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O ensaio teórico «à la» Jorge de Sena

Em Jorge de Sena, à medida que o ia lendo, fui-me habituando a ver uma inteligência fulgurante e uma capacidade monstruosa de captar, processar e reter o torrencial de informação a que procurava expor-se. Se todos os cérebros humanos são computadores sofisticadíssimos (deveria antes dizer que os computadores são tentativas de imitar os cérebros humanos), em Jorge de Sena é mais fácil ver-se o mecanismo a funcionar, como alguns insectos, tem olhos poliédricos, multifacetados, que lhe permitem olhar para todos ns lados. Depois, agarra e memoriza toda a informação. Mas se se ficasse por aí. diríamos dele que era enciclopédico. É-o, sem se preocupar muito com o pormenor. Mas não é aí que reside a sua grandeza. A força da sua inteligência permite-lhe fazer aquilo que às vezes desajeitadamente se chama intuir. Penetra intuitiva e instintivamente no fundo das coisas, no real ou numa obra, e vai-lhe ao cerne É esse cerne – e o resto por acréscimo – que arquiva na memória e lhe permite olhar dali por diante para outra obra, ou fenómeno, ainda mais equipado, já que possui o condão de reactivar, isto é, trazer ao consciente, a cada instante que necessita, toda a informação armazenada sobre um assunto. Daí que nele o olhar seja expresso sempre torrencialmente (porque as palavras são adquiridas e arquivadas pelo mesmo processo e saltam-lhe sempre à primeira chamada) por resultar de uma série de golpes fulminantes, desferidos de várias perspectivas sobre o objecto que lhe prende a atenção. Jorge de Sena é um computador em que os conceitos e as palavras estão devidamente articulados, e estes, por sua vez, distribuídos e devidamente encadeados em ideias estruturadas hierarquicamente em fundos coerentes. A qualquer altura que se solicitar do menu do computador que um determinado assunto salte para o écran, ele vem na sua totalidade. É só porque não pode falar nem escrever mais do que um número x de palavras por minuto que nós não conseguimos apanhar tudo o que no hard disk havia sobre o assunto. Muitas vezes, porque está limitado pelo tempo que tem disponível ou pelo número de páginas que lhe pedem. fica-nos apenas um print out limitado, parcial, do que tinha para dizer.

Quando essas limitações não existem, Jorge de Sena centra as suas atenções à volta de um tema e esgota-o. É o caso de volumosos estudos como Uma Canção de Camões, Estudos sobre o Vocabulário de Os Lusíadas, entre outros.

Mas as limitações de espaço e tempo determinaram em Jorge de Sena ainda dois outros tipos de ensaio. Um deles, que chega a misturar-se com o artigo de jornal ou página literária, é, embora ainda e sempre mais uma instância desse processo mental de que atrás se falou, activado especialmente pelo tema ou por um acontecimento que até sente de uma maneira especial, muitas vezes pessoalizada. Aí, Jorge de Sena rebenta com o écran. A informação explode-lhe vulcanicamente, e jorra-lhe em lava de palavras escaldantes, soterrando tudo quanto pela frente apanha. São exemplos deste tipo de ensaio os das colectâneas O Reino da Estupidez I e II e os prefácios de algumas antologias ou colectâneas de estudos seus.

Um terceiro tipo de ensaio é um meio-termo entre os dois – em extensão, tema, estilo e tom. Com a particularidade de ser nesse formato que Jorge de Sena se aventura pela área da teorização – quase exclusivamente literária, mas sempre e apenas estética. Para sermos mais exactos, haveria que subdividir este grupo entre os ensaios aplicados – exemplificados nas colectâneas Estudos de Literatura Portuguesa I e II, Fernando Pessoa & Companhia Heterónima, ou Trinta Anos de Camões. No subgrupo teórico teríamos como protótipo o volume Dialécticas Teóricas da Literatura.

