castro.
    Objectos de alegria Amor enjoam,
    Se Amor é desgraçado
    A meiga voz dos Zéfiros, do rio,
    Não te convida o sono:
    Só de já fatigada
    Na luta de amargosos pensamentos
    Cerras, mísera, os olhos;
    Mas não há para ti, para os amantes
    Sono plácido e mudo;
    Não dorme a fantasia, Amor não dorme:
    Ou gratas ilusões, ou negros sonhos
    Assomando na ideia, espertam, rompem
    O silêncio da Morte.
    Ah!, que fausta visão de Inês se apossa!
    Que cena, que espectáculo assombroso
    A paixão lhe afigura aos olhos d'alma!
    Em marmóreo salão de altas colunas,
    A sólio majestoso e rutilante
    Junto ao régio amador se crê subida;
    Graças de neve a púrpura lhe envolve,
    Pende augusto dossel do tecto de oiro,
    Rico diadema de radioso esmalte
    Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;
    Nos luzentes degraus do trono excelso
    Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
    A lisonja sagaz lhe adoça os lábios;
    O monstro da política se aterra
    E, se Inês perseguia, Inês adora.
    Ela escuta os extremos,
    Os vivas populares; vê o amante
    Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;
    O prazer a transporta, amor a encanta;
    Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio
    Magnânima confere;
    Rainha esquece o que sofreu vassala:
    De sublimes acções orna a grandeza,
    Felicita os mortais; do ceptro é digna,
    Impera em corações... Mas, Céus! que estrondo
    O sonho encantador lhe desvanece!
    Inês sobressaltada
    Desperta, e de repente aos olhos turvos
    Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
    Ministros do Furor, três vis algozes,
    De buídos punhais a dextra armada,
    Contra a bela infeliz, bramando, avançam,
    Ela grita, ela treme, ela descora;
    Os frutos da ternura ao seio aperta,
    Invocando a piedade, os Céus, o amante;
    Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto,
    À suave atracção da formosura,
    Vós, brutos assassinos,
    No peito lhe enterrais os ímpios ferros,
    Cai nas sombras da morte
    A vítima de Amor lavada em sangue;
    As rosas, os jasmins da face amena
    Para sempre desbotam;
    Dos olhos se lhe some o doce lume;
    E no fatal momento
    Balbucia, arquejando: "Esposo! Esposo!"

    Os tristes inocentes
    A triste mãe abraçam,
    E soltam de agonia inútil choro.
    Ao suspiro exaltado,
    Final suspiro da fortuna extinta,
    Os Amores acodem.
    Mostra a prole de Inês, e tua, ó Vénus,
    Igual consternação, e igual beleza:
    Uns dos outros os cândidos meninos
    Só nas asas diferem,
    (Que jazem pelo campo em mil pedaços
    Carcases de marfim, virotes de ouro)
    Súbito voam dois do coro alado;
    Este, raivoso, a demandar vingança
    No tribunal de Jove,
    Aquele a conduzir o infausto anúncio
    Ao descuido da amante.
    Nas cem tubas da Fama o grão desastre
    Irá pelo universo:
    Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres,
    No torrado sertão da Líbia fera
    As serpes, os leões hão-de chorar-te.
    Do Mondego, que atónito recua,
    Do sentido Mondego as alvas filhas
    Em tropel doloroso
    Das urnas de cristal eis vêm surgindo;
    Eis, atentas no horror do caso infando,
    Terríveis maldições dos lábios vibram
    Aos monstros infernais, que vão fugindo
    Já c'roam de cipreste a malfadada,
    E, arrepelando as nítidas madeixas,
    Lhe urdem saudosas, lúgubres endechas
    Tu, Eco, as decoraste;
    E cortadas dos ais, assim ressoam
    Nos côncavos penedos, que magoam:

    Toldam-se os ares
    Murcham-se as flores;
    Morrei, Amores,
    Que Inês morreu.

    Mísero esposo,
    Desata o pranto,
    Que o teu encanto
    Já não é seu.

    Sua alma pura
    Nos Céus encerra;
    Triste da Terra,
    Porque a perdeu.

    Contra a cruenta
    Raiva ferina,
    Taça divina
    Não lhe valeu.

    Tem roto o seio,
    Tesouro oculto;
    Bárbaro insulto
    Se lhe atreveu.

