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Ensaios


A Literatura Trágico-Marítima e a Literatura Contemporânea

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu
[F. Pessoa]

1. Novos caminhos de recepção da herança trágico-marítima

A literatura portuguesa do séc.XX também não ficou imune à influência dos relatos da compilação de B.Gomes de Brito, quer quando, numa perspectiva intertextual mais manifesta, convoca esses relatos, com destaque para a tragédia de Sepúlveda; quer ainda quando, dum modo mais implícito, explora reflexões ideológicas centradas nos custos humanos e materiais do movimento expansionista português, ou transpõe, adapta e reinterpreta a ideia de naufrágio da Nação, herdada sobretudo da Geração de 70, como vimos. Concretizando um pouco mais este ponto de vista, talvez se possam enumerar três grandes tendências ao nível da recepção da literatura trágico-marítima ao longo da literatura e cultura modernas e contemporâneas:

1ª) Uma perspectiva apologética e patriótica, que procurou engrandecer o nosso passado histórico, com destaque para o período áureo das Descobertas quinhentistas. Neste enquadramento saudosista, os relatos de naufrágios eram lidos como provas supremas de amor à Pátria e os náufragos eram vistos como heróis e mártires, enfim, figuras veneráveis duma política expansionista que procurou engrandecer o Império português e expandir a Fé cristã. Esta recepção da literatura trágico-marítima foi favorecida desde logo pelo ideário mo movimento do Integralismo Lusitano e continuada, sobretudo nas décadas de 40-60, pela ideologia do Estado Novo, de Oliveira Salazar1. Os serviços de propaganda do regime habilmente divulgavam uma imagem místico-nacionalista de Portugal e da sua História.

2ª) Uma perspectiva parodística e anti-estereotípica do nosso passado histórico, reagindo assim contra os excessos da propaganda oficial e contornando a vigilância da censura imposta. Esta tendência é mais ou menos contemporânea da anterior, embora se acentue mais nas décadas de 60-70. Numa palavra, a intenção que presidia era a de desmistificar certa ideia heróica da nossa História do Portugal fascista e pindérico, como diziam, por exemplo, os poetas iconoclastas do Surrealismo2. Assim, evocar as imagens naufrágios, da cupidez e rapina dos portugueses no Oriente, da nossa pelintrice cultural – era uma forma satírica de esvaziar um patrioteirismo provinciano e um modo rebelde de contrariar o proclamado esplendor de Portugal.

3ª) Uma perspectiva de re-escrita ficcional da história, num atitude que ora usa um registo irónico, ora lança mão de uma atitude mais séria e reflexiva. O que aproxima as várias referências e re-interpretações da História Trágico-Marítima na literatura mais recente, sobretudo a partir de meados da década de 70, parece-me ser a uma postura de auto-gnose, de natureza quase psicanalítica: depois do corte revolucionário com um Portugal fascista e colonial, imponha-se uma re-avaliação do nosso percurso histórico, com vista à reflexão sobre a nossa identidade presente, por sua vez determinante para traçarmos um rumo para uma nova concepção de Portugal. Sobre as ruínas do império ultramarino, a pouco e pouco desmembrado e independente da metrópole colonialista, e com os olhos postos no futuro próximo, impõe-se fazer o balanço e delinear caminhos e ideias novas.

Como achega mais ou menos lateral, adiante-se que um dos primeiros críticos e historiadores da literatura portuguesa a reconhecer a importância literária da literatura trágico-marítima é Fidelino de Figueiredo, autor que ressalta o facto de, em 1904-7, ter ocorrido uma reedição (aumentada) dos relatos de naufrágios da história trágico-marítima, por Melo de Azevedo 3.

Mais importante ainda é dizer-se que cabe à crítica e historiografia literária moderna e contemporânea a definitiva revalorização do "corpus" de relatos quinhentistas que constituem um apartado peculiar no contexto da literatura de viagens. Essa redescoberta manifesta-se não só nas múltiplas edições modernas que se fizeram da História Trágico-Marítima (cf. Bibliografia), mas também no considerável número de estudos críticos que vêm sendo dedicados a este tema, com maior destaque para os últimos anos.

Apreciemos alguns exemplos da multiforme recepção literária na literatura de deste século.

2. J. Cortesão, A. Casimiro, M. Beirão e A. Sardinha: saudade do naufrágio

No princípio da segunda década do séc.XX, sob a presença tutelar de Teixeira de Pascoaes, a revista Águia, instrumento da saudosista Renascença Portuguesa, publicava um texto assinado por Jaime Cortesão (1884-1960), intitulado "Náufragos Portugueses...". Este breve texto explora a ideia de que a Morte está inscrita na nossa História multissecular, está espelhada nos olhos de cada português, como é expresso logo no início: "Procurai bem nos olhos dum português: todos no fundo têm a Morte. É que durante muitos séculos convivemos com ela e vimo-la na sua mais triste e trágica figura – a dos naufrágios" 4.

Para ilustração, o autor convoca a presença de alguns náufragos exemplares, ou, como lhes prefere chamar, as "figuras trágicas dos nossos sublimes enamorados da Morte": Antero de Quental, Soares dos Reis e António Nobre. Não referindo nunca o nome de Miguel de Unamuno, é a sua tese de que somos um país suicida que Jaime Cortesão aqui perfilha.

Como era de esperar, o articulista e ilustre historiador explora as implicações psico-ideológicas do naufrágio na história pátria, não deixando de exemplificar com passagens dramáticas de "hórridos naufrágios" (como o Naufrágio de Sepúlveda), na exploração do "indómito Mar":

"Nos olhos dos Portuguese lê-se a história da nossa Terra: têm olhar de naufrágios: epopeia e morte. / (...) E que sublimes figuras não há nessa história: Leonor Sepúlveda, Manuel de Mesquita e António Sobrinho, Francisco Barreto, Fernão Ximenes, o filho de Beatriz Álvares e outros, cujos nomes são desconhecidos. / Leonor Sepúlveda representa a vitória do Pudor sobre a Morte" 5.