Vergílio Ferreira observa num dos volumes da sua Conta-Corrente que Jorge de Sena «ia a todas como se diz em futebol: música, pintura, etc., mas quedava-se prudentemente nos limites da filosofia» (1). O facto, porém, de não ter escrito sobre filosofia não significa que não estivesse mais do que suficientemente informado sobre o pensamento filosófico ocidental, a ponto de revelá-lo directa e indirectamente na sua escrita. Sobretudo a problemática filosófica mais próxima da estética.

Não constituindo o ensaísmo teórico uma área fundamental na produção escrita de alguém que se considerou, acima de tudo, como poeta, e depois, talvez, scholar, e a seguir ficcionista e dramaturgo, poderá não parecer muito importante escolher como tema de artigo exactamente essa área a que Sena chegou apenas em abordagens ocasionais e circunstanciadas. O facto de, nos trabalhos de crítica que sobre Jorge de Sena vêm surgindo, quase nada existir sobre o seu ensaísmo poderá ser um indício dos focos de atenção ou desatenção que obras como a dele exercem sobre os estudiosos portugueses. Com efeito, na colectânea que Eugénio Lisboa seleccionou há apenas três estudos sobre o ensaísta, nenhum deles sobre o ensaio teórico (2), e no volume de Harvey Sharrer e Frederick Williams aparece apenas um estudo sobre «O Ensaísmo Crítico de Jorge de Sena», de Nelly Novaes Coelho (3).

Tomarei, pois, um ensaio prototípico para análise rápida, esperando que ele nos revele um pouco do universo intelectual de Jorge de Sena e do seu modo de se pronunciar ou discorrer sobre problemas teóricos. Esse ensaio será «Sistemas e Correntes Críticas», incluído no volume Dialécticas Teóricas da Literatura (4).

As linhas fundamentais do universo intelectual de Jorge de Sena estão, aliás, já muito bem delineadas por Francisco Cota Fagundes no capítulo introdutório desse excelente livro A Poets Way with Music: Humanism in Jorge de Sena's Poetry (5). Fagundes chama-lhe «a philosophical profile», tomando filosofia no sentido genérico de «mundividência», termo que por sua vez inclui as áreas dos valores: a ética – e esta, a ideologia no sentido de ética social e política – e a estética. Aqui pretendo fazer uma incursão de muitíssimo menor alcance; quase apenas rabiscar à margem uns comentários de leitura parcelar.

Uma das impressões fortes que se tem ao ler um ensaio de Sena – e ao ler-se qualquer Sena parece que só se têm impressões fortes! – é a de que ele não está tão preocupado em expor uma determinada posição teórica, nem sequer em explicá-la ou interpretá-la por tê-la lido algures num autor estrangeiro. Sena discorre como se se sentisse na triste necessidade de explicar o óbvio, de vir lembrar o já dito aos intelectuais distraídos da praça da língua que a sorte lhe deu por berço. Sena emerge sempre com ar de quem foi importunado e se sente constrangido a ter de pregar verdades para ele banais, ainda que delas se tivesse apercebido pela primeira vez pouco tempo antes. Assimila-as rapidamente e elas passam a fazer parte de si próprio de tal modo que lhe parece intolerável que os outros ainda não tenham aberto os olhos para essas realidades. Daí, em parte, o carácter não sistematizado do seu discorrer entremeado de vergastadas nos deuses de barro da aldeia literária portuguesa e de considerações marginais em longuíssimos parênteses – que o leitor terá de imaginar. porque ele raras vezes os assinala. Assim, não se pode esperar nunca dele uma exposição teórica organizada e devidamente arrumada. Para saber exactamente quais os postulados teóricos de Jorge de Sena o leitor é que tem de saltar de parágrafo em parágrafo, eliminando aqui, subentendendo acolá, reconstruindo em puzzle as peças que estavam coerentemente articuladas antes de o vulcão rebentar mas que se esfacelaram em .bocados com a explosão. No processo, porém, essa escrita explosiva nem sempre sai com as arestas limadas. Exemplifiquemos. Sena abre o ensaio. com uma vigorosa afirmação pessoal sobre estética e crítica:

