José Leon Machado

Recensões

O Guerreiro Decapitado
José Leon Machado
Porto, Campo das Letras, 1999 (romance)


O Guerreiro Decapitado
de José Leon Machado

Há algum tempo atrás, um amigo contou-me que numa escola da Carolina do Norte, EUA, a obra Alice no País das Maravilhas, do escritor inglês Lewis Carroll, tinha sido banida do programa, depois de um encontro de pais e encarregados de educação. O argumento, bastante mais absurdo do que as personagens do próprio livro infantil, foi simplesmente este: o texto incentiva ao consumo de drogas. Em vão revisitei o livro, sem encontrar qualquer indício que me pudesse fazer chegar a essa inferência. Na mesma linha neurótica do «politicamente correcto», O Feiticeiro de Oz foi censurado e os jovens e adolescentes proibidos de o requisitarem na biblioteca. Desta vez a desculpa apresentada foi ainda mais risível: dizia-se que a obra, originador do filme homónimo, poderia conduzir ao paganismo e à bruxaria.

Estes dois casos são sintomáticos. Efectivamente, ao nível da crítica literária, vivem-se tempos convulsivos, uma montanha russa de altos e baixos, ora de absurdos, ora de propostas inteligentes. Se o pós-modernismo arejou as mentalidades e esbateu a oposição entre arte pela arte e escrita interventiva ou popular, não menos certo é que deixou também espaço para autênticos disparates. Nos nossos dias, reflecte-se a cada vez mais sobre aspectos como o papel do crítico e da comunidade interpretativa em geral, da validade dos critérios estéticos e também da utilidade do cânone literário, como repositório das obras consagradas de uma determinada cultura. Depois de trabalhos como o de Harold Bloom ou, no extremo de opinião oposta, de Leopold Bloom, ficou claro que o panteão de autores deixou de fora muitos textos com qualidade, devido a questões exógenas a literatura. O racismo, por exemplo, dificultava a aceitação dos escritos de autores que não fossem brancos, o colonialismo rejeitava quem não vivesse no país dominador, o sexismo inferiorizava as mulheres e negava-lhes muitas vezes a oportunidade de uma carreira nas letras. Outros «-ismos» se poderão acrescentar a estes, desaguando todos eles num cânone feito à imagem e semelhança das classes dirigentes e da moral da época. O resultado foi um cânone falseado. Em suma, deram-nos gato por lebre, autor branco por autor negro, homem por mulher, colonizador por colonizado, etc. Por outras palavras, o que se lê nas escolas e universidades não é necessariamente bom, e o que foi excluído não é de todo mau, porque a colheita foi enformada por razões que nada têm a ver com um sistema crítico e isento – partindo do pressuposto que tal exista devido às contingências e ao factor humano a que nem a teoria da literatura escapa.

Gerou-se assim um centro elitista – os autores canónicos – e uma periferia de escritores excluídos,. Sei que estou entre um público de amantes da literatura e de professores. Com conhecimento de causa, porque também eu sou docente, vos posso afiançar: por cada autor que vem no programa, há pelo menos meia dúzia, tão bons ou melhores, que furam postos à margem. Citarei apenas alguns exemplos de gente que oscila entre a perda e a consagração, casos ora familiares ora estranhos: Joaquim Jorge Carvalho, Al Berto, Isabel Cristina Pires, Paulo Ramalho, Nuno Júdice, Jorge Guimarães, Casimiro de Brito, Travanca-Rêgo, Orlando Neves, João Rui de Sousa, Ana Luísa Amaral, etc.

Nas quatro últimas décadas e para colmatar a situação, tem sido feito, sobretudo nos Estados Unidos, em Inglaterra e noutros países anglófonos, uma revisão do cânone literário. Subjacente a este projecto está a ideia de que é preciso re-analisar as obras que não foram consideradas para as estantes de ouro, de forma a colmatar injustiças e a enriquecer o património literário de uma nação. Não tem sido um processo pacífico, nem ao nível das academias, em que cabeças de professores já rolaram, nem nos «mass media», nem entre grupos como a das feministas, que pretendem ver diminuída a desproporção flagrante entre autores e autoras. Contudo, e apesar do inevitável chorrilho de disparates, este debate, vulgarmente conhecido por «guerras culturais», tem sido profícuo. Tanto nos Estados Unidos como em Inglaterra, o cânone tem aumentado consideravelmente e muitas vozes submersas, a maioria das quais com qualidade, tem vindo a flutuar e a revelar não apenas novos estilos, mas também outras ideias e maneiras de ser. Pouco a pouco, a poeira assenta e da polémica surgem áreas de conhecimento como os Estudos Culturais, os «Gay studies», a abordagem feminista, etc. Se para alguns vêem neste processo uma «politicização» que só profana as estantes bafientas do cânone e corrompe as mentes dos alunos, para outros, como eu, trata-se de uma questão de justiça cultural.