À luz da ideologia veiculada pela Águia, não estranha que encontremos, por ex., um texto poético em que Portugal é comparado a uma Nau errante nos mares tempestuosos. É o caso do soneto intitulado "O Poeta e a Nau", de Augusto Casimiro (1889-1967)– primeiro, descreve-se o cenário: "Vai errante, no Mar, uma nau sem governo"; depois, evoca-se saudosisticamente o tempo pretérito: "Um marujo, a cantar, fala do Além, e exalta/ Um passado esplendor sobre a nau sepulcral!..."; por fim, a identificação prenunciada: "– O marujo é o Poeta – e a nau... Portugal!" 6.

Aos citados autores, acrescentemos mais dois. Mário Beirão (1892-1965), também ele ligado ideologica e esteticamente ao Saudosismo integralista. Numa obra poética intitulada O Último Lusíada (de 1914), encontramos algumas páginas onde o poeta ora se imagina um marinheiro a bordo duma embarcação em alto mar, enebriado de entusiasmo – "Aspiro o olor do Mar que embriaga tudo"7, no poema "Génio do Mar"; ora, evocando o cenário da tempestade marítima, com referências intertextuais explíticas à Nau Catrineta e a Camões, exclama num estilo empolgado:

"Já pelo iroso Mar de inflada juba,

Doidas, as naus Catrinetas erram;

Já as enxárcias rangem, desemperram,

E o Vento ergue mais a sua tuba!

Relâmpagos... Oh Céus! reboando estalam

E, aos dobres, quebram os trovões!... Oh frota,

Sou onda, vê, embalo-te a derrota,

E vê que nem as mães assim embalam!

Oh naufrágios! Oh ecos pela frágua!

Ondas, quais águias, dando a volta ao mundo!

Mar declamando oitavas, alto e fundo!

Lusíadas – poema feito em água!" 8.

Sem referências expressas à literatura trágico-marítima, mais uma vez, assim se faz o enaltecimento patriótico da heroicidade dos navegadores portugueses, que, arrojados e destemidos, ousaram desbravar o temido oceano, enfrentando perigos e naufrágios.

Outro nome consagrado do saudosismo integralista foi António Sardinha (1888-1925). Mais conhecido como doutrinador político e ideólogo, o criador da revista Nação Portuguesa ou da obra poética Pequena Casa Lusitana, António Sardinha deixou-nos uma página curiosa sobre a projecção e encerramento da História Trágico-Marítima .

Com efeito, num escrito intitulado "O que esqueceu a Adamastor", António Sardinha cita Afonso Lopes Vieira para dizer que a morte de um herói dos tempos modernos (o aviador Sacadura Cabral) é, nada mais nada menos, que a página que faltava à História Trágico-Marítima: "Entre o mar e o céu... Desaparece o herói na sua forma humana imediata, para ressuscitar, ampliado e universal, nas linhas transfiguradoras do mito. Se na palavra de Afonso Lopes Vieira, a travessia aérea do Atlântico é o Canto-Undécimo dos Lusíadas, a morte de Sacadura Cabral é um capítulo inesperado e inédito da História Trágico-Marítima" 9.

Como se pode inferir por este breve excerto, para a ideologia conservadora do Integralismo lusitano, perfilhada por António Sardinha, no seu rol de presságios negros, o Adamastor camoniano esquecera-se de nomear "este último naufrágio". A morte de Sacadura Cabral, herói contemporâneo, mais navegante aéreo (Ícaro) que navegante marítimo, constitui o "epílogo inesperado e comparável" da História Trágico-Marítima.

3. Fernando Pessoa e a celebração do Mar Salgado

Resgatando o nosso sub-consciente colectivo (nas certeiras palavras de Eduardo Lourenço), com o celebrado poema "Mar Português" da Mensagem, Fernando Pessoa (1888-1935) sintetizou admiravelmente esse outro-lado-da-moeda do heroísmo épico dos navegantes portugueses, quando escreveu:

"Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu" 10.

Declarar numa metáfora, de natureza hiperbólica e quase etiológica, que o sal do mar se deve ao choro dos portugueses, é concerteza uma maneira sublime de imortalizar a componente dolorosa e trágica da heroicidade das Descobertas quinhentistas. Aliás, é a consciência dos custos das Descobertas, sobretudo humanos, que parece ter inspirado também esses não menos citados versos pessoanos, no mesmo poema: "Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor". Aqui, como vemos, o mesmo sentimento é expresso duma forma lapidar e quase aforismática. Já antes, noutros poemas do "Mar Português", F.Pessoa destacara a figura predestinada do Infante D.Henrique ("Deus quere, o homem sonha, a obra nasce", assim começa o poema); e, num eco intertextual com o episódio camoniano do Adamastor, dramatizara o encontro das naus portuguesas de D.João II com o temível Mostrengo numa "noite de breu"11.

Depois da aventura na Índia, escreveu Pessoa que ficámos desempregados para o resto da História. Para o super-Camões, depois da partida da última nau, levando a esperança chamada D.Sebastião, sobreveio a noite, como lemos no poema "Prece": "Senhor, a noite veio e a alma é vil,/ Tanta foi a tormenta e a vontade!/ Restam-nos hoje, no silêncio hostil,/ O mar universal e a saudade.12". No entanto, resta o sentimento de tarefa cumprida e a esperança messiânica e sebástica: cumpriu-se o Marfalta cumprir-se Portugal.

4. A.Correia de Oliveira, António de Sousa e A. Lopes Vieira : outros naufrágios

De um outro poeta coevo dos anteriores, António Correia de Oliveira (1879-1960), cabe referir também, neste contexto panorâmico do intertexto trágico-marítimo, um soneto que dá pelo título de "História Trágico-Marítima" 13, onde, evocando a figura do monstro camoniano, se fala da perdição das naus portuguesas:

"Lá vai a Nau das Índias, à ventura...