Eu não sou dos que acreditam em sistemas críticos, do mesmo modo em que não é hoje aceitável «acreditar-se» em sistemas filosóficos. Quanto a mim, a ideia de sistema é incompatível com a ideia de critica, uma vez que o sistema começa onde a crítica acaba. Claro que a maioria das pessoas que da critica se ocupa é muito naturalmente levada a supor que uma atitude «sistemática» em relação à crítica é algo como um sistema crítico. Não é; mas, muito simplesmente, um lapso semântico e ontológico. Aquilo que se considera «sistemático» é, ou deve ser, primacialmente, metodológico. Isto não implica, necessariamente e ab initio, um método determinado. (6)

Depois desta afirmação categórica reveladora de uma profunda consciência da subjectividade estética, Jorge de Sena surpreende-nos falando em «realidade objectiva» e afirmando que «sem a aplicação de um método ou métodos, toda a inquisição é impossível, ou, muito pior, uma falsificação subjectiva» (7). Por implicação, Jorge de Sena estada a afirmar aqui que o uso de um método nos permite chegar à tal «realidade objectiva», e assim livrar-nos da tal «falsificação subjectiva». É preciso esbracejarmos por umas páginas de ondas alterosas para tirarmos dúvidas. Sena volta ao tema de novo em tirada categórica e sem peias:

a verdade não existe (o que não quer dizer que todas as verdades sejam legítimas), também a beleza não existe, ou o critério dela, senão como sobrevivência espúria de sociais e morais considerações obsoletas. E é esta a razão pela qual, ao mesmo tempo, admiramos obras de arte, que obedecem a critérios de beleza incompatíveis (a Grécia Clássica, por exemplo, e o estilo gótico, por exemplo, ou a arte dos Astecas e Bernini) [...]. É que, por um critério de verdade da beleza, pelo qual uma obra de arte é bela se se conformar com os cânones em que o seu tempo se integra, a beleza de umas nega a beleza das outras [...] (8).

Caso surgissem dúvidas sobre a ausência de um ponto de Arquimedes em estética, desta vez é logo na página seguinte que Sena regressa ao assunto

É óbvio que, no mundo moderno, cada vez mais multímodo, a visão dele é progressivamente mais estética: cada vez mais temos consciência de que o mundo não é um dado, mas algo que existe por nós, para nós, e segundo o que fazemos dele. (9)

Após novas divagações, que incluem vergastadas fulminantes na erudição e na critica impressionista e no eclectismo fruto e sinal de superficialidade, Jorge de Sena retoma à subjectividade dos juízos estéticos apontando para a complexidade da realidade e repisando que «o conhecimento dela é convencional» e que «cada método só pode dar-nos entrada num dos planos ou dos aspectos para cuja investigação foi concebido» (10). Sena prossegue vituperando os sistemas e defendendo o método, ou os métodos – «se a fundamental atitude é metodológica e não sistemática», «o eclectismo não existe como tal» (11).

Aqui, deparamos com uma aparente contradição. Se a atitude fundamental é metodológica, então o método o que é? Não assenta num sistema? Sena parece não se aperceber de que há sistemas conscientes, que se estudam e seguem à risca, mas que há também os sistemas inconscientes – e todos temos um (nem sempre coerente, como, aliás, acontece com todos os sistemas) – dentro dos quais nos movemos, quer queiramos quer não, e que é neles, no fundo, que assentam os métodos críticos, já que o método é, afinal, uma técnica, um processo, um meio de identificar os sistemas dos outros. Esta dúvida parece legítima quando justaposta a uma afirmação anterior, uma daquelas tiradas de passagem desferidas por Sena logo no início do ensaio,

A crítica, metodologicamente considerada, nada tem que ver com valores –quais estes possam ser, eis o que depende estritamente da fruição estética. (12)