De facto, o cânone é a trave-mestra de um país, um reflexo do seu pulsar, um repositório dos seus valores e do pensar de um povo. Portanto, democraticamente, ninguém pode ser contornado ou excluído com base na cor, no sexo, na opinião política. Por isso mesmo me parece um absurdo, fruto da ignorância, que o nosso cânone se mantenha impávido, impermeável às modificações. Não estou, como é óbvio, a propor que se excluam autores. Pretendo, isso sim, que se acrescentem outros que a comunidade literária tem, presunçosamente, ignorado. Em dez anos como crítico literário, tive tanto a oportunidade de desvendar autores pouco conhecidos como de fazer, em sessões de lançamento, a apresentação de textos de Baptista-Bastos ou de Lídia Jorge. Apesar do inevitável prestígio dos segundos, a minha devoção sempre foi para com os primeiros, precisamente por serem os mais periféricos e esquecidos, não obstante o seu talento.

Há algum meses atrás, em conversa com o realizador dos vídeo-livros do programa Acontece, recebi o seguinte conselho: «mude-se para Lisboa, porque é aqui que as coisas sucedem, que as oportunidades surgem». Não o fiz, nem o farei. Não sinto que o autor deva lamber as mãos à crítica, nem adormecer aos pés das maiores editoras da metrópole. Cabe à imprensa, aos teóricos da literatura e a todos os leitores fazer o julgamento das obras. Contudo, tal nem sempre sucede. Logo à partida, Portugal está monopolizado por algumas poucas editoras poderosas, encostadas a velhos dinossáurios ou reclamando a descoberta acidental de um ou outro autor. A marcar o passo, exactamente no mesmo ritmo, estão periódicos como o JL em que A critica B e B critica A, no que me parece, sem ofensa para ninguém, uma actualização daquele provérbio latino que afirma «um asno coça outro». O panorama não é diferente na imprensa semanária nacional ou em certos jornais diários. Consultem os seus suplementos culturais e encontrarão recensões críticas com uma dúzia de linhas, que nada informam, nada julgam e nada esclarecem. O termo «crítica» provém do grego «krinos» e significa «escolher». Se o agricultor não sabe seleccionar as suas uvas, como será a colheita? Pior ainda, é quando o agricultor não quer saber. Como professor de Estudos Literários e de Literatura Norte-Americana, tenho encontrado estudantes capazes de fazer artigos críticos mais bem fundamentados e imparciais do que os surgidos na imprensa não especializada. Não é difícil, pois estes têm conhecimentos e um sentido de isenção bem maiores do que os críticos de água-doce e mangas de alpaca que debitam apenas impressões superficiais sobre uma obra, não dominam a técnica das letras, e ainda para mais cedem a pressões externas – os célebres «jeitinhos» ou «lobbies» – ou internas – como revelava um número da revista Ler, a propósito do director de um periódico que disse «ou desancam nos autores, ou são despedidos».

Qual é o interesse em subverter um processo límpido como deveria ser o da selecção literária? Evidentemente, existem pressões económicas, mas não me parece que esteja aí o fulcro da questão. Tratar-se-á de uma manobra para evitar o desafio salutar que as novas gerações de escritores sempre fazem aos consagrados, e da qual resultam novas estéticas? Também não creio que seja uma luta de galos, pois daqui não adviria qualquer vantagem para os editores, que necessitam de ver renovado o rol de escritores e de lançar novas vozes. Parece-me que se trata de um puro «show off», um exibicionsimo desbragado de estupidez e falta de cultura. Em Portugal, a crítica quer brilhar, esfrega as mãos de satisfação quando tem a oportunidade de se transformar num «bulldozer» e de espalmar o autor, para que toda a gente pergunte: «Quem escreveu o artigo? Ah, foi fulano». E o indivíduo, normalmente um jornalista cultural feito à pressão ou um ex-escritor falhado, obtém os quinze minutos de fama de que falava Andy Warhol e o lenitivo de que tão urgentemente necessitava para compensar as suas frustrações.