A voz do Adamastor, como um trovão,

Ao Juízo-Final da Perdição

Invoca o negro Abismo e a negra Altura.

E surge, dum e de outra, horrenda e escura,

– Viva, outra vez! – a imensa legião

Dos Naufrágios que foram, e serão,

Rompendo o espaço, o tempo e a sepultura...".

Próximo do ideário do Presencismo e herdeiro ainda da lírica saudosista dum António Nobre, também a escrita do poeta açoreano António de Sousa (1898-1981) se deixou influenciar por um imaginário marítimo e do naufrágio: referimo-nos, em particular, à obra intitulada O Náufrago Perfeito, onde se pode ler, entre outras alusões a uma metafórica trágico-marítima 14, o soneto "Ninguém"– "Um fim-de-raça foi o meu começo:/ e, sem naufrágios, pelo mar coalhado/ destes dias que vivo e não mereço,/ o meu futuro é feito de passado".

Do mesmo autor, mencione-se ainda um outro livro – Livro de Bordo –, onde o poeta se auto-define como "Marinheiro dum céu que me perdera"; no mar da existência, o Vento é responsável pelo drama do poeta: "Oh meu êxtase de imagens!/ Naufrágios de alma! Destroços!/ Abismos! Vagas miragens"; não faltam sequer referências ao "Mar das Tormentas", ao Gama e ao Adamastor camoneanos, bem como ao luto e ao "fumo das conquistas" 15.

Outros poetas contemporâneos também denotam uma influência mais ou menos directa deste género particular de literatura de viagens mal-sucedidas. Tal nos parece ser o caso, v.g., de Afonso Lopes Vieira (1878-1964), que, em "Saudades Trágico-Marítimas" 16, um poema relativamente longo, entrecortado por um refrão – "Chora no ritmo do meu sangue o Mar" –, se inspira nestes relatos de catástrofes, num sentido lamento personalizado e exemplificado com um naufrágio:

"Naufraguei cem vezes já...

Uma, foi na nau de San Bento;

e vi morrer, no trágico tormento,

dona Lianor de Sá:

via-a nua, na praia áspera e feia,

com os olhos implorando

– olhos de espôsa e mãe –

e vi-a, seus cabelos desatando,

cavar a cova e enterrar-se na areia.

E sòzinho me fui p'la praia além...".

5. Miguel Torga e a recriação da História Trágico-Marítima

Não muito longe do tom pessoano se encontra uma orgânica sequência de composições poéticas de Miguel Torga (1907-1995), recolhidas em Poemas Ibéricos 17, que, num tom épico, mas dorido, evoca as várias etapas da nossa aventura marítima: primeiro, no poema "Sagres", o apelo (ou "cósmico segredo") da partida para a descoberta de um novo mundo. Do apelo à "Largada" (segundo texto) para o "grande sonho" vai um passo, como diz o poeta: "Foram então as ânsias e os pinhais/ Transformados em frágeis caravelas", à mistura com "abraços repetidos" dum "Pátria-Mãe-Viúva que ficava/ Na areia fria aos gritos e aos gemidos/ Pela morte dos filhos que beijava".

Nesta encenação dramática, segue-se a angústia maternal d'"A Espera" (terceiro poema) da "caravela [que] não voltou". Enquanto o quarto texto poético, O Regresso, esconjura a volta da Nau Catrineta, o texto seguinte – "O Achado" – celebra a chegada da notícia duma "nova terra", antes ainda do "fim da aventura que se avizinha". É então que se recorda também a "perdição" das caravelas na "Tormenta" (sexto poema), no meio de noites medonhas, Sereias Negras e mares tenebrosos. Não existem referências intertextuais explícitas à literatura trágico-marítima, mas encontram-se alusões várias disseminadas pelo texto. Termina esta sucessão de poemas com um canto lamentoso apostrofando o Mar (sétimo e último texto):

"Mar!

Engenhosa sereia rouca e triste!

Foste tu quem nos veio namorar,

E foste tu depois que nos traíste!

Mar!

E quando terá fim o sofrimento!

E quando deixará de nos tentar

O teu encantamento!".

Acrescente-se, por fim, que esta sequência de sete textos poéticos de M.Torga se intitula precisamente História Trágico-Marítima, título que reforça ainda mais o inegável vínculo intertextual.

6. Teixeira de Pascoaes e a tragédia infindável

Pensador da cultura portuguesa, mais do que analista erudito, Teixeira de Pascoaes (1877-1952) sustenta, logo no início de Poetas Lusíadas, que a "História de Portugal é uma tragédia de oito séculos que não findou ainda...". Para o demonstrar, o autor d'Arte de Ser Português exemplifica, primeiro, com as constantes guerras dos portugueses, desde a formação da nacionalidade, contra Castela e contra os Mouros; em seguida, com a tragédia causada pela embriaguez heróica das Descobertas:

"Depois, durante as Descobertas e o antigo comércio com a Índia, África e Brasil, a História de Portugal é uma série de naufrágios, de que nos resta um monumento genial e anónimo: A História Trágico-Marítima. Os nossos desastres no mar tenebroso aparecem narrados, nas suas páginas, numa linguagem esquiliana, violenta e simples, em baixos relevos de abismo e altos relevos de espumas, gritos e relâmpagos... É o estilo da tragédia, directo e vivo, sem artifícios ou intencionalismos literários que ofendem a seriedade da alma" 18.

Para Pascoaes, singular poeta e filósofo, é na sucessão de grandezas e misérias, de sonhos e de ilusões, que reside a tragédia infindável do nosso devir como povo; enfim, como acrescenta, uma tragédia "escrita pela Loucura e pelo Fado".

Aliás, é interessante a presenta da metáfora do naufrágio na escrita poética de Teixeira de Pascoaes. Numa interpretação simbólico-antropológica, de fundo inegavelmente religioso, a fragilidade do ser humano manifesta-se na vertigem da queda. Contudo, o homem procura contrariar essa atracção do ser para o abismo, reagindo com todas as suas forças e lutando como um náufrago no mar da existência. Ao movimento da queda humana, sucede assim o esforço da redenção do "náufrago nos turbilhões do tempo"19.