Que significa isto, exactamente? Que o método é independente e está isento de valores? Inclusivamente os valores estéticos? Mas, então, que especialíssima natureza é essa, a do método, que parece furtar-se às amarras dos valores, inclusive os embutidos na própria linguagem que os descreve? Não. Não deve ser essa a visão de Sena, e mais uma vez a expressão veloz parece trair-lhe o sentido. Benefícios da dúvida, e generosidade da minha pane? Creio que não. Sena não precisa dela. É necessário saltarmos quinze páginas, nas quais Sena desanca os abusos da filologia, exalta o papel da imaginação em arte, advoga a «cientifização da crítica», castiga as Faculdades de Letras e insiste na necessidade de as pessoas se informarem do que sobre critica se escreve «lá fora», com a tirada sarcástica de que esse lá fora não se limita à França (13), para regressarmos com ele à formulação teórica das suas concepções sobre o método e os fundamentos da crítica, reforçando de modo paradoxal a ideia com que abrira o ensaio:

E isto nos coloca novamente na questão do sistema e do método, acerca da qual começámos por afirmar que, em termos de crítica, não existe, já que a critica é método. (14)

De novo a clareza é aqui vítima da explosividade de Jorge de Sena. Que significa exactamente dizer-se, a propósito da questão do sistema e do método, que «em termos de crítica não existe»? E que significa igualmente a afirmação de que «crítica é método»? Se justapusermos as duas afirmações, que resulta? Pela lógica, fica-nos a afirmação sem sentido de que «a questão do sistema e do método é método». Mais ainda Jorge de Sena cita-se mal. Com efeito, ele não iniciara esse ensaio negando a questão da existência da crítica – o que efectivamente dissera fora que não acreditava em sistemas críticos.

A afirmação de a crítica ser método é exageradamente metafórica e pouquíssimo rigorosa para quem, seis páginas antes, advogara «o rigor e a exigência» (15), já que em parte nenhuma a critica é método. Ela pode tê-lo ou não tê-lo, ser metodológica ou não, mas não se confunde nunca com ele. Se assim fosse, também a erudição crítica que Sena vergastou seria também método e, portanto, científica (segundo a terminologia do próprio Sena). Neste mesmo ensaio, por exemplo, faz, entre outras, uma afirmação pouquíssimo rigorosa «nada mais complexo que uma obra de arte». Ora qualquer cérebro, por exemplo (e não é preciso ser o de Jorge de Sena), é muito mais complexo do que qualquer obra de arte. A não ser que se inclua o cérebro na lista das obras de arte, assim como tudo o que é mais complexo que uma obra de arte

Mas há que passar por cima de todos estes empecilhos e procurar um pouco mais de luz, que, por sinal, não tarda em chegar. Logo no parágrafo seguinte Jorge de Sena escreve:

Mas um método crítico depende, ou dependeu originariamente, de certa concepção do mundo e da linguagem. E é neste ponto que uma questão de «sistema» aparece, da qual os métodos podem depender. (16)

Pronto. Está aqui e está claro. A dúvida surgida a propósito da linguagem usada por Sena na passagem atrás citada (17) sobre se teria consciência do facto de um método assentar também num sistema (consciente ou inconsciente) desaparece, porque num ensaio longo como este ainda teve espaço para voltar à questão inicial e esclarecer uma dúvida fundamental. Toma a fazê-lo mais claramente três páginas adiante:

[...] por trás de cada atitude crítica ou de cada .método. há uma filosofia, ou.

quando os críticos não são cientes disso, uma imprecisa confusão filosófica. (18)

É óbvio que Sena está ciente. As confusões são aparentes. Resultam apenas do seu estilo ensaístico e da velocidade com que salta de ideia em ideia sem se preocupar com a justeza das pedras que vai calcorreando na corrida Porque, se algumas pedras não estão no lugar certo e descambam quando Sena lhes põe o pé em cima, quando uma cai já Sena vai longe noutra ideia, refeito do leve desequilíbrio mas prosseguindo infatigavelmente na abalada.

