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O Naufrágio de Sepúlveda na literatura castelhana: Escarmientos para el Cuerdo, de Tirso de Molina

A partir de 1554, dois anos depois da tragédia marítima, ocorrida junto à Terra do Natal, o anónimo e paradigmático Naufrágio de Sepúlveda teve uma bem conhecida influência na literatura portuguesa, logo na segunda metade do séc. XVI. Entre os mais divulgados, estão os ecos intertextuais na epopeia camoniana, pela boca do terrível Adamastor (Os Lusíadas, V, 46-47); na esquecida Elegíada (Canto VI) de Luís Pereira Brandão, de 1588; ou ainda no longo e fastidioso poema de Jerónimo Corte-Real, Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa de Sepúlveda, de 1594.

Ao nível da historiografia portuguesa dos sécs. XVI e XVII, o trágico sucesso foi relatado por alguns autores, cujas obras conheceram relativa divulgação no seu tempo. Destaquemos também três obras maiores: a Historiarum Indiarum, Libri XVI, do jesuíta Ioannis Petri Maffei, de 1589; a Década VI (Caps XXI-XXII do Liv. IX) de Diogo do Couto, publicada em 1616; por fim, a Ásia Portuguesa (Tomo II, Parte II, Cap. IX), de Manuel de Faria e Sousa, publicada já em 1674.

A popularidade da literatura de naufrágios e, em particular, do Naufrágio de Sepúlveda, foi tão grande que ultrapassou as pequenas fronteiras da literatura portuguesa. Antes de inspirar duas peças do edificante teatro novilatino dos jesuítas — em 1643, Ambitio sive Sosa Naufragus, drama em 5 actos de Nicolai Avancini; e no primeiro quartel do séc. XVIII, a peça anónima intitulada Volubilis Fortunae cursus ab Emmanuele Sosa Dionis et Eleonora ejus Consorte Fixus & consummatus in Cruce — o Naufrágio de Sepúlveda foi tema literário da criação dramática do Século de Oiro castelhano: primeiro, com uma peça teatral de Lope de Vega, intitulada Comedia Famosa de Don Manuel de Sosa o El Naufragio Prodigioso y Principe Trocado, hoje de difícil acesso. Depois, com Escarmientos para el Cuerdo, do discípulo lopiano, Tirso de Molina.

É, com efeito, de Tirso de Molina (1581-1648) um curioso aproveitamento da fábula trágica do Naufrágio de Sepúlveda. Assim acontece numa pequena obra dramática, intitulada Escarmientos para el Cuerdo, de 1619. A peça integra as comédias do ciclo galaico-português. Não explicitando nunca as fontes da sua obra, nem estabelecendo qualquer tipo explícito de relação intertextual, o autor castelhano conjuga, e habilmente entrelaça, elementos e figuras históricas com ingredientes e personagens mais ou menos fantasiosos. O resultado é uma curiosa obra teatral, mais folhetinesca que melodramática, dominada por manifestas preocupações moralizadoras, composta segundo o gosto e mundividência barroca, com um enredo bem engendrado sobre os castigos ou desenganos do coração.

Apresentemos, comentadamente, uma possível sinopse crítico-comparativa da fábula dramática da peça castelhana (cf. Martins, 1997: 80-83), salientando as proximidades e distanciamentos em relação à narrativa do naufrágio português, tal como a conhecemos da compilação setecentista de Bernardo Gomes de Brito (1735:1-38; cf. Lanciani, 1997: 185-213).