7. Manuel da Fonseca, Jorge de Sena e José Carlos Gonzalez: novos naufrágios

De outro contemporâneo, Manuel da Fonseca (1911-1993), ocorre-nos citar um poema que dá pelo título "Noite", inserto em Poemas Completos. Sem particularizar nenhum relato trágico-marítimo, o poeta opta por se condoer diante dos múltiplos naufrágios ocorridos no mar:

"Milhões de barcos perdidos no mar!

Perdidos na noite!! As velas rasgando de todos os ventos.

Os lemes sem tino

vogando ao acaso

roçando no fundo

subindo a vaga

tocando as rochas!

E quantos e quantos naufragando...

Quem vem acender faróis na costa do mar bravo?!

Quem?!" 20.

Jorge de Sena, poeta contemporâneo, professor, investigador e ilustre camonista, (1919-1978), além de recriar poeticamente o naufrágio do Poeta e a sua chegada à Ilha de Moçambique, não deixa de a relacionar com o Naufrágio de Sepúlveda: "Como nau nos baixios que aos Sepúlvedas/ deram no amor corte primeiro a vida,/ aqui ficou sem nada senão versos" 21.

Por sua vez, sem citar ou fazer alguma referência explícita à literatura trágico-marítima, a obra poética intitulada Naufrágio, de José Carlos González (n. em 1937), pode ser tomada como exemplo de uma tendência moderna da literatura portuguesa que explora o tema de naufrágio interior, como metáfora disfórica de perda ou dispersão: "Naufrágio certo de toda a minha vida,/ na minha dor a solidão se instala"; noutro passo, o sujeito poético chega a comparar-se a um barco desgovernado, o Medusa 22.

8. Francisco da Cunha Leão e o Naufrágio de Goa

Por sua vez, Francisco da Cunha Leão (1907-1974), pensador que se distinguiu numa escrita ensaística sobre a identidade de Portugal, sua antropologia e psicologia, como O Enigma Português ou O Ideal Português e o Homem, é autor ainda de um texto poético intitulada Naufrágio de Goa, publicado no início da década de 60. Em 1973, integrado profissionalmente no Ministério do Ultramar, Cunha Leão desempanhava as funções de agente-geral do Ultramar. Integrou ainda o movimento da Filosofia Portuguesa e participou no colóquio sobre o Ideal Português (em 1962).

O facto histórico que parece estar na génese desta obra poética (Naufrágio de Goa), foi o facto de a União Indiana ter invadido e conquistado, em meados de Dezembro de 1961, os territórios ultramarinos de Goa, Damão e Diu. Recorde-se que, depois de um longo processo de autonomização, a Grã-Bretanha tinha concedido, em 1947, a independência à União Indiana. Contrariando a política oficial portuguesa, que insista na manutenção das nossas "províncias ultramarinas", mau grado as advertências oriundas sobretudo de países e instituições estrangeiras, a independência de Goa representa, histórica e simbolicamente, o doloroso princípio do fim do império colonial português.

Na escrita poética de Cunha Leão, é recorrente metáfora de naufrágio, aqui com evidentes conotações político-ideológicas: era apenas o princípio do inglório naufrágio de todo o Império Português. Em jeito de reflexão ideológico-cultural, num poema intitulado "Índia Portugal, Índia Mar", evocam-se os mártires das descobertas orientais, classificando-os como "A pedras da Epopeia e do fervor em Cristo" – mas tudo em vão:

"Filha dos galeões a pique. O mar abriu-se

E retomou-a em seu abraço verde.

Que imperioso fado manda reviver

A Trágico-Marítima?

A vingança do Oceano retomou-a.

Domingo dezassete de Dezembro

Dá-se o naufrágio de Goa" 23.

Curiosa esta referência ao trágico destino (imperioso fado) que marcaria negativamente a nossa história: o naufrágio de Goa era, deste modo, mais um desastre a juntar à nossa já longa história trágico-marítima.

9. Manuel Alegre e Ruy Belo: a pátria perdida

Finalmente, também na poesia de Manuel Alegre (n. em 1936), perpassada por uma nostalgia da epopeia (segundo Eduardo Lourenço), sobressai a metáfora de uma pátria perdida – a nação "perdeu-se em velhos navios" e o poeta solidariza-se com esse sentimento de perda: "Já com o meu povo algumas vezes naufraguei" 24.

Cantando as conquistas e as lágrimas, o Cabo das Tormentas e o da Esperança (futura), o poeta celebra sobretudo o sangue e as lágrimas de um país marinheiro, de um português errante, movido pelo destino para um mar cigano, um mar de enganos, um mar de danos e tormentas. Foi este mar que atraiu Gaspar Corte Real para terras americanas, não se sabendo depois mais notícias suas. O mesmo mar levou o irmão, Miguel Corte Real, a ir procurá-lo em vão, sumindo-se também o seu rasto. Portugal é, afinal, numa indisfarçável imagética pessoana, a pátria de sal, que continua a sonhar com um mar profético, de contornos sebásticos, uma Atlântida apenas pressentida, mas fundamente desejada: "Ainda há naus e viagens algures em nós/ Ainda há mar/ Ainda há naus para chegar ao outro lado/ Lá onde só se espera/ O inesperado" 25.

Uma leitura pessimista e decadentista parece ter sido o registo escolhido por Ruy Belo (1933-1978), em "Pequena História Trágico-Terrestre", um longo poema que se inicia com os seguintes versos, onde as alusões ao passado das Descobertas têm como contraponto um presente de miséria que não esconde uma "gramática da dor":

"Há nuvens nas vésperas vizinhas da velada noite

e telhas vãs também nas testas de altivos homens

Miudamente observo a natureza

desculpa tens razão navegador eu reconheço

a majestade da grande natureza

embora não consiga interessar-me muito

a gente como tu que povoou a história" 26.