Sena pisa e repisa ainda essa consciência da subjectividade em estética. lembrando que «a moderna crítica não está interessada em julgar, mas, sim, em compreender»; e que se a crítica se arroga «o direito de condenar», isso é só «em nome dela» e não em nome dos critérios estéticos que não aplicou (19). Aqui, uma vez mais, o descuido conceptual desfoca a ideia que Sena quer transmitir. Com efeito, se um crítico pode condenar em nome de qualquer ideologia, não se segue que não tenha usado critérios estéticos. Pode muito bem ter uma estética coerente com a sua ideologia e aplicá-la coerentemente numa crítica. Sena não poderá deixar de reconhecer-lhe o carácter de crítica estética só porque essa estética é ideológica – sob pena de o autor do ensaio entrar em contradição com o que vem afirmando em leitmotiv sobre o carácter subjectivo da estética de cada um. Muitas vezes Sena revela possuir determinados conceitos relativamente novos, pelo menos em relação à maioria dos seus compatriotas, mas que ele, aqui e acolá, ainda expressa num vocabulário herdado de correntes ou sistemas de pensamento nele próprio já ultrapassados; daí surgir-nos de quando em quando enredado em terminologia e expressões obsoletas que o colocam em aparente contradição com afirmações básicas por ele feitas. A título de exemplo, apenas, referirei a afirmação, quando muito polémica, de que .a finalidade da crítica é o conhecimento racional da obra de arte» (20). Eis, de facto, uma visão bastante limitada da crítica, a que nem sequer a prática do próprio Jorge de Sena se deixa confinar.

Quedar-me-ei todavia por aqui. Poderia continuar esta série de comentários à margem do texto, porque o ensaio prossegue no mesmo estilo inconfundível, incluindo desde afirmações redondamente inexactas, como a de que «todo o conhecimento moderno é estatístico» (21), a outras sem sentido – «todas as leis existem e verificam-se para determinados grandes números» (22), mas também tiradas e preciosos longos parágrafos sobre uma enorme variedade de assuntos, até terminar abruptamente, porque o autor teve que ir dormir, ou porque não tinha mais papel, mas nunca por falta de mais para dizer. Vale a pena transcrever esse parágrafo de encerramento porque exemplifica muito do que atrás ficou dito e é revelador da grandiosa atitude de espírito de Jorge de Sena sobre a crítica e o entendimento da arte.

E, com isto, encerramos este esboço de uma teoria geral da crítica moderna, acentuando que esta disciplina é feita de muitas outras que, todas elas, nos últimos tempos, progrediram muito, oferecendo à crítica um instrumental que lhe permitiu estabelecer metodologias próprias. Toda a gente é livre de opinar e julgar. Mas ninguém é livre de, humildemente, não confessar que a sua cultura e os seus conhecimentos técnicos são incompatíveis com as exigências da crítica. Escrevam do que quiserem e como quiserem, mas encabecem os artigos com o título geral de uma das obras que desencadeou o Romantismo, a de Wackenroder: Efusões Sentimentais de um Irmão Leigo, Amante dos Artes. Com isso, salva-se a honra do leigo, a das efusões, a do convento, a do gosto pelas artes, e, the last but not tbe least, a das artes como tal.

Veloz, torrencial, vulcânico, do computador Sena pula sempre pare o écran tudo em cadeia, quase corrente de consciência. O seu ensaio é uma fala escrita. Larga da pena ou da máquina como abre a boca. Deixa correr. É o cérebro que lhe move as mãos, como é também o cérebro que lhe abre a boca e faz jorrar as palavras e as ideias em catadupa, sem tempo para se alinharem, às vezes desconchavadas, aos empurrões – o que dá para perguntar se Jorge de Sena respirava e se os parágrafos aconteciam apenas quando acendia um cigarro ou lhe faltava papel.

Não resisto, a propósito, a contar uma história. Em 1977, pedi por cana a Jorge de Sena um artigo sobre a sua experiência de imigrante nos Estados Unidos para a revista Gávea-Brown que tencionávamos lançar na Universidade de Brown. Jorge de Sena enviou-me uma dúzia de páginas compactas com um belo texto exactamente do género de que falei aqui – «Ser-se Imigrante e como» (24). Ao passá-lo ao computador, a nossa secretária queixou-se de que estava a ter problemas. 0 computador rejeitava o texto. Tentativa após tentativa, sempre sem efeito. Vem finalmente um técnico. Analisa o caso e encontra a explicação: o disco do computador só memorizava um determinado número de palavras. Quando chegava perto do fim, ao encontrar um parágrafo, encerrava e passava para outro. O pobre do computador não encontrava no texto de Jorge de Sena um parágrafo onde parar e respirar, e a memória do disco era mais curta que o fôlego de Jorge de Sena...

