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História Trágico-Marítima


História Trágico-Marítima

A História Trágico-Marítima é uma colecção de narrativas, conhecidas por «relações», de naufrágios ocorridos entre 1552 e 1602 com navios portugueses. Estas «relações» eram normalmente publicadas em folhetos pouco após os naufrágios. Os que as escreveram, ora são sobreviventes dos naufrágios, ora indivíduos de certa cultura a quem foram contados os pormenores dos mesmos por algum sobrevivente. No século XVIII, Bernardo Gomes de Brito decidiu reunir em dois volumes todas essas relações, sendo publicado o primeiro em 1735 e o segundo em 1736. Dá-nos notícia Diogo Barbosa Machado que o compilador tinha prontos para impressão mais três volumes, que não chegou a publicar. O relato mais famoso é a Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João, que terá influenciado Camões no Canto IV de Os Lusíadas.

Outras páginas sobre a História Trágico-Marítima:

  • O naufrágio de Sepúlveda e o modo de ser português
  • O naufrágio de Sepúlveda ou o reverso da medalha dos Descobrimentos
  • O Mar, as Descobertas e a Literatura Portuguesa
  • A Literatura Trágico-Marítima e a Literatura Contemporânea
  • O Naufrágio de Sepúlveda na literatura castelhana: Escarmientos para el Cuerdo, de Tirso de Molina
  • O Naufrágio de Sepúlveda na narrativa romântica do brasileiro Pereira da Silva: Jerónimo Corte-Real (Crónica do Século XVI)



    RELAÇÃO DA MUI NOTÁVEL PERDA
    DO GALEÃO GRANDE S. JOÃO

    (extracto)


    PRÓLOGO

    Cousa é esta que se conta neste naufrágio para os homens muito temerem os castigos do Senhor e serem bons cristãos, trazendo o temor de Deus diante dos olhos, para não quebrar seus Mandamentos. Porque Manoel de Sousa era um fidalgo mui nobre e bom cavaleiro, e na Índia gastou em seu tempo mais de cinquenta mil cruzados em dar de comer a muita gente, em boas obras que fez a muitos homens; por derradeiro foi acabar sua vida e de sua mulher e filhos em tanta lástima e necessidade entre os cafres, faltando-lhe o comer e beber e vestir. E passou tantos trabalhos antes de sua morte que não podem ser cridos senão de quem lhos ajudou a passar, que entre os mais foi um Álvaro Fernandes, guardião do galeão, que me contou isto muito particularmente, que por acerto achei aqui em Moçambique no ano de mil e quinhentos e cinquenta e quatro.

    E por me parecer história que daria aviso e bom exemplo a todos, escrevi os trabalhos e morte deste fidalgo e, de toda a sua companhia, para que os homens que andam pelo mar se encomendem continuamente a Deus e a Nossa Senhora, que roga por todos. Ámen.

    Partiu neste galeão Manoel de Sousa, que Deus perdoe, para fazer esta desventurada viagem de Cochim, a três de Fevereiro do ano de cinquenta e dous. E partiu tão tarde por ir carregar a Coulão e lá haver pouca pimenta, onde carregou obra de quatro mil e quinhentas, e veio a Cochim acabar de carregar a cópia de sete mil e quinhentas por toda, com muito trabalho por causa da guerra que havia no Malavar. E com esta carga se partiu para o Reino, podendo levar doze mil; e ainda que a nau levava pouca pimenta, nem por isso deixou de ir muito carregada de outras mercadorias, no que se havia de ter muito cuidado pelo grande risco que correm as naus muito carregadas.

    A treze de Abril veio Manoel de Sousa haver vista da costa do cabo em trinta e dous graus, e vieram ter tanto dentro porque havia muitos dias que eram partidos da Índia, e tardaram muito em ver o cabo por causa das ruins veias que traziam, que foi uma das causas, e a principal, de seu perdimento, porque o piloto André Vaz fazia seu caminho para ir à terra do cabo das Agulhas, e o capitão Manoel de Sousa lhe rogou que quisesse ir ver a terra mais perto; e o piloto, por lhe fazer a vontade, o fez; pela qual razão foram ver a Terra do Natal e, estando à vista dela, se lhe fez o vento bonança, e foi correndo a costa até ver o cabo das Agulhas, com prumo na mão e sondando; eram os ventos tais, que um dia ventava levante, outro se levantava poente. E Sendo já em onze de Março, eram nordeste e sudoeste, com o Cabo de Boa Esperança vinte e cinco léguas ao mar, ali lhe deu o vento oeste e o és-noroeste com muitos fuzis. E sendo perto da noite o capitão chamou o mestre e o piloto e lhes perguntou que deviam fazer com aquele tempo, pois lhe era pela proa, e todos responderam que era bom conselho arribar.