Portugal é hoje um país perdido, "um país retrógrado e agrário", que se esqueceu da epopeia de outrora e já não sonha em "sondar o insondável Oceano"; é um cais abandonado donde já não partem navios. Retomando sobretudo a herança reflexiva dos Vencidos da Vida e de poetas finisseculares, como A. Nobre, Cesário ou na senda de F. Pessoa, Ruy Belo pensa poeticamente Portugal como país provinciano, falhado e defunto, depois do antepassado navegador:

"Viver é que é difícil tudo o mais é fácil

Epopeia de um povo e epitáfio

era o poema para o despedido antero

e o herculano reformado pensaria o mesmo

Em vez de renegar a nacionalidade não será melhor

sondar o insondável oceano que separa

homens privados da sua condição de portugueses

(...)

Porco adormecido do eça não será a pátria?

Mas a terra é pequena e não é grande a gente

Desde o tormento metafísico de antero

até ao dies irae destes dias

em que mãos desabrocha algum possível portugal?

A mesma gente sonolenta interminável passa

junto do pétreo rosto triste de camões

Vencidos pela vida vence-nos a morte

conspurca-nos o nome português" 27.

10. Sophia Andresen e Natália Correia: naufrágio do Navio-Nação

À semelhança de outros poetas antes apresentados, também na escrita poética de Sophia de Mello Breyner Andresen (n. em 1919), não encontramos uma recorrência saliente ao intertexto trágico-marítimo. Porém, numa poesia em que o apelo a uma metafórica e imagética da Água e dos Mares é tão saliente, não nos deve surpreender a exploração poética da temática da tempestade/naufrágio.

Assim, por exemplo, num poema intitulado "Navio Naufragado": "Vinha dum mundo / Sonoro, nítido e denso./ E agora o mar o guarda no seu fundo / Silencioso e suspenso" 28 – deste modo se inicia o texto, que, em seguida, nos retrata a mágica transformação operada pela profundidade dos mares nos corpos dos naufragados29.

Por conseguinte, não especificando referências histórico-culturais aos navios naufragados, mas apelando mesmo para um certo imaginário sobre histórias de naufrágios, o texto de Sophia é uma espécie de nostálgico epicédio, ao evocar a memória colectiva dos navios naufragados.

Já na escrita poética de Natália Correia (1923-1993), sobretudo em Cântico do País Emerso (de 1961) deparamos, não propriamente com a temática do naufrágio, mas com uma re-interpretação mítico-simbólica da imagem pessoana de Portugal como Navio-Nação:

"Enquanto que o Navio-Nação partia

Do Cais anterior Cais Poesia

Rosa de místico continente

Aberta em tua geografia,

Fernando Pessoa, cais evanescente

Praça pública onde batia

O coração de toda a gente

Celtas fenícios árabes e godos

Romanos cartagineses gregos e todos

Que vieram passar aqui o Verão

E como o clima é excelente

Tomaram a britânica decisão

De passar o resto da velhice

Nesta praia do Ocidente" 30.

O escritor da nova Odisseia, F.Pessoa, é para esta poetisa contemporânea um símbolo, tal como o capitão Henrique Galvão que ousa desafiar o regime de Salazar, a "pátria agrilhoada", com o seu paquete "Santa Maria". Ontem, naus corajosas enfrentaram o mar desconhecido e descobriram as Índias; hoje, um navio moderno é usado como forma de protesto, a fim de reinventar a Liberdade perdida.

11. Almeida Faria e a redescoberta da Lusitânia

Da poesia, passemos à prosa contemporânea. A mesma influência da literatura trágico-marítima é notória, por ex., na narrativa fantástica de coevos, como Ruben A. (Leitão), em cuja Torre de Barbela encontramos referências aos relatos trágico-marítimos, no contexto mais amplo da ideia de decadência e de desmistificação de um passado heróico 31.

Almeida Faria (n. em 1943) é também autor de uma singular obra ficcional. Publicada em 1980 e dedicada a Eduardo Lourenço, Lusitânia é uma narrativa epistolográfica que completa a trilogia composta por A Paixão (1965) e Cortes (1978), e em cujo título ainda se ouvem ecos palimpsésticos d'Os Lusíadas e se desenvolve à sombra tutelar duma epígrafe constituída pelo explicit queirosiano d'O Crime do Padre Amaro (1880): "– pátria para sempre passada, memória quase perdida" [ver antes Cap.2 § 7]. Aliás, não nos podemos esquecer dos nexos simbólicos que imediatamente se estabelecem, se recordarmos os sentimentos finisseculares e republicanos que dinamizaram as celebrações do III Centenário da Morte de Camões (e, já agora, também da perda da nossa independência). Como se vê, são elementos mais que suficientes para um grande investimento ideológico-semântico.

As personagens de Lusitânia pertencem ao tempo da negativa epopeia, de que fala uma personagem em Cavaleiro Andante. Do passado das Descobertas, resta o sentimento de desmoronamento e de ruína, à espera de uma ressurreição messiânica ou dum esforço sobre-humano. De momento, constata-se apenas que se cumpriram os fatídicos avisos do Velho do Restelo camoniano, como se pode ver nesta interessante recriação intertextual, quando uma personagem fala das "arcaicas barcaças" que fazem a travessia do Tejo:

"São o que nos resta das descobertas e viagens, do apregoado império e seus naufrágios, dos sublimes sucessos, dos desastres em má hora anunciados por um velho de venerando aspecto, que ficara entre as gentes no cais, postos em nós os olhos, meneando três vezes a cabeça, descontente, a voz pesada um pouco alevantando, que nós no rio ouvimos claramente" 32.