    Da dor e espanto
    No carro de ouro
    O númen louro
    Desfaleceu.

    Aves sinistras
    Aqui piaram,
    Lobos uivaram,
    O chão tremeu.

    Toldam-se os ares
    Murcham-se as flores;
    Morrei, Amores,
    Que Inês morreu.



    A BUSCA DE EURÍDICE


    De rutilantes vestes adornado
    Himeneu rompe o ar, e à Trácia voa,
    Lá donde o chama Orfeu, porém debalde.

    O deus sim presidiu do vate às núpcias,
    Mas não levara ali solenes vozes,
    Nem presságio feliz, nem ledo rosto.
    Sentiu-se apenas crepitar-lhe o facho,
    E em vez de viva luz soltar um fumo
    Lutuoso, e fatal: vamente o nume
    Tentou co movimento erguer-lhe a chama.
    O efeito foi pior que o mesto agouro.

    Enquanto a linda noiva os prados gira,
    Das náiades gentis acompanhada,
    Áspide oculto fere o pé mimoso:
    Morre a moça infeliz, e o triste amante
    Depois de a lamentar aos Céus, e à terra,
    Empreende comover do Inferno as sombras;
    Afouto desce a vós, Tenárias portas.

    Por entre baralhada, aérea turba
    Cujos restos mortais sepulcro logram,
    Aos negros paços vai do rei das trevas,
    Vê do tirano eterno o trono horrendo.
    Lá casa os sons da voz, e os sons da lira,
    Às deidades cruéis lá diz: "Oh deuses,
    Deuses do mundo sotoposto à Terra,
    No qual se há-de sumir tudo o que existe!
    Se acaso a bem levais que ingénuas vozes
    O artifício removam, crede as minhas.
    Não venho para ver o opaco Averno,
    Nem para agrilhoar as três gargantas
    Do monstro Meduseu, que erriçam cobras.
    Atrai-me ao reino vosso a morta esposa,
    A quem pisada víbora o veneno
    Nas veias desparziu, a flor murchando
    Dos anos festivais, inda crescentes.
    Constância quis opor ao dano acerbo,
    Tentei vencer meu mal, e Amor venceu-me.
    Este deus é nos Céus bem conhecido,
    Aqui não sei se o é, mas se não mente
    No rapto que pregoa antiga fama,
    Vós também pelo Amor ligados fostes.
    Ah! por este lugar, que abrange o medo,
    Por este ingente caos, silêncio vasto,
    Que do profundo império o seio ocupam,
    De Eurídice gentil à doce vida
    O fio renovai, tão cedo roto.
    Ela, todo o mortal vos é devido,
    Vem tudo, agora, ou logo, à mesma estância.
    Por aqui pende tudo, é este o nosso
    Derradeiro, infalível domicílio;
    Vós tendes, vós gozais, a vós compete
    Da espécie humana o senhorio imenso;
    A que exijo de vós há-de ser vossa
    Por inviolável jus, por lei dos Fados,
    Tocando o termo da vital carreira:
    O uso do meu prazer em dom vos peço.
    Se o Destino repugna ao bem, que imploro,
    Se a esposa me retém, sair não quero
    Deste horror: exultai coa morte de ambos."
    O triste, que assim une o verso à lira
    Os exangues espíritos deploram:
    À fugaz linfa Tântalo não corre:
    A roda de Ixíon de assombro pára:
    Os abutres cruéis não mordem Tício
    As Bélides os crivos cair deixam,
    Tu, Sísifo, te assentas sobre a pedra.
    Das vencidas Euménides é fama
    Que pela vez primeira os negros olhos
    Algumas ténues lágrimas verteram.
    Nem a esposa feroz, nem Dite enorme
    Ousam negar piedade ao vate orante,
    Chamam súbito Eurídice. Envolvida
    Entre as recentes sombras ela estava:
    Eis o mordido pé vem manso, e manso.
    Recebe o trácio Orfeu coa bela esposa
    Lei de que para trás não volte os olhos
    Enquanto for trilhando o feio abismo,
    Se nula não quiser a graça extrema,
    Por duro, esconso, desigual caminho,
    De escuras, vastas névoas carregado,
    Um após outro os dois, vão em silêncio:
    Já do tartáreo fim distavam pouco.