A peça abre com o elogio, feito por Manuel de Sosa ao Governador Don García de Sá, dos feitos heróicos dos portugueses nas costas do Malabar, nomeadamente das mais recentes vitórias militares em Diu (Acto I, cena 1). Imediatamente, porém, a intriga se fixa na temática amorosa, com a referência ao "delito amoroso" de Manuel, alguns anos atrás, em Portugal, de que lhe nasceu o pequeno Diego que agora o acompanha. De passagem, anote-se que a bastardia foi um os temas recorrentes do teatro de Tirso de Molina. Disfarçada de homem, surge em cena a mulher seduzida e desprezada, D. Maria de Silva, que se auto-define como "una desdichada sin honor y ya olvidada" (I, 3). Viajou de Lisboa até à Índia, para exigir a Manuel o cumprimento das promessas com que a enganara. Tendo-se ausentado de Lisboa com o filho de um ano, o capitão de Diu não lhe dera notícias pelo espaço de vários anos. Entretanto, o Governador Don García de Sá confidencia a Sepúlveda que, como medianeiro sentimental, se encarregue de arranjar o casamento entre D. Leonor e o nobre D. Juan de Mascarenhas. Tendo já Leonor como amante, o ardoroso capitão vê-se espartilhado entre uma função ingrata e um forte sentimento de paixão: "¡Ay Leonor mía;/ siendo ya vos mi esposa/ igualmente constante como hermosa,/ qué desacierto ha sido/ hacer casamentero al que es marido!" (I, 4).

De facto, além do filho que trouxe de Lisboa (Diego), Sepúlveda tinha já um outro de D. Leonor, tudo em segredo. Para maior complicação da trama folhetinesca, como pajem ao serviço de D. Leonor está D. Maria, a ex-amante de Sepúlveda, disfarçada de homem. Merecendo a confiança da filha do Governador, D. Maria entrega as missivas amorosas e marca encontros dos dois amantes. Porém, cansada de ser a confidente e sobretudo a amante traída, prepara-se para denunciar ao rigoroso D. García aquele "amor leviano" de Manuel de Sosa. Só então este é informado da presença de D. Maria, travestida de pajem. Naturalmente, o capitão de Diu sente-se perdido nesta embaraçosa situação, e um amigo dá-lhe o sábio conselho dos cobardes — fugir: "Si con dos has de casarte,/ lo mejor será ausentarte" (I, 10).

Como vemos, o Acto I de Escarmientos para el Cuerdo introduz o leitor/espectador no cerne de uma intriga amorosa, feita de seduções e enganos. Não é por acaso que dramaturgo recorre à técnica do disfarce, usada pela primeira amante de Manuel de Sousa, D. Maria de Silva. Como técnica tipicamente barroca, o disfarce permite os hábeis jogos cénicos de duplicidades e de contranstes mais ou menos equívocos, que quase sempre acabam em tensas cenas de reconhecimento. Ao mesmo tempo, as espectativas criadas pelo título e o teor das primeiras cenas conduzem-nos à convicção de que a intriga da peça não se centrará nas circunstâncias trágicas da viagem e naufrágio de Sepúlveda, mas antes privilegiará a vida heróica e amorosa de um amante de recorte quase donjuanesco.

Já no Acto II, dialogando com a queixosa D. Maria, Manuel finge-se arrependido pelos "seis años de amor perdidos" (II, 1), reconhecendo a sua indesculpável ingratidão, mas justificando que foram delitos da mocidade. Responde-lhe a amante ferida que lhe perdoa o passado, desde que ele emende o presente. Para além de lhe relembrar que ele enfrenta poderosos adversários — a beleza de D. Leonor e o poder de D. García —, adverte-o de que, como cristão, se encontra numa complicada situação, um verdadeiro conflito de fidelidades: ou ama a bela filha do poderoso Governador, e lhe é infiel a ela, não cumprindo antigas promessas e não podendo esconder a prova viva dessa relação; ou a ama a ela, mãe do seu filho, mas desonra D. Leonor e desencadea a ira do temível D. García.