Sem convocar intertextualmente a Literatura Trágico-Marítima, Lusitânia narra-nos uma história no período revolucionário que se seguiu a Abril de 1974, onde um grupo de pessoas em cujas cartas acaba por transparecer a preocupação de re-pensar Portugal e o seu passado. Estas personagens que partem à descoberta do seu destino e do destino da sua pátria afiguram-se-nos como uma espécie de náufragos da história. O destino agora já não é marítimo, é terrestre – desfeitos os sonhos e traumatizados da "ressaca imperial", e ainda na efervercência revolucionária dos tempos que se seguiram à dissolução do regime fascista, a tarefa que se impõe é a de regressar à Ítaca natal, para concretizar o projecto de uma nova vida, numa nova casa nacional. A imagem recorrente que nos traça, é a de um país decadente, à procura de um rumo. Atente-se, por ex., na riqueza simbólica desta breve passagem:

"De súbito apareceram três homens nus a correr, percebi serem marinheiros pelos chapeuzinhos azuis com fitas, pareciam nem se dar conta de que estavam despidos. Fazia um calor de junho ou julho, pesado, meio obtuso, nós também tínhamos bebido, não achamos extraordinário senão o facto de correrem de braços no ar".

Primeiro, a apresentação dum trio eufórico de marinheiros, que em seguida se refugiam num "prédio apodrecido, quinhentista, escuro de cal caindo sobre taipais fechados nas janelas dos andares sombrios", acabando por ser abatidos com três tiros numa "escusa ruela". Depois, a pintura rápida dum cenário dominado por um calor entediante e carregado de embriaguez. Por fim, o retrato quase grotesco e abjecto da decadência citadina, onde sobressai a imagem simbólica dos barcos amarrados e oxidados pelo mar:

"Àquela hora na suja via pública até seriam naturais ratazanas, ratos, restos, rejectos dos navios ancorados na Rocha do Conde de Óbidos, em Alcântara, ao largo do porto de atraque, no Mar da Palha, dejectos do transatlântico há quatro séculos encalhado que é esta decadente capital com aspecto de pedir que a esqueçam, que não liguem à sua retorcida insistência em existir, retirada dum álbum onde o passado se junta à pior prosa de periódico local" 33.

Em Lusitânia, ficamos a saber que se acabaram os providencialismos divinos, como o da génese da nacionalidade, em Ourique. Agora, são as pessoas reais, com os seus sonhos e os seus medos, que tomam as rédeas do seu presente e, sobretudo, do seu futuro, num país recém-saído duma revolução, carenciado de bens económicos e culturais, um país navegador a quem só restam duas alternativas: a reconstrução ou o naufrágio colectivo.

12. Vasco Graça Moura e o romanesco Naufrágio de Sepúlveda

Outro escritor contemporâneo, Vasco Graça Moura (n. em 1942), autor de uma considerável obra poética, narrativa, ensaística e de tradução, intitulou um dos seus romances como Naufrágio de Sepúlveda. Como se isto não bastasse, na epígrafe inicial, aparece justamente uma breve citação da "Relação da muy notável perda do Galeão grande S.João", da História Trágico-Marítima; a par de outras citações várias, este ilustre camonista selecciona ainda versos de Camões: "Corre sem vela e sem leme/ A nau que se vai perder". Para além desta patente conexão intertextual ao nível do paratexto, atentemos noutros pormenores da estrutura textual da narrativa.

Graça Moura conta-nos, se assim podemos dizer, o naufrágio financeiro de um empresário, nas vésperas da Revolução do 25 de Abril (naufrágio de/um Portugal ?), mas com uma particularidade muito significativa, ao nível da selecção onomástica, para uma relação intertextual que nos importa salientar. Com efeito, os nomes das personagens da família do protagonista, Manuel de Sousa Sepúlveda, coincidem com os nomes da família do infeliz navegador quinhentista, coincidências que se estendem a vários pormenores biográficos.

Acresce que não faltam, ao nível da estruturação do tecido romanesco, repetidas referências explícitas à narração da História Trágico-Marítima, bem como à obra de Jerónimo Corte Real (outra personagem do enredo), e ainda à já citada ópera de Wagner, O Navio Fantasma, a propósito da relação amorosa de Catarina Sepúlveda com um holandês errante.

Neste texto entretecido de citações, referências e alusões, onde se conta a história de um homem que tenta "salvar o barco" da sua empresa, no contexto da "batalha naval nas águas da banca portuguesa" 34, e isto num momento crucial da história nacional (fim do fascismo e Revolução de Abril), enumeremos, destacadamente, alguns elementos que julgamos mais simbólicos deste naufrágio nacional: o cenário em que decorre a história, constantemente chovoso e mesmo tempestuoso; o naufrágio do carro do poeta Luís de Montalvor nas águas do Tejo e o realismo cru das descrições deste infeliz desastre 35; a associação do naufrágio económico-financeiro de Manuel Sepúlveda à relação do naufrágio quinhentista, de que se citam excertos 36; por fim, realce para as frequentes alusões a vários naufrágios. A narrativa encerra no mesmo registo ambíguo e simbólico: ao apresentar a sua obra à editora, o narrador/autor menciona outro projecto para o futuro, terminando por relembrar que "Tudo é ficção". Todos, incluindo os críticos, "vêm na ressaca", entende-se, "Da história do naufrágio, de toda a história de Sepúlveda, em tempos de trovoada e de ventania" 37.

13. Lobo Antunes e As Naus : a visão anti-épica e surrealizante

Outro escritor vivo, António Lobo Antunes (n. em 1942), é autor de uma narrativa intitulada As Naus, onde a urdidura da fábula romanesca conjuga cenários e personagens da época das Descobertas, projectando-a até aos nossos dias. Se há uma tónica geral nesta singular evocação dos Descobrimentos, parece-nos residir na negatividade que desde esses tempos quinhentistas contaminou toda a História portuguesa, a começar justamente pela morte e doenças que vitimaram os navegantes (tuberculose, escorbuto, malária, etc.). Os próprios territórios africanos descobertos estão semeados de "padrões", mas também de "destroços de caravela e de armaduras de conquistadores finados" 38.