A via dos concursos também não se me afigura como vantajosa para um escritor se lançar. Alguns há que se tornaram em autênticos coleccionadores de prémios e conseguiram chamar a atenção para os seus textos, normalmente até merecedores de interesse. Contudo, e ao mesmo tempo, ventilam-se histórias de trabalhos concorrentes que nem chegam às mãos do júri – basta ver o carimbo dos correios para saber se o autor é da casa ou de outras paragens, se deve ou não ser tomado em conta; de prémios feitos propositadamente para os amigos; de membros do júri que só lêem as duas primeiras páginas, antes de remeterem o original para o oblívio; de contos que são devolvidos sem terem sido abertos, com o mesmo pingo de cola a grudar a sexta e a sétima página, evidência que ninguém fez caso; de vencedores que são contactados e depois, quando chegam à sessão de entrega de prémios, passam de primeiro para segundo lugar, ou qualquer outra coisa semelhante.

Neste contexto, publicar é sempre um acto arrojado e só por isso já merece o nosso aplauso. Como se não bastasse, o José Leon Machado sabe correr riscos e transformá-los em mais-valias. Como um homem de cultura voltado para o futuro, construiu na Internet aquela que é hoje a maior base de dados sobre literatura portuguesa do mundo: o Projecto Vercial e o Letras & Letras Online. Com o préstimo de escritores ora famosos ora ainda por descobrir, com o auxílio de críticos literários de espírito aberto, ergueu um verdadeiro e apaixonado monumento às letras de antes e de agora. Trata-se de um «site» várias vezes premiado, já acedido mais de cem mil vezes, que democratiza a cultura e se torna num instrumento auxiliar tanto para professores como para alunos ou investigadores. Na mesma linha, os amantes da literatura encontrarão ali textos integrais, biografias, entrevistas, notícias, ensaios recensões críticas… Uma montra de livros analisados, prontos a serem abertos ao vosso prazer. Verdadeiramente, só conheci o Machado quando, a propósito dessa página, começámos a trocar correspondência com bastante regularidade, através de correio electrónico, posteriormente ampliada em encontros quando esporadicamente venho a Chaves. O Machado assumiu a tarefa da divulgação da escrita com coragem, frontalidade e o mesmo sentido de profissionalismo que tem como docente. Fez amigos, fez inimigos – porque também pelo número destes se mede o valor de alguém -, e suscitou ora admiração ora as invejas daqueles que mordem os calcanhares porque não conseguem igualar.

Quando, a alguns dias atrás, me convidou para fazer a apresentação do seu livro, senti-me honrado. Eu já conhecia a sua faceta de escritor, através de edições autorais que fazia «para oferecer aos amigos», como humildemente diz. Algumas dessas obras revelavam talento para a escrita, outras eram ainda textos em que experimentava os seus limites e testava capacidades, exercícios de aprendizagem de quem se acautela e prepara antes da estreia. O Machado honrou-me, mas também correu um risco, porque sabe que sou sincero na amizade, mas não me deixo cegar por afectos, quando se trata de efectuar uma análise crítica e responsável de um texto literário.

A obra que hoje nos é proposta intitula-se O Guerreiro Decapitado e enquadra-se perfeitamente no género do romance histórico, que tem vindo a ressurgir, em particular a partir dos meados da década de oitenta, mercê do trabalho de escritores como Mário Cláudio, João Aguiar, Mário de Carvalho e José Saramago, entre outros. Parece-me lógico que assim seja, em especial num país que pode clamar uma História riquíssima e não desprovida de episódios agitados. É um manancial que está ainda, em boa parte, por aproveitar tanto para a ficção literária como para a cinéfila. Numa altura em que as camadas mais jovens parecem ser menos permeáveis ao passado, tal poderá inclusivamente ser uma forma de divulgação de factos essenciais para a compreensão crítica do nosso passado.