O astuto amante pede a D. Maria que, para evitar suspeitas no temível D. García, se ausente temporariamente de Goa, pois ele iria ter com ela mais tarde. D. Maria, porém, teme que o falso amante a queira enganar uma vez mais. Manuel de Sosa procura ainda alcalmá-la com uma promessa, cujas palavras se revelarão de um negro e fatídico profetismo — se ele não cumprir o prometido, que Deus faça descer sobre ele a vingança de um terrível naufrágio (cf. II, 1). Desafia, deste modo, o poder divino para uma falsa promessa que não cumprirá, e o castigo de Deus abater-se-á inexoravelmente. Inteirado do filho bastardo e da traição de Manuel de Sosa, também o severo D. García lhe prepara a vingança. Pressentindo a sua reacção, Manuel prostra-se aos seus pés e pede-lhe perdão, mas já é tarde. Don García diz a Manuel que ele é mais hábil a combater nas artes da guerra do que a vencer as suas inclinações — "Mejor sabes defender/ castillos que inclinaciones,/ vences bárbaras naciones/ y no te sabes vencer" (II, 5). Para remediar a desonra, restava-lhe apenas a solução do forçado casamento. À desonrada D. Leonor, que pretendia casada com D. Juan de Mascarenhas, D. García ordena contrariado: "la vergüenza es provechosa/ antes de hacerse el pecado;/ tarde te has avergonzado:/ llega, y da a Manuel de Sosa/ la mano" (II, 8). Determina ainda que no mesmo dia em que se casam, saiam de Goa, num rico galeão (dote de casamento), com destino a Lisboa. Porém, ferindo-se inadevertidamente na espada, Manuel suja de sangue a sua mão e a de D. Leonor, exclamando atemorizado perante os negros presságios de quem mancha com sangue o amor: "¡Ay cielo, por mi ofendido!/ ¡Ay esposa despreciada!;/ ya empiezan presagios tristes/ a vangaros". Também D. Leonor, atemorizada com superstições, desabafa: "¡Ay Dios!, ¿qué fin tendrá/ boda que en sangre comienza?" (II, 8).

Quando é informada das reais intenções do astuto Manuel de Sosa — viajar para Portugal com a recém-esposa (D. Leonor de Sá) e os dois filhos —, a desesperada e traída D. Maria formula terrível maldição, invocando os céus para que o traidor pereça em doloroso naufrágio: "¡Plegue al cielo que no tengas,/ cruel, próspero viaje!/ El mar, enriscando sierras,/ tus pilotos desatine;/ desmenuce tus entenas,/ tus velas al agua arroje,/ tus jarcias todas revuelva,/ no te quede mástil sano,/ diluvios sobre ti caigan/ porque zozobres en ellos;/ en su piélago agonices,/ y si llegares a tierra,/ estériles playas llores;/ encuentres Libias desiertas,/ caribes tu esposa agraviem,/ indios roben tus riquezas,/ la sede mate a tus amigos,/ de hambre tus ministros murean./ Las prendas que más estimes,/ ésas en pedazos veas/ pasto de hambientos leones,/ de tigres mortales presas./ No sepan de ti las gentes,/ ni otra sepultura tengas/ que las silvestres entrañas/ de las más bárbaras fieras" (II, 13).

Como vemos, também este segundo Acto privilegia a enredada intriga sentimental, relegando para o próximo acto a dramatização dos elementos do naufrágio, sendo aí mais notória a proximidade com o hipotexto narrativo da História Trágico-Marítima e respectiva tradição intertextual quinhentista.

O Acto III é o mais longo de todos, encenando a viagem e o naufrágio de Manuel de Sosa. Já depois da partida do galeão e dialogando com D. Maria, o Governador garante-lhe que, também para sua amargura, não sabia da relação existente entre ela e o esposo adúltero. Este vilão era assim duplamente cruel: quer para a esposa e mãe do seu filho, que abandonava pela segunda vez; quer para o seu fiel amigo, D. Juan de Mascarenhas, pretendente da mão de D. Leonor. Ao casar-se pela segunda vez, estando viva a primeira esposa, Manuel de Sosa rompia compromissos de lealdade humana, atitude imprópria de um fidalgo e, sobretudo, como cristão, ofendia o direito divino. Por isso, o pecado materializado nos seus actos de vilania e desonra clamava ao Céu a poderosa vingança de Deus. Com o assentimento do Governador, D. Juan prontifica-se a perseguir o desonesto Sepúlveda, a fim de que seja julgado pelos seus vergonhosos actos. Atraiçoada, D. Maria invoca, uma vez mais, o poder de Deus para formular uma maldição: que o ingrato Sepúlveda nunca chegue a Lisboa!