    As razões que davam para arribar foram que a nau era muito grande e muito comprida, e ia muito carregada de caixaria e de outras fazendas, e não traziam outras velas senão as que traziam nas vergas, que a outra equipação levou um temporal que lhe deu na Linha e estas eram tão rotas que se não fiavam nelas; e que se parassem, e o tempo crescesse, e lhes fosse necessário arribar, lhes poderia o vento levar as outras velas que tinham, que era prejuízo para sua viagem e salvação, que não havia na nau outras; e tais eram aquelas que traziam, que tanto punham em as remendar como em navegar. E uma das cousas por que não tinham dobrado o cabo a este tempo, foi pelo tempo que gastavam em as amainar para coserem; e portanto o bom conselho era arribar com os papa-figos grandes ambos baixos, porque dando-lhe somente a vela de proa, era tão velha que estava mui certo levar-lha o vento da verga, pelo grande peso da nau e, ambos juntos, um ajudaria ao outro. E vindo assim arribando, que seriam cento e trinta léguas do cabo, lhes virou o vento ao nordeste e ao lés-nordeste tão furioso que os fez outra vez correr ao sul e ao sudoeste; e com o mar que vinha feito de poente e o que o levante fez, meteu tanto mar que cada balanço que o galeão tomava parecia que o metia no fundo. E assim correram três dias, e ao cabo deles lhe tornou o vento a acalmar, e ficou o mar tão grande e trabalhou tanto a nau que perdeu três machos do leme so-os polegar, em que está toda a perdição ou salvação de uma nau. E isto se não sabia de ninguém, somente o carpinteiro da nau que foi ver o leme, e achou falta dos ferros; e então se veio ao mestre e lho disse em segredo, que era um Cristóvão Fernandes da Cunha, o Curto. E ele respondeu, como bom oficial e bom homem, que tal cousa não dissesse ao capitão nem a outra nenhuma pessoa, por não causar terror e medo na gente, e assim o fez.

    Andando assim neste trabalho, tornou-lhes outra vez a saltar o vento a lés-sudoeste e temporal desfeito, e já então parecia que Deus era servido do fim que ao depois tiveram. E indo com a mesma vela arribando outra vez, lançando-lhe o leme à banda, que não quis a nau dar por ele e toda se pôs de ló; o vento, que era bravo, lhe levou o papa-figo da verga grande. Quando se viram sem vela, e que não havia outra, acudiram com diligência a tomar a vela de proa, e se quiseram antes aventurar a ficar de mar em través que ficarem sem nenhuma vela. O traquete de proa não era ainda acabado de tomar quando se a nau atravessou, e em se atravessando lhe deram três mares tão grandes que dos balanços que a nau deu lhe arrebentaram os aparelhos e costeiras da banda de bombordo, que não lhe ficaram mais que as três dianteiras.

    E vendo-se com os aparelhos quebrados e sem nenhuma enxárcia no mastro daquela banda, lançaram a mão a uns viradores para fazerem uns brandais. E estando com esta obra na mão andava o mar muito grosso, e lhes pareceu que por então era obra escusada, e que era melhor conselho cortarem o mastro pelo muito que a nau trabalhava; o vento e o mar eram tamanhos que lhes não consentia fazer obra nenhuma, nem havia homem que se pudesse ter em pé.

    Estando com os machados nas mãos, começando já a cortar, vêem supitamente arrebentar o mastro grande por cima das polés das coroas, como se o cortaram de um golpe, e pela banda do estibordo o lançou o vento ao mar, com a gávea e enxárcia, como que fora uma cousa muito leve; e então lhe cortaram os aparelhos e enxárcia da outra banda, e tudo junto se foi ao mar. E vendo-se sem mastro nem verga, fizeram no pé do mastro grande que lhes ficou um mastaréu de um pedaço de entena, bem pregada e com as melhores arreataduras que puderam, e nele guarneceram uma verga para a vela da guia, e da outra entena fizeram uma verga para papa-figo, e com alguns pedaços de velas velhas tornaram a guarnecer esta verge grande, e outro tanto fizeram para o mastro de proa. E ficou isto tão remendado e fraco que bastava qualquer vento para lhos tornar a levar.



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