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Crónicas


António Mendes Moreira – As Minhas Charlas



Capítulo III

I - Se tivesse optado pelo política, consoante me solicitaram várias vezes, estou convencido de que teria sido um dos seus membros com razoável aceitação. E porquê? Por ter vindo do povo, com ele ter procurado comungar sempre na vida clínica e ainda por me encontrar tão enraizado a este chão como qualquer dos carvalhos do meu jardim.

II - Dizia um filósofo alemão que o sofrimento não mata e torna os homens mais fortes.

Creio que isso sucedeu comigo, conforme já puderam verificar através da minha dezena e meia de livros.

Ora, talvez por isso, quando vejo um idoso lamentar, censurar ou até contundir o passado, logo sinto a tentação de descrever os passos mais dolorosos do meu ontem. Assim: não conheci o aconchego dos avós; vi meus pais, três irmãos e até um filho morrerem precocemente; aos oito anos de idade, fui obrigado a percorrer a pé, diariamente, uma dezena de quilómetros para frequentar, no meio da maior severidade, o último trimestre da 4ª classe num colégio de Penafiel; tive de permanecer internado na Escola Académica do Porto desde os 9 aos 17 anos; vivi encafuado num quarto escuro durante todo o curso universitário; suportei mais de um ano de serviço militar com a sexta vértebra dorsal fracturada; vi-me coagido a aguentar dezena e meia de anos de uma lide clínica de 24 horas diárias com crises dolorosas e atrozes no tórax por via das sequelas da fractura; para alinhavar os meus escritos fui forçado durante anos a fugir de casa; vivenciei múltiplas canseiras e incompreensões para lutar pela prevenção e promoção da saúde na minha terra e no Vale do Sousa; fui deserdado e o património paterno, que tanto amei, encontra-se quase todo retalhado e vendido.

III - Eça de Queirós afirmou que reconstruir é criar. E reescrever não será refinar a criatividade? Pois foi o que aconteceu com quase todos os meus livros, obrigados a ficarem inicialmente mal amanhados por falta de tempo e sofreguidão da pena. E porquê continuá-los através das minhas charlas, afinal de contas cheias de monólogos e diálogos, nos jornais desta minha terra? Por só raramente esses volumes terem conhecido leitores bastantes e os meus recursos estarem exaustos. Mas, ao fim e ao cabo, com tantas obras publicadas, todas dentro ou à volta do microcosmo vale-sousense, ainda terei algo para dizer? E se no proscénio da vida muita coisa se vai repetindo, embora com mímicas, falas e vestes variadas?

IV - Não há nada mais feio do que uma velha desdentada e desgrenhada nem nada mais repelente do que um ser que rasteja.

V - Certo vulto das artes e letras afirmou que a literatura é feita de nostalgia. Mais: tudo é escrito para contar algo que se passou dentro dos parâmetros em que o autor foi educado.

Não será isso o que me vai cabendo?

António Mendes Moreira, Paredes, 1998

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