A partir desta cena, é mais visível a semelhança entre a fábula dramática de Tirso de Molina e a narrativa do Naufrágio de Sepúlveda. Com efeito, o castigo da Providência ou o acaso do destino não se fez esperar. Na cena seguinte, o galeão é tomado por uma violenta tempestade, para terror de todos os que iam a bordo, sobretudo D. Leonor, que invoca os céus piedosos para aplacar ventos tão furiosos. Na iminência do naufrágio, o capitão Manuel de Sosa ordena primeiro o alijamento da carga; depois, o salvamento de alguns num batel. Já em terra com D. Leonor e os dois filhos, Manuel agradece a Deus as vidas preservadas e suplica perdão pelos pecados pretéritos: "¡Señor, perdonadme Vos/ tantas culpas cometidas!" (III, 6). Para desconto das suas faltas, evoca os actos de generosidade para com os mais desfavorecidos (cf. Lanciani, 1997: 185). D. Leonor também consola o marido, insistindo que a vida é a maior fortuna. O resultado do naufrágio é assustador: pereceram 500 pessoas, tendo-se salvado apenas 140. Convém salientar que os momentos mais trágicos da peça são, de algum modo, equilibrados pelo cómico de linguagem das repetidas intervenções do galego Carballo, personagem de linhagem pícara.

Segue-se a penosa caminhada dos sobreviventes, em terras de cafres hostis e de hábitos canibais, vencendo as árduas 100 léguas que os separam da foz rio do Espírito Santo, onde encontrariam portugueses comerciantes de marfim. Tal como no relata o anónio autor do Naufrágio de Sepúlveda (cf. Lanciani, 1997: 205), também nesta efabulação dramática D. Leonor dá ânimo a todos, tomando resolutamente a dianteira da longa e penosa marcha junto à costa. Todos caminham com os poucos despojos e armas que se salvaram do naufrágio. Sem alimentos e sem abrigo, são tentados a aceitar a hospedagem de uma tribo, com a condição de entregarem as armas. Para evitar males maiores (a fome e a morte certas), e contra a opinião dos seus e sobretudo da esposa (cf. Lanciani, 1997: 207), Manuel de Sosa decide entregar as armas, contra a opinião da esposa (III, 11). Imediatamente, caem sobre eles os cafres, despojando-os dos poucos haveres e roupas. Para Manuel, com um dos filhos nos braços e já semi-louco, é o culminar duma terrível maldição. Agora, desalentada e apertando ao peito o outro filho, também D. Leonor exclama contra o fado ímpio: "Ya la vida no tengo/ que defender ni esperar./ ¡Ay hijo, en qué mala estrella/ nasciste!" (III, 13).

Com a morte certa, resta a Manuel a honra, contra a ferocidade dos terríveis cafres que queriam desnudar e violar a esposa. Ao mesmo tempo, um tigre ameaça a vida do pequeno filho. Dramaticamente dividido no duplo papel de pai e esposo, o desnorteado e debilitado capitão não sabe a quem acudir: "Dividida/ el alma esta adversidad;/ defienda cada mitad/ a la mitad de su vida./ Bárbaros allí amenazan/ el honor de quien adoro;/ allí tigres el tesoro/ de mi vida despedazan" (II, 15). Aos olhos de Manuel, parecia que todo o desconcerto do mundo se unia para o perseguir e aniquilar. Como vemos, mesmo no acto onde mais perto seguia a tradição quinhentista do Naufrágio de Sepúlveda, a obra de Tirso de Molina recria a derradeira cena da morte de Leonor e do filho.

