José Leon Machado

Recensões

O Guerreiro Decapitado
José Leon Machado
Porto, Campo das Letras, 1999 (romance)


Significantes e significados dum romance histórico

Introduzido pelo Romantismo, banido pelo Realismo e Naturalismo, sem atractivos para o Modernismo e escolas subsequentes, Presencismo, Neo-Realismo e Surrealismo, o romance histórico passou a ganhar algum interesse na última década, já um pouco antes, creio que como fruto de desencanto de muitos intelectuais e artistas perante as promessas de felicidade de uma revolução industrial que ganhou corpo no séc. XIX, em companhia da visão positivista das coisas e da vida, e se foi estendendo pelo século XX.

Um certo Pós-Modernismo deu o grito de alarme, excedendo-se por vezes na desconstrução crítica, mas apelando de qualquer modo para uma cultura mais humanizante, mais ligada às raízes das comunidades. Claro que as epistemologias e os paradigmas sucedem-se e a literatura não só lhes serve de ressonância como em muitos casos os desencadeia.

A ficção historicizante ter-se-á nesta perspectiva como um regresso ao paraíso, um alerta, um embevecimento que tem atrás de si um rosto nauseado. A actual mundialização dos domínios sócio-económicos e a pretensa mundialização de saberes e modos de vida incomoda os pensadores e os que se dedicam à representação da vida e à vida como representação.

O Guerreiro Decapitado, de José Leon Machado, é nesta onda que haverá de situar--se e interpretar-se. O autor, bracarense que é, agora a residir em Chaves, recorda os brácaros da Galécia romana, eles próprios resistentes a uma civilização que os colonizava, que os explorava, desdenhando da sua cultura, molestando-os nos seus princípios, apenas lhes aproveitando a força de trabalho e a capacidade de lutar, acabando por integrar muitos deles nas legiões do império. A história repete-se: então como agora a cultura, como modo de ser característico de ser, pensar, sentir e agir duma comunidade, é por esta considerada um bom inalienável, reagindo a todas as formas de agressão, mesmo a agressão do silêncio intencional, por banda de quem detém o poder político. Não só a colectividade no seu todo, mas também o indivíduo, enquanto agente cultural, devem ser respeitados, o que não acontecia e, hoje, muitas vezes não acontece. Ora no castro de Eleanóbriga, próximo de Braga, Pentóvio e Âmia, pais de Bórnio, herói do romance, conduzem-se, em consonância com a sua comunidade, como verdadeiros agentes culturais, função que o filho, apesar de inquieto e aventureiro, recebe como herança. O casal mantinha-se impermeável às novidades romanas, não se deixando "cativar por esse esplendor". "Não podendo desenraizar o modus vivendi celta das gentes adultas, a civilização romana era aos jovens que atraía". E Bórnio, ainda movo, foi de facto atraído.

A sua entrada na Vila Rufina é comparável ao termo da primeira viagem dos emigrantes de todos os tempos. Ao deslumbramento segue-se alguma desilusão, a nostalgia e a decisão de crispar os punhos e fazer pela vida. Ora acontece que os filhos dos patrões acabaram por se enamorar dos encantos duma terra virgem, reflectidos numa serrana, que aliás não primava pela beleza física – por parte de Aurélio, - e em Bórnio – por parte de Lívia, jovem atraente e inconformada. E é este o ponto mais alto e decisivo do romance, dele dependendo as sequências diegéticas que se processam numa linguagem chã, talvez para fazer avultar o assunto, e no encadeamento narrativo, para que o mesmo assunto não experimente desvios distractivos.

Uma história literariamente válida é sempre marcada por uma relação de oposição e esta consubstancia-se aqui nos donos de Vila Rufina e no Perfeito da cidade bem apoiados por alta autoridade tarraconense. É a velha e perpétua história do poder contra os direitos naturais. Dois puros sangues romanos não podiam juntar as suas vidas a labregos "incultos". Se Aurélio e Lívia conhecessem o Prometeu Agrinhoado de Ésquilo, bem poderiam recitar, pensar ao menos, a fala de Hefesto ao Poder: "Sempre foste cruel e insolente" – um "poder" que, ontem como agora, injecta na comunicação social estirpes de micróbios corrosivos. Lauro Rufo é homem influente e consegue prevenir o futuro a seu contento, afastando Bórnio da filha, para o que, sendo praticamente obrigado a alistar-se numa coorte, impede o namoro, na pior das hipóteses por vinte anos, o tempo que o brácaro andaria por longe. Mas Bórnio não só não morreu como progrediu na carreira militar, chegando a tribuno. E nunca se esqueceu da sua origem, tendo-a revelado com orgulho, quando o trataram por lusitano. Então a sua consciência raiou-se de lume vivo:

"Os lusitanos vivem a sul do rio Durius e, se bem que a língua seja idêntica, os costumes e as origens são muito diferentes."

Bórnio é um brácaro-galaico dos quatro costados que se preza da sua ascendência céltica e do seu modo de ser, sentindo-se, isso sim, irmanado com as comunidades a norte do Douro. Regressado a Braga, após o serviço militar, acabará por casar-se com uma mulher da sua etnia e assumir a direcção do castro e da sua gens, cuja reconstrução empreendeu, mau grado a oposição da dupla perfeito e procurador da cidade. Mas antes teve de passar a fase mais agitada da sua vida. Lívia , que nunca deixou de o amar, estava casada com o procurador romano, mas tudo fez para se encontrar com Bórnio de quem veio a engravidar. O marido oficial, já os sogros tinham morrido, alia-se ao perfeito, e entre homenagens a Bórnio, vão congeminando o meio de o afastar para longe. Como não aceita nova incorporação militar, é Lívia forçada a ir para Roma, apesar do seu estado e por causa dele. Bórnio não sabe o lugar de destino; ainda persegue os fugitivos, mas tudo lhe sai inútil.

Profundamente significativo é o que se passa com Lívia na capital do Império e um boato posto a circular em Braga. Lívia decide apresentar queixa no palácio do imperador, que todavia "andava demasiado ocupado a comemorar em bebedeiras a sua subida ao poder", e acaba por se resignar. O boato da possível morte de Lívia e afrontado marido, reforçado por umas cerimónias fúnebres mandadas celebrar pelo prefeito, tem sem dúvida a marca deste e do procurador para desencorajar Bórnio definitivamente. E aí está uma significação corrosiva desta obra: cruel e insolente é o poder, enquanto esmaga os direitos de quem se lhe opõe. Na hierarquia da governação é de salientar ainda que os mandantes regionais ou locais podem levar a opressão ao requinte de artimanhas com o fim de denegrir ou silenciar os legítimos adversários ou simplesmente quem pelos seus méritos os ensombre.

Assim, O Guerreiro Decapitado, logo a começar pelo título, tem um valor simbológico que é simultaneamente um aviso, uma acusação e uma expressão gritante de apelo ao reconhecimento dos direitos individuais e culturais. Poder desprovido de legitimação ética é, como se lê em Ésquilo, "cruel e insolente". Tem muito que se lhe diga este romance que na sua lhaneza pouco se importa com os formalismos de uma certa literatura em voga, injustamente festejada em supostas representações nacionais.

António Cabral, Junho de 2000

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