Se Sena tivesse, como interlocutores, falantes de outra língua onde o discurso teórico é de nível mais elevado do que em português, não há dúvida que a inteligência e a sua monstruosa capacidade intelectual o teriam feito contribuir não apenas para a introdução de um estilo crítico novo em Portugal, ainda que pessoalissimamente assimilado, mas para o desenvolvimento dessas mesmas concepções teóricas, na vanguarda das fronteiras em que elas acontecem. Jorge de Sena era leão com crina fana e basta para ir à liça.

Mas, afinal, que direito tenho eu de vir dar nicadas num género onde Jorge de Sena só por imposição e esporadicamente se intrometeu – o ensaio teórico, quando ninguém, excepto talvez Mécia de Sena, saberá como conseguiu ele produzir tanta poesia e prosa literária? Para mais, só para sugerir que esses ensaios necessitavam de um editor (no sentido inglês) que lhe trabalhasse a forma do texto, o formato até, remetendo para notas, ou para outros textos, parágrafos inteiros que desviam a atenção do leitor das ideias centrais que o autor quer transmitir em cada ensaio?

A resposta é muito simples: para homenagear Jorge de Sena. Eu que, para além do escritor, sempre admirei nele o intelectual que pensou por si e que nunca procurou, como tantos na república das letras, esconder a sua ignorância acobertando-se por detrás de palavreado rebuscado ou opaco; o desencadeador de vendavais saudáveis que derrubaram árvores frágeis e arrancaram outras sem raízes fundas; a metralhadora imparável de ideias; o vulcão a eclodir pontos de vista e perspectivas na praça intelectual portuguesa. Sempre estimulante, sempre refrescante, sempre provocador, ainda que nem sempre exacto e correcto, foi na pequena demonstração desse .nem sempre. que encontrei um pequeno espaço para poder vir homenageá-lo e testemunhar que o leio como ele queria e fez aos outros. Ele, que escreveu algures ser às vezes o mero louvor a pior maneira de prestar homenagem a alguém.


NOTAS:

(1) Vergílio Ferreira, Conta-Corrente, vol. IV, Lisboa, Bertrand, 1986, p. 154. Uma vez escreveu sobre filosofia portuguesa, mas esse texto é apenas uma pequena crónica satírica sobre o movimento, «Fragmento de Uma Crónica Perdida Referente às 'Origens da Filosofa Portuguesa'», in Reino da Estupidez I, 2ª edição aumentada, Lisboa, Moraes Editores, 1979, p 29-35

(2) Eugénio Lisboa, Estudos sobre Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional-Cssa da Moeda, 1984.

(3) Harvey Sharrer and Frederick G. Williams, eds., Studies on Jorge de Sena, Santa Barbara, Jorge de Sena Center for Portuguese Studies, Universiry of California, Santa Barbara, and Bandanna Books, 1981, p. 229-235.

(4) Jorge de Sena, Dialécticas Teóricas da Literatura, Lisboa, Edições 70, 1977, p. 109-167.

(5) Francisco Cota Fagundes, A Poets Way With Music: Humanism In Jorge de Sena's Poetry, Providence, R.I., Gávea-Brown, 1988, p. 1-36.

(6) Dialécticas Teóricas da Literatura, ed. cit., p. 109.

(7) Ibid., p. 109-110.

(8) Ibid., p. li4.

(9) Ibid., p115.

(10) Ibid., p. 119.