No regresso das caravelas, a de(s)mitificação dos heróicos navegadores é levada ao ponto de nos serem apresentados como homens doentes, desenganados e epidémicos, escarrando sangue nas praias lusitanas. Concluindo, talvez possamos sustentar que estamos perante um quadro grotesco e surrealizante da gesta dos Descobrimentos, pois não será sem significado que se convocam, para imenso rol de figuras que perpassam o texto, as personalidades artísticas de Luís Buñuel ou de Joan Miró.

É, por conseguinte, sob o signo da decadência e da disforia colectivas que nos aparece uma das personagens, Manuel de Sousa de Sepúlveda, um homem viúvo, cuja "mulher descansava o reumatismo no cemitério do Lobito". Este homem que tinha saudades das terras africanas, onde vivera temporariamente, negociava em diamantes e colaborava com a PIDE 39. Já para o final do relato, presenciamos uma partida das naus do Gama nas praias do Restelo, onde se salientam "aquelas caras sérias lavradas pelo desengano da desgraça, aqueles olhos sem esperança". Depois desta partida, a nossa "raça de heróis e marinheiros" afinal "se definha de diarreia de leite de coco na Guiné"; ou simplesmente "vagueia, a beber água choca, nas dunas de naufrágio de Moçambique" 40.

14. Fernando Dacosta e o naufrágio em Os Infiéis

Para terminar este percurso intertextual, escolhi outra obra emblemática, Os Infiéis, de Fernando Dacosta (n. em 1945), que, à semelhança de outros textos ou obras citados, também apresenta uma tentativa de re-interpretação da História Trágico-Marítima no âmbito da nossa psicologia e história colectivas.

Ao lermos este romance, somos automaticamente conduzidos a focar a atenção na figura de Mestre (Bartolomeu) Dias, cronista e testemunha de uma fase inovadora das nossas navegações, que terá morrido no naufrágio de uma das naus da armada de Pedro Álvares Cabral (pelo ano de 1500). É esta singular personagem histórica que o ficcionista Fernando Dacosta nos apresenta:

"Escrevera relatos desses [de naufrágios], o público lia-os avidamente em edições sucessivas, recolhido dos que sobreviviam, ele próprio naufragou, afundamento junto à costa de África, sem mal maior, porém, que o da perda da caravela" 41.

Afinal, as tragédias marítimas pareciam estar inscritas no nosso Destino de grandeza e de sofrimento. E as causas que desencadeavam os tão medonhos naufrágios resumiam-se a duas principais – uma cobiça quase desmedida e um desleixo aparentado com a arrogância:

"Mais de vinte naus naufragavam por ano só na carreira das Índias. Falta de reparações, calafetação deficiente, madeiras velhas, cargas excessivas, imprudência, ambição transformaram as viagens do Oriente em rotas de morte" 42.

O heroísmo das descobertas de novas rotas universais andou sempre de mãos dadas com a tragédia, sob a forma de doenças, de naufrágios e de mortes. Foi talvez o preço de um messianismo fatal e romântico que tem presidido à nossa História. Há mesmo quem se interrogue se a moderna aventura da emigração portuguesa não é uma nova manifestação da nossa história trágico-terrestre. Numa espécie de atracção masoquista, vibramos e sofremos com as nossas desgraças. É assim que se compreende a enormíssima popularidade dos tristes relatos que chegavam a Lisboa narrando dolorosas tragédias marítimas, como se depreende das reflexões de Mestre Dias:

"As narrativas de viagens e naufrágios conheciam circulação crescente, o reino chorava com elas, nas aldeias eram lidas aos serões em voz alta, faziam-se ofícios religiosos pela alma dos afogados, pela salvação dos cativos, as histórias trágico-marítimas afogavam de lágrimas e de piedade, e de consolo, os que no país resistiam a partir" 43.

Como uma espécie de sina fatal ou encargo messiânico (na sequência do providencialismo divino de Ourique), lá partiam novas armadas, para novas descobertas e trocas comerciais, mas também para conhecidas desgraças e temidos naufrágios. Uma espécie de crença num destino transcendente norteou-nos para uma missão providencial e cosmopolita: alargar as nossas limitadas fronteiras ao mar inteiro de que falou F. Pesssoa. Nesse esforço ou sonho grandioso, fomos, humanamente, santos e pecadores, heróis e mártires.

8

Como vemos, neste capítulo dedicado à literatura contemporânea, já não presenciamos a importância simbólica que o imaginário romântico atribuiu à literatura trágico-marítima, no contexto de determinadas tendências estéticas e psicológicas. A literatura do séc.XX, como fomos mostrando, está muito mais próxima do ideário estético e sobretudo cultural que animou a Geração de 70. Agora, o recurso intertextual à literatura trágico-marítima e, em particular, ao Naufrágio de Sepúlveda, é uma forma peculiar de reescrever a nossa História e um modo inédito de repensar Portugal, perspectivando o presente e o seu futuro à luz do seu passado.

NOTAS:

* Este trabalho constitui a reprodução do Cap. 3 do livro do autor Naufrágio de Sepúlveda (Texto e Intertexto), Lisboa, Replicação, 1997, pp. 143-168.

1 Um interessante exemplo do que acabámos de dizer, é-nos proporcionado pela edição da História Trágico-Marítima, em Lisboa, 1934: tratava-se de uma edição popular dos naufrágios, em fascículos, publicada e prefaciada por Henrique Galvão, Comissário da 1ª Exposição Colonial Portuguesa, inaugurada pelo EStado Novo.

2 Cf. J. Cândido MARTINS, Teoria da Paródia Surrealista, Braga, Ed. APPACDM, 1995, pp. 168-176: "Dissolução do esterótipo cultural: a ideia de Portugal".

3 Cf. F. FIGUEIREDO, História Literária de Portugal (Sécs. XII-XX), Coimbra, Ed. Nobel, 1944, p. 184.

4 J. CORTESÃO , "Náufragos Portugueses...", Águia, 2ª série, vol. III (1913), p. 118.

5 Id., ib., pp. 118 e 120.

6 Águia, 2ª série, vol. II (1912), p. 129.