Ao longo de séculos, Portugal foi ponto de encontro e de confronto, de assimilação e aculturação, entre várias civilizações, raças, e dentro destas, etnias. Curiosa mas sintomaticamente, também esta obra trata, nas suas traves-mestras, do contacto entre os Brácaros – habitantes da zona de Braga – e os invasores Romanos, no século I da nossa era. Esse facto suscitou-me uma interpretação de O Guerreiro Decapitado à luz dos estudos multiculturais, uma corrente de crítica ainda relativamente nova, que surgiu tímida e embrionariamente nos anos 50, e está agora a atingir a sua maturidade. Pode parecer estranho, até blasfemo, aplicar novas perspectivas de análise a um livro que enfoca realidades tão distantes no tempo. Invoco um álibi muito simples: o inconsciente colectivo do ser humano (a sua «programação básica») não se alterou significativamente nos últimos milénios. Continuamos a nascer programados para o medo do desconhecido – sobretudo quando ele pertence a outra raça e civilização -, temor que «à posteriori» evolui para a aceitação, a tolerância ou a rejeição. A actual situação no Kosovo ou em Timor é, aliás, uma prova evidente disso. Se a História é irrepetível, não menos certo é que se assemelha. Da mesma forma que os Romanos nos colonizaram, também os portugueses, ao longo de séculos pisámos as areias de praias longínquas, em continentes envoltos ainda na nossa ignorância e em mitos de atemorizar crianças e adultos. Qualquer que seja o ponto da espiral da história, trilhamos caminhos que nos dão a sensação de «déjà vu», de um determinado instante já ter sucedido. Esta familiaridade aparente decorre de, como seres humanos, não sermos muito diferentes uns dos outros, nem no espaço nem no tempo. Neste contexto, podemos avaliar e opinar sobre as acções dos nossos antepassados – ainda que sempre restringidos pela subjectividade e muitas vezes sem um conhecimento directo. Perante isto, aplicar às personagens e trama de O Guerreiro Decapitado estratégias de análise que constituem o «state of the art» da crítica hodierna não constitui nenhuma ilegitimidade.

Logo nas primeiras páginas do romance, é registada a reacção que ocorre tipicamente numa primeira fase do contacto entre culturas diferentes. A convivência entre Romanos e Brácaros é enformada pela memória das atrocidades da conquista, pelo desdém mútuo, por preconceitos. Machado resume nestas palavras a precaridade dessa relação:

«Os chefes das gentilidades acordaram a paz, receosos de mais morte. E deixaram os Romanos sossegados na construção de uma nova cidade e na exploração das terras férteis do vale. Habituaram-se à sua presença tentando viver como até aí: em pequenos aglomerados de casas em granito no chão térreo e telhado de colmo, a pastorear as cabras e ovelhas pelas fragas. Falavam a sua língua, tinham as suas festas, os seus deuses. E os Romanos nem davam pela sua presença, excepto quando ambas as partes precisavam trocar produtos ou serviços. De resto, viviam de costas voltadas» (p. 10).

O narrador espelha aqui uma característica muito curiosa das invasões romanas: o relativo respeito que estes tinham pela cultura e modo de vida autóctones, tentando interferir apenas na medida em que a lei impunha e o estatuto de invasor concedia. O «modus vivendi» dos Brácaros, a um nível mais profundo não se transtorna, pelo que a miscigenação e o contágio cultural não são ainda demasiado evidentes. É curioso verificar que este fenómeno ainda hoje acontece, nos Estados Unidos da América. Tal nota-se sobretudo em cidades multiculturais, como Nova Iorque, que desde 1656 se tornou no ponto de chagada de inúmeros imigrantes que estabeleceram casarios ao longo do Rio Hudson. Actualmente, os descendentes de certas etnias e povos, bem como os recém-chegados, vivem em bairros independentes, como as «Little Italies» ou as «Chinatowns», por exemplo. Tal revela um sentido de comunidade muito forte, e também a exigência de se juntarem para assegurar a preservação dos seus costumes. Daí terem as escolas onde ensinam a língua de origem, paralelas ao ensino oficial, os jornais de bairro, as lojinhas de importação de produtos da terra-natal, etc. No entanto, todos os bairros comunicam entre si, por razões comerciais, sociais e por todos terem em comum o «hífen»: são italo-«hífen»-americanos, luso-«hífen»-americanos, afro-«hífen»-americanos, mexicanos-«hífen»-americanos, etc. Longe de ser um estigma, este é um traço que os une e possibilita a coesão do povo estado-unidense, para além do seu pluralismo cultural.