Dirigindo-se também a Portugal, em perseguição de Manuel de Sosa, D. Garcia de Sá, acompanhado de D. Juan e de D. Maria, desembarcam perto do local do naufrágio. Encontrando os recém-chegados, um dos náufragos, o traidor Carballo, põe-nos ao corrente não só da catástrofe do naufrágio, mas da dura peregrinação por terra de cafres, perseguidos pelos animais selvagens e pela fome: "No quedó perro ni gato/ que no supiesse a conejos; cueros de cofre, pellejos, hasta suelas de zapato/ nos comimos; y el remate/ de esta dura peregrinación/ fué entregar la munición,/ ropa y armas por rescate/ de comida (...)" (III, 17). Adianta também Carballo alguns pormenores da perseguição dos cafres, que não hesitariam em comer alguns dos sobreviventes. Nem assim a ira de D. García esmorece: "mueran los dos a mis manos/ y no entre bárbaros negros" (III, 17).

Porém, pela boca de um Marinheiro, o velho Governador e os demais ouvem a narração do desenlace "del más trágico suceso/ que conservaron anales,/ que desdichas escribieron". O Marinheiro conta-lhes o modo como morreram as crianças, como desnudaram D. Leonor, e ainda como o desesperado Manuel de Sosa desapareceu na selva, certamente comido pelos animais selvagens, não hesitando em mostrar o teatro funesto dos mortos: o corpo defunto de D. Leonor e o corpo ensanguentado do filho Dieguito, terminando com a referência à moralidade da história trágica, "en que la ciega fortuna/ tragedia eterniza el tiempo/ para escarmiento de amantes,/ y éste es el acto postrero" (III, 18).

Assim se cumpriram as temíveis maldições, repetidas vezes invocadas. O próprio Marinheiro que assume a temporária retrospectiva diegética, declara a D. García: "Satisfechas tus venganzas,/ ya puede el dolor paterno/ las exequias funerales/ fiar a los sentimientos" (III, 18). Consomada tamanha tragédia, que originou a morte da filha e do neto, só então D. García exclamou: "¡Ay Leonor! Nunca tomaron/ tan a su cargo los cielos/ agravios de un padre irado;/ venganzas de un triste viejo" (III, 18). Chora também D. Maria, a amante e primeira esposa de Sepúlveda. O próprio D. Juan de Mascarenhas fica estupefacto diante daquele "espectáculo tan triste", reiterando a respectiva moralidade: "sirva en la compasión/ de escarmientos para el cuerdo". Assim, perante o cenário da morte da amantes, fica exarada para a posteridade a temática exemplar e morigeradora do desengano, tão presente na mundividência maneirista e barroca.

Neste terceiro Acto, a proximidade com o relato do Naufrágio de Sepúlveda é maior, até pelo facto de o dramaturgo castelhano encenar ou aludir às sequências da tempestade, naufrágio, arribada e peregrinação terrestre. Sobressai, contudo, uma séria de inovações da narrativa hipotextual, ou mais latamente, em relação à tradição intertextual quinhentista, visível sobretudo ao nível do enredada intriga com que é encenado o trágico desfecho dos amores funestos do sedutor Manuel de Sosa.

No final desta leitura comparatista, uma pergunta óbvia: por que razão um consagrado escritor castelhano terá recorrido a um assunto português? Que razões explicam este intercâmbio literário e cultural, para além do facto de, nesta altura, estarmos sob o governo da coroa castelhana de Filipe II? Numa época em que, por razões político-culturais, o biblinguismo (português / castelhano) era corrente, não nos deve surpreender quer o lusitanismo dos escritores espanhóis, quer o hispanismo dos escritores portugueses. É certo que a peça de Tirso de Molina foi escrita em castelhano, mas a imagem favorável de Portugal leva o autor a inserir mesmo algumas frases em português.