7 M. BEIRÃO, O Último Lusíada, 2ª ed., Paris-Lisboa, Liv. Aillaud-Bertrand, 1925, p.32.

8 Ib., ib., pp. 33-34.

9 A. SARDINHA, De Vita et Mortibus (Casos & Almas), Lisboa, Liv. Ferin, 1939, p.283.

10 F. PESSOA, Obra Poética, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1981, p. 16.

11 Cf. Id., ib., pp. 12 e 13.

12 Id., ib., p.17.

13 C.OLIVEIRA, Pão Nosso, Alegre Vinho, Azeite da Candeia, Lisboa, Portugália, (1920), pp. 123-4.

14 A. SOUSA, O Náufrago Perfeito, Coimbra, Atlântida, 1944, p. 61.

15 Id., Livro de Bordo, 2ª ed., Lisboa, Pub. Europa-América, 1957, pp. 9, 31 e 48.

16 A. Lopes VIEIRA, Ilhas de Bruma, Coimbra, F.França Amado, 1917, pp. 15-19.

17 M. TORGA, Poemas Ibéricos, Coimbra, 1965, pp. 21-30.

18 T. PASCOAES, Poetas Lusíadas, Lisboa, Assírio & Alvim, 1987, pp. 39 e 40.

19 Cf. Jorge COUTINHO, O Pensamento de Teixeira de Pascoaes (Estudo hermenêutico e crítico), Braga, Pub. da Faculdade de Filosofia, 1995, pp. 129-130 e 137.

20 M. FONSECA, Poemas Completos, 5ª ed., Lisboa, Forja, 1975, p. 55.

21 J. SENA, Exorcismos [1972], in Poesia III, Lisboa, Edições 70, 1989, p. 185.

22 José C. GONZÁLEZ, Naufrágio, Açores, Ed. Autor, 1960, p. 7: referência clara ao célebre Naufrágio de 'La Méduse, relatado por alguns dos sobreviventes (trad. port.: Lisboa, Ed.Amigos do Livro, s.d.), e que inspirou escritores e pintores românticos, como Géricault. Outro poeta próximo do ideário surrealista, Manuel de CASTRO – em Paralelo W, s.d, s.l., s.e. [Tip. Gráfica Sintrense, 1958] – dirá, metaforicamente, que Portugal (o povo de marinheiros de A.OŽNeill), é um país donde partem navios que não regressam.

23 Francisco C. LEÃO, Naufrágio de Goa, Lisboa, Guimarães Ed., 1962, p. 11.

24 M. ALEGRE, 30 Anos de Poesia, Lisboa, D.Quixote, 1995, pp. 89 e 48.

25 Cf. id., ib., pp. 335-8 ("Os quatro sonetos de Miguel Corte Real"); e p. 570

26 Cf. R. BELO, País Possível, in Obra Poética, vol. I, 2ª ed., Lisboa, Presença, (1984), p. 193.

27 Id., ib., p. 196.

28 Sophia M. B. ANDRESEN, Obra Poética, 2ª ed., vol. I, Lisboa, Caminho, 1991, p.111.

29 Imagem também explorada no soneto "Singra o navio. Sob a água clara", de Camilo PESSANHA, na Clepsidra.

30 Natália CORREIA, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 271.

31 RUBEN A. (Leitão), A Torre de Barbela, Lisboa, Círculo de Leitores, 1988 (1ª ed., 1964), passim.

32 A. FARIA, Trilogia Lusitana, Lisboa, IN-CM, 1982, p. 262.

33 Id., ib., p. 316.

34 Vasco G. MOURA, Naufrágio de Sepúlveda, Lisboa, Quetzal, 1988, pp. 63, 66..

35 Id., ib., pp. 73; no final (p. 176) desnuda-se a comparação: "aquilo era um novo naufrágio de Sepúlveda".

36 Id., ib., pp. 101-102; noutra passagem, na p. 134, o narrador abre a relação recolhida por B.Gomes de Brito e evoca, lendo, a cena em que D.Leonor se enterra na areia para esconder, com vergonha, a sua nudez; e cita ainda alguns versos do poema de Jerónimo Corte Real alusivos ao mesmo episódio patético. A leitura/citação do relato do desastre quinhentista volta a ocorrer noutros momentos, como por ex., nas pp. 163-165, 169 et passim, num diálogo intertextual explícito.

37 Id., ib., p. 171.

38 A. Lobo ANTUNES, As Naus, Lisboa, D.Quixote, 1988, p. 28.

39 Cf. id., ib., pp. 73-88, 123 e 173-174, sobretudo, para a história de Manuel Sepúlveda.

40 Id., ib., pp. 189, 189.

Ainda um breve apontamento final: evocando páginas memoráveis do Raul Brandão d'As Ilhas Desconhecidas, António TABUCCHI escreveu também uma página sobre Naufrágios, destroços, passagens, afastamentos. É o título de uma das partes de que se compõem a narrativa Mulher de Porto Pim, Lisboa, Difel, s.d., p. 19, tendo como pano de fundo a aventureira caça à baleia nas ilhas açoreanas.

A estas ilustrações contemporâneas, acrescentemos uma outra, onde o escritor e cronista Augusto ABELAIRA evoca as leituras juvenis do famoso relato do naufrágio de Sepúlveda, salientando a influência da interpretação de António Sérgio – cf. "Duas Leituras", JL.Jornal de Letras, Artes & Ideias (15.II.1995), p. 39.

Também Dalila Pereira da COSTA intitulou como "História Trágico--Marítima" um curioso texto do livro Hora de Prima, Lisboa, Fundação Lusíada, 1993, p. 85.

41 F. DACOSTA, Os Infiéis, Lisboa, Círculo de Leitores, 1992, p. 17.

42 Id., ib., p. 113.

43 Id., ib., p. 175.

J. Cândido Martins (Universidade Católica Portuguesa – Braga)

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