(11) Ibidem. Sena é bem explícito quanto ao pluralismo metodológico: «Parece ser eclectismo o que é a única atitude científica possível os métodos, se o forem, todos nos são úteis e fecundos e todos não são de mais para esgotarmos os multíplices aspectos de uma realidade que é um objecto complexo. (p. 119). Posse isso escrito em inglês, dir-se-ia que, anos depois na Califórnia, Sena teria sido lido já por Paul Feyerabend, o filósofo que de Berkeley apregoou o «anything goes» ou o «anarquismo» na metodologia científica: qualquer método serve desde que resulte. Veja-se Paul Feyerabend, Against Metbod. Outline of an anarchist theory of knowledge, London, New Left Books, 1975. Mas Sena, e naturalmente Feyerabend, conheciam T. S. Eliot.

(12) Ibid., p. 111.

(13) O que atrás foi dito sobre a ausência em Sena dessa atitude de vir ensinar aos críticos da praça o que aprender com os livros «lá de fora» – hábito tão lusitano e que tem proporcionado a alguns o poleiro de Intelectual Encartado de Importador do Pensamento do Exterior – está bem patente no modo como Sena castiga o passo retardado dos nossos críticos em relação ao estrangeiro: «Por certo que muita gente, em Portugal, tem conhecimento de que houve e há críticos como»... e cita vários nomes, para a seguir afirmar: «Mas muito poucos serão os que efectivamente o aprenderam. O cómico da situação é que temos de defender hoje o uso de muitos métodos críticos 'modernos', quando internacionalmente se desenvolver já contra eles, ou contra o exclusivismo de alguns deles, uma reacção crítica.» (Ibid., p. 133).

(14) Ibid., p 134

(15) Ibid., p. 129.

(16) Ibid., p. 134. Onze páginas antes Sena fizera uma afirmação igualmente clara sobre a subjectividade estética: «nenhuma crítica pode imaginar-se funcionando num absoluto de estruturas e de correlação internas em si. Não há, na arte como na vida, em sis, a não ser como 'hipótese de trabalho', e é este o erro principal de muita critica que se imagina 'ontológica' ou 'fenomenológica'» (p. 123). O uso da expressão «hipóteses de trabalho» é muito estranho. Sena não quer dizer isso e adoptou mal um termo que nessa altura se tornara corrente. As hipóteses de trabalho podem usar-se em arte, mas não se poderá reduzir os tais em sis da arte a «hipóteses de trabalho». Eles são muitas vezes postulados estéticos legítimos e de aceitar desde que coerentemente articulados.

(17) Ibid., p. 119.

(18) Ibid., p. 132.

(19) Ibid., p. 142.

(20) Ibid., p. 149.

(21) Ibid., p. 143.

(22) Ibidem.

(23) Ibid., p. 167.

(24) Publicado na Gávea-Brown, vol. I, nº 1, 1980, p. 7-17.

(25) Sobre os períodos complexos de Sena, Nelly Novaes Coelho escreveu com muito aceno: «Índice expressivo da complexidade inerente ao seu pensamento é a natureza da sua estrutura linguística: períodos complexos, sempre longos; oração principal constantemente cortada ou entremeada ou ampliada por inúmeras subordinadas circunstanciais ou explicativas; uso abundante de parênteses e notas de rodapé. Assim é que uma leitura não pode ser feita correntemente ou de um só fôlego; antes exige paradas contínuas e retornos de releituras, para que se possa apreender, pela lógica, a multiplicidade de sentidos e questionamentos que ali se imbricam.» Nelly Novaes Coelho, «O Ensaísmo Crítico de Jorge de Sena», in H. Sharrer e F. Williams, org., Studies on Jorge de Sena, ob. cit p. 234. Os exemplos de parágrafos excessivamente longos são muitos. Veja-se por exemplo um de oito páginas em Estudos de Literatura Portuguesa – II (Lisboa, Edições 70, 1988), p. 72-80. (Curiosamente, reparo agora que eu próprio acabei por inconscientemente iniciar este ensaio com um parágrafo à Jorge de Sena.)

Onésimo Teotónio Almeida, «O Ensaio Teórico «à la» Jorge de Sena», em Colóquio / Letras, 1991

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