Em face da breve leitura efectuada, é natural que formulemos uma segunda questão: para esta reescrita intertextual de Escarmientos para el Cuerdo, Tirso de Molina não terá confinado as suas fontes ao anónimo Naufrágio de Sepúlveda (1ª edição, 1554). Terá colhido informações em obras literárias e historiográficas, em português e em castelhano, com destaque para as obras citadas logo de início, e publicadas antes da data de edição desta peça, sem esquecer a influência da já citada peça de Lope de Vega (cf. Barchiesi, 1976: 215-7).

O lusitanista Raymond Chantel (1949: 131-153) dedicou um estudo à problemática das fontes das obras de Tirso de Molina inspiradas em temática portuguesa. Em relação a esta comédia, e depois de consultar as várias edições da peça, o crítico aponta, genericamente, as fontes historiográficas, bem como o longo poema de J. Corte-Real, não chegando a conclusões elucidativas. Mais recentemente, também Roberto Barchiesi (1976: 214) informa que vários editores espanhóis desta peça de Tirso de Molina se limitaram a anotar que o autor se terá inspirado em "vários historiadores". Porém, Barchiesi vai mais longe, ao apontar algumas das fontes de que se terá servidoTirso de Molina para recriar a fábula trágica do Naufrágio de Sepúlveda. Sem nenhuma pretensão de dilucidar o problema da tradição hipotextual terão ficado evidentes, pelo menos, dois aspectos desta recriação de Tirso de Molina:

i) A manifesta criatividade de inúmeras sequências dramáticas: a inovação estende-se ao nível da criação de algumas personagens, com destaque para a figura da esposa enganada ou do cómico Carballo. Em detrimento de algumas personagens históricas do Naufrágio de Sepúlveda, o dramaturgo castelhano prefere introduzir novas personagens, que, sem preverter a verosimilhança do hipotexto, concorrem activamente para maior dramatização do enredo da peça, aparentada com uma comédia de enganos, tendo como pano de fundo uma enredada teia de amores desencontrados. Tudo isto concorre para transformar Escarmientos para el Cuerdo, não numa obra-prima do teatro de Tirso de Molina, mas uma sentimental e folhetinesca obra dramática.

ii) A inquestionável intenção morigeradora desta recriação de Tirso de Molina: é visível na "moralidade" extraída dos amores funestos de Manuel de Sosa. Da sua trágica história sentimental, retiram os amantes uma lição, tão frequente na literatura religiosa e homilética, bem como poética e literária do tempo: os escaramentos ou desenganos, em forma de castigo ou morte cruel que espera, muitas vezes, os amantes obstinados. Neste caso, uma exemplar tragédia marítima é a ilustração da efemeridade e escarmentos para o coração humano. Deste modo, o largo Mar que era a estrada da glória dos feitos heróicos dos portugueses, tornava-se também — segundo a perspectiva simbólico-alegórica do topus maneirista e barroco do naufrágio no mar da vida humna — na sepultura dos amantes, em consequência da cegueira causada pelos efémeros sentimentos do coração.


Referências bibliográficas

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BRITO, Bernardo Gomes de

1735 História Trágico-Marítima em que se escrevem cronologicamente os naufrágios que tiveram as naus de Portugal, depois que se pôs em exercício a navegação da Índia, Tomo Primeiro, Lisboa Ocidental, Na Oficina da Congregação do Oratório.

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1976 "Un Tema Portoghese: il Naufragio di Sepúlveda e la sua Difusione", in Ananali (sezione Romanza), Napoli, 2, XVIII, pp. 193-231.

CHANTEL, Raymond

1949 "Le Portugal dans l'œuvre de Tirso de Molina", in Mélanges d'Études Portugaises offerts à M. Georges Le Gentil, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, pp. 131-153.

LANCIANI, Giulia

1997 Sucessos e Naufrágios das Naus Portuguesas, Lisboa, Caminho.

MARTINS, J. Cândido

1997 Naufrágio de Sepúlveda (Texto e Intertexto), Lisboa, Editora Replicação.

J. Cândido Martins (Universidade Católica Portuguesa – Braga)

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