Todavia, o caso exposto em O Guerreiro Decapitado é um pouco diferente porque desconfiança mútua entre Romanos e autóctones não se desvaneceu com este viver arredio ao outro. Os Brácaros, e em particular a personagem Pentóvio, filho de um dos antigos chefes, torce o nariz aos invasores, à sua língua, deuses, à cidade recém-erguida de Brácara Augusta, e até à maneira de trajar – que isso de vestir saias não lhe parecia bem. Este fenómeno de recusa de assimilação é natural, sobretudo nos mais velhos, com menos tendência para a adaptação. Hodiernamente, a inflexibilidade continua a ser uma constante entre os imigrantes de primeira geração, aqueles que mais se recusam a transformar ou acomodar o seu «modus vivendi» ao da chamada comunidade dominante. A mudança, tecem-na os mais novos e é encarnada no livro por Bórnio, filho de Pentóvio, que se deixa fascinar pela civilização romana e se torna permeável à aculturação.

Erbuto, um Brácaro que labora numa Vila Romana, pertença de Lauro Énio Rufo, tenta aliciar Pentóvio a deixar que o filho Bórnio se lhe junte, porque «O futuro está cá em baixo [entre os Romanos] e não lá em cima, nos montes onde vos refugiais com medo do sol» (p. 18). Não é muito difícil incendiar a imaginação de alguém com a idade de Bórnio, para quem todos os desafios são aliciantes. O seu pai não concorda com a partida do único filho – o abandonar a comunidade afigurava-se-lhe como vergonhoso e prova disso é as críticas que tece a Erbuto por se ter deixado aculturar. Contudo, também ele nota com azedume que os tempo são de mudança:

«O amor à terra, aos antepassados, à tradição, aos familiares, à língua materna, quem o vivia? Qualquer dia começavam todos a falar latim. Até para se ir ao mercado trocar umas cabras já era preciso saber dizer umas frases e compreender outras tantas, se não se quisesse ser aldrabado. Mais uns anos e ninguém falaria o céltico» (p. 19).

Contudo, receoso de alimentar o ódio do filho e talvez também de lhe estar a tolher o futuro, acaba por concordar com a sua partida, depois de ter desabafado com o amigo Veroto e de ter escutado os conselhos da esposa, que pensava: «Os Romanos pareciam-lhe pessoas razoáveis, pelo menos agora, que se vivia em paz. As lutas terminaram há muito, os ódios iam morrendo com os velhos e a ignorância dos novos» (p. 24). Estas palavras são curiosas porque mostram a adaptabilidade, uma via com dois sentidos: o da assimilação, que surge quando a sociedade dominante, neste caso a Romana, aceita integrar a dominada; e a aculturação, quando a dominada, isto é a dos Brácaros, pactua e responde positivamente os valores do invasor. Da dialéctica entre estes dois processos resulta o integracionismo. Neste enquadramento, Âmia compreende uma verdade lapaliciana: tão diferentes são os Romanos para eles, como eles para os Romanos. Trata-se da aceitação eufórica dos chamados «eixos de diferença», isto é, dos traços culturais que distinguem um grupo de outro, mas não constituem ameaça para nenhum deles, e portanto não são susceptíveis de os dividir.

Bórnio passa, então, a laborar na Vila Rufina, uma propriedade situada no vale fértil, onde contactará com uma série de escravos e homens livres provenientes de todo o Império: o grego Plutino, que falava latim e «koinê», o germano Ramilo, os cântabros Uto, Adrono, Arcisa e Blendea, etc. Todos têm as suas histórias, deuses, língua e passado, de que só prescindem em presença dos Romanos, por necessidades que se prendem com o ofício que desempenham. Fora isso, entre si, continuam a seguir os costumes nativos, na medida do possível. Esta convivência numa comunidade multicultural alicia e atemoriza Bórnio, quando percebe que já não tem a protecção do seu grupo étnico, quando se torna apenas mais um entre outros, quando as suas diferenças se diluem nas diferenças dos outros. As saudades que sente do lar são inevitáveis, mas também distorcidas. Verdadeiramente, parece-me que Bórnio não estranha a falta da família, a qual raríssimas vezes visita ao longo da obra, mas sim da sua identidade. Trata-se de um fenómeno comum em qualquer grupo de emigrantes, facilmente constatável. Vale-lhe a orientação e o conselho daqueles que já estão integrados, neste caso de Erbuto que estabelece a ponte entre Bórnio e o senhor da casa, ou seja entre ambas as culturas.