    Temendo o amante aqui perder-se a amada,
    Cobiçoso de a ver, lhe volve os olhos:
    De repente lha roubam. Corre, estende
    As mãos, quer abraçar, ser abraçado,
    E o mísero somente o vento abraça.
    Ela morre outra vez, mas não se queixa,
    Não se queixa do esposo; e poderia
    Senão de ser querida lamentar-se?
    Diz-lhe o supremo adeus, já mal ouvido;
    E recai a infeliz na sombra eterna.

    Fica atónito Orfeu coa dupla morte
    Da malfadada esposa, como aquele
    Que num dos colos viu com rijos ferros
    Preso, arrastado à luz o cão trifauce,
    E que o mudo pavor despiu somente
    Quando despiu a natureza humana,
    Transformado em rochedo imoto, e frio;
    Ou qual o que a si mesmo impôs um crime,
    Óleno, que de réu quis ter o nome
    Por te salvar, misérrima Leteia,
    Orgulhosa de mais com teus encantos,
    Tu, que foste co esposo outrora uma alma
    Repartida em dois corpos, que hoje és pedra
    Com ele, e juntos no Ida estais sustidos.

    O estígio remador expulsa o vate
    Que ora, que em vão tornar ao Orco intenta.
    Sete dias jazeu na margem triste
    Sem nutrimento algum: só a saudade
    As lágrimas, a dor o alimentaram.

    Depois de prantear vossa fereza,
    Numes do Inferno, ao Ródope se acolhe,
    E ao Hemo, de Aquilões sempre agitado.
    Dera o giro anual três vezes Febo,
    E sempre o terno Orfeu de amor fugia,
    Ou porque o mal passado o refreava,
    Ou porque eterna fé jurado houvesse
    A miseranda esposa: repulsadas
    Mil belas ninfas seus desdéns carpiram.

    P. Ovídio Nasão, As Metamorfoses, livro X, tradução de Bocage



    EPIGRAMAS


    O pai enfermo e o doutor

    Um velho caiu na cama;
    Tinha um filho esculapino,
    Que para adivinhações
    Campava de ter bom tino.
    O pulso paterno apalpa,
    E receitar depois vai;
    Diz-lhe o velho, suspirando:
    "Repara que sou teu pai."


    A moléstia e a receita

    Para curar febres podres
    Um doutor se foi chamar,
    Que feitas as cerimónias,
    Começou a receitar.
    A cada penada sua
    O enfermo arrancava um ai!
    – "Não se assuste (diz Galeno),
    Que inda desta se não vai."
    – Ah! senhor! (torna o coitado,
    Como quem seu fado espreita)
    Da moléstia não me assusto,
    "Assusto-me da receita."


    Conselho a um impaciente

    Homem de génio impaciente,
    Tendo uma dor infernal,
    Pedia, para matar-se,
    Um veneno, ou um punhal.
    – "Não há (lhe disse um vizinho
    Velho que pensava bem),
    Não há punhal, nem veneno;
    Mas o médico aí vem."


    A parca e o médico

    – "Morte! (Clamava o doente)
    Este mísero socorre."
    Surge a Parca de repente,
    E diz de longe: – "Recorre
    Ao teu médico assistente."


    Vingança do médico

    Um médico ressentido
    De certo seu ofensor,
    Ante um amigo exclamava,
    Todo abrasado em furor:
    – "Para punir este indigno,
    Este vil, tomara um raio."
    Acode o outro: – "Há um meio
    Muito mais fácil; curai-o".


    O récipe

    Pôs-se médico eminente
    Em voz alta a receitar.
    – "Récipe" (diz)... de repente
    Grita da cama o doente:
    – "Basta, que mais é matar."


    O adeus do doutor

    Um médico receitou:
    Súbito o récipe veio.
    Do qual no bucho do enfermo
    Logo embutiu copo e meio,
    – "Adeus até à manhã"
    (Diz o fofo professor).
    Responde o doente: – "Adeus
    Para sempre meu doutor".


    O letrado

    Inda novel demandista
    Um letrado consultou,
    Que, depois de cem perguntas,
    Tal resposta lhe tornou:
    – "Em Cujácios, em Monóquios,
    Em Pegas e Ordenação
    Em Reinícolas e Estranhos


    (Textos digitalizados por Gonzalo Navaza, 1997.)


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