O processo de integração de Bórnio não é simples, porque os preconceitos não escolhem nunca apenas uma facção para se enraizarem. O desdém que Pentóvio nutre em relação aos dominadores, também existe dos Romanos sobre os Brácaros. Por exemplo, Lauro Énio Rufo despreza os bárbaros, considera-os uma «gente traiçoeira e imprevisível» (p. 32), «demasiado estúpidos e selvagens» (p. 33). Escarnece da sua língua – a que chama «cacarejar» ou «gargarejo de povo submetido» (p. 33) –, dos nos hábitos de higiene («comportavam-se como recos no esterco»), etc. Nesta linha, chega mesmo a proibir o filho, Aurélio, de falar o céltico e os escravos de cantarem nesse idioma. Tal parece-me curioso porque precisamente uma das formas de aculturação compulsória, utilizada ao longo dos séculos, tem sido a interdição do uso da língua materna. Mesmo neste século, os invasores ingleses na Irlanda do Norte, reprimiam as crianças que falassem o gaélico, pendurando-lhes ao pescoço letreiros humilhantes. Sem ir mais longe no tempo, registe-se a celeuma que está a acontecer nos Estados Unidos a propósito do uso de outras línguas que não o inglês nas relações comercias, nas artes e na comunicação diária. Certas escolas não admitem mesmo outro idioma na sala de aula, mau grado os defensores dos direitos cívicos, que invocam a Constituição Norte-Americana, as liberdades e as garantias de preservação cultural. Mais ainda, subsiste o temor que as estatísticas lançaram ao anunciarem que no próximo século o espanhol será tão falado quanto a língua anglo-saxónica nos EUA. A título de curiosidade, registo que há poucos dias atrás, em Nova Iorque, tive de falar espanhol com dois transeuntes para conseguir informações acerca da localização de uma livraria.

Mas o «volt face» está para suceder. Da mesma forma como são os Brácaros mais jovens a tentar compreender a cultura alheia, também os Romanos Aurélio Rufino e em particular Lívia Rufina, filhos do senhor da casa, vão estabelecer laços de ligação com os autóctones. O primeiro, ao apaixonar-se por Oivesula, a segunda ao cair de amores por Bórnio. É precisamente esta paixão, shakespeariana na impossibilidade, camiliana na tragédia, que desencadeará as aventuras e desventuras de Bórnio. Numa manobra maligna para afastar a sua filha do Brácaro, o patriarca Lúcio este obriga o pretendente a alistar-se no exército romano, o que transformará radicalmente a sua vida. Mas disto nada revelarei, pois não quero retirar ao leitor o prazer de seguir o percurso de Bórnio, até à vingança final e ao seu regresso ao povoado de origem.

Apenas adianto que são páginas fascinantes e coloridas: por um lado, porque lançam questões prementes e incontornáveis sobre o encontro de culturas, muitas delas a merecerem uma meditação profunda; por outro, porque José Machado construiu, com base numa pesquisa aturada e muito responsável, personagens e maneiras de ser, lendas e mitos, cenários e hábitos, que primam pela exactidão histórica, o que se traduz na veracidade do enredo. Destaco as figuras do jovem Bórnio, o conservador e desconfiado Pentónio, a afectada matrona Valéria Lépida Severina ou o calculista e hipócrita Túlio Marculino, ou o procurador Cornélio Asínio Frontão como algumas das mais realistas. Nem todas serão muito modeladas, é certo, porque a obra vinga também pelo sentido de humor que, como é sabido, necessita de traços caricaturais. Porém, ganha-se nas descrições sempre coloridas e às vezes hilariantes, na naturalidade viva dos diálogos e na sua castiça autenticidade.

Por tudo isto, O Guerreiro Decapitado foi uma aposta feliz e corajosa do autor e da editora. Se o público o merece, só o tempo o provará. Se a crítica portuguesa – tradicionalmente pouco aberta a novos autores e não muito instruída – lhe dará a devida atenção, duvido. Mas que o esforço valeu por um retrato bem-humorado, sábio e repleto de detalhes que nos piscam o olho e caracterizam o «modus vivendi» dos Romanos e Brácaros, quanto a isso não tenho qualquer reserva. Parabéns, portanto, José Machado, por uma obra conseguida e convincente.

João de Mancelos, Maio de 1999

Sobre o mesmo livro, consultar o artigo Em busca das raízes profundas da alma lusa de Luiz Ruffato.

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