Letras & Letras

Ensaios


Elipsexcrever

Silva Carvalho: O princípio do Eco, o fim da Poética (1)

Toda a escrita é porcaria. [...]
Todos aqueles que têm pontos de referência no
espírito, quem dizer, num certo lado da cabeça, em pon-
tos bem localizados do seu cérebro, todos aqueles que
são senhores da sua língua, todos aqueles para quem exis-
te altitudes na alma, e correntes no pensamento,
aqueles que são os espíritos da época, e que nomearam
essas correntes de pensamento, penso nas suas tarefas
exactas e nesse ranger de autómato que espalha por todo
o lado o seu espírito,
– são porcos.


Antonin Artaud, in O Pesa-Nervos

Pode-se escrever uma história da poesia portuguesa do século vinte pela figura – geométrica e não retórica – da elipse. Este século é, em certa medida, o percurso até essa elipse: caminhada que não é evolutiva, mas que é a da extinção de uma lógica e de uma prática poética. Há dois grandes responsáveis (nos vários sentidos do termo) por essa extinção: Fernando Pessoa e Jorge de Seria. (Eu simplifico, mas não há muitos mais – suspendo, inevitavelmente, na exiguidade deste comentário, a peculiaridade primacial nessa história de Sá-Carneiro, Cesário, Nobre e Pessanha, e, claro, o legado tanto ético como literário de Antero). Designemos essa lógica pelo verbo circunscrever, aqui entendido não simplesmente como o acto de escrever em círculo nem rigorosamente o de escrever por ciclos, mas o de escrever de um círculo e para o seu centro por mediações aproximativas (o fim da lógica foi a apropriação, a possessão mesma do centro). Exactamente: escreve-se por mediações centrípetas, e, depois de escrita, essa poesia lê-se por irradiações centrífugas do sentido. Ou, para convocar a história literária, o acto de leitura que é suscitado pelo circunscrever é a tentativa de captação dos meteoros erráticos do sentido, provenientes de um astro que deveio negro mas que ainda irradia, ainda lança raios sobre. Em certo grau, o acto poético de circunscrever é como que um espectrógrafo periclitante dessa radiação e a sua poesia, em matizada grafia negra, é o espectrograma lúgubre – é o luto e o trabalho de luto da radiação -, ou é a sua representação espectral, difusa, difractada. (Difracção: as palavras nesse acto de escrita são fragmentos desintegrados de uma unidade, e a poesia é a paradoxal rede de difracção que, em torno do centro, presentifica e desintegra a unidade. Por isso não é o discurso nem a frase, mas a palavra difractada da Palavra difringente, que constitui o denominador da sua poética ou, tão-só, da Poética. Seja a equação da Poética:

P(A Palavra difringente)= coeficiente poético.

p'(as palavras difractadas)

Di/fracção: fracção da Palavra sobre as palavras, onde estas indiciariam a contensão e a contenção poética porque indicariam em quantas partes se havia dividido a unidade. (Palavras: fragmentos – sempre deficitários – em vista do sentido). Mas a contradição ténsil está toda aqui: a poesia regista uma força centrífuga – a emanação do Sentido de que ela é a privilegiada mediadora -, mas regista-a em sombra – porque sendo ela centrípeta terá que se manter afastada ligeiramente do núcleo luminoso, para poder materializar-se e não sucumbir ao silêncio total e vertiginoso do centro com seu encandeante magnetismo; ou de novo: um astro está a morrer, a contrair-se – implode definitivamente com Nerval, -, mas a poesia do circunscrever dele ainda consegue emanar luz: uma estranha «anã branca" que rodopia e se cumpre e se basta – bordeja um langor extasiante mas consome-se em sua própria radiação mortífera. As letras são o sombrio desastre que maculam a página.

Pessoa vai soerguer o centro, criando, acima deste, uma espécie de labora tório das sensações, ou "o teatro das sensações» José Gil). Mas Sena, decisivamente, vai descentrar o acto poético: não se trata mais de um sujeito excêntrico-transcendental – trata-se mais radicalmente do fim do Sujeito poético porque é a descentragem, a absoluta descentragem – Sena diria "é o alheado que sou eu" – do que se tem designado por acto poiético (ficará necessariamente para mais tarde explicitar o que entendo aqui por fim do Sujeito poético) (2). Silva Carvalho (n. 1948) é muito provavelmente o poeta (se ainda faz sentido chamá-lo, assim, ou decididamente, terá que ser outro o sentido cada vez que o chamarmos assim, ser outro o sentido, e não ter outro sentido), muito provável mente o poeta vivo que de um modo mais radical interpretou Pessoa e Sena. ((Deleuze e Guattari falam, a propósito da figura do livro, em rizoma, no lugar de raiz e de árvore: noutro lugar desenvolverei: o poeta vivo que nada funda – daí a sua absoluta novidade – e que mais rizomaticamente [e não radicalmente] interpenetrou Pessoa e Sena. Silva Carvalho não escreve mais livros-raiz, como de um certo modo Seria ainda os concebia, embora o não praticasse já em cada poema, e, o que é mais, na própria vida). Em Portugal é uma grande audácia. Mas, como outras grandes desatenções, tem-nos passa do despercebida. E daí também, nada curiosamente, mas muito, muito problematicamente, o seu lugar de aparente marginalidade do círculo literário português. Dir-se-á, e com razão, que esta leitura é extremamente redutora, que a realidade é mais complexa e fluída, e que cada individualidade literária não é assimilável por nenhuma figurabilidade conceptual. É justo. Mas acres cento: primeiro, isto trata-se de um artigo de jornal (articulação de alguns dias: aqui Diderot é para mim um mestre); segundo, a minha caneta (vocês já haviam compreendido) não é a vara do Geómetra, acima da página: os conceitos que aqui se escrevem (e em certas linhas, em certas articulações se desenham) nada pre-vêem nem pre-dizem, mas literalmente eu acompanho – ou não escreveria – esse de quem se escreve; terceiro, e mais fundamental mente, ninguém aqui escreveu que a ruína da poiesisproduzia círculos per feitos: ao contrário, ela é habitada por ovóides de variegados estiletes, que se conformam na impossibilidade nostálgica de se adequarem – alguns de se espartilharem – ao círculo perfeito e concluso. Será a modernidade artística tão-só o dilacerar do círculo aberto, ou mais propriamente, a sangria da per manente abertura do círculo?

Circunscrever tem um centro e naturalmente uma miríade de pontos equidistantes. Dois deles são o suporte da fundação do centro hermenêutico: se o centro é o sentido, seja o ponto de partida como cifração e o ponto de chegada como decifração (3). A este regime da interpretação (em que o sentido é pré-dado, e não é diferentemente abandonado, e abandonado a si mesmo) correspondem em arte as obras originárias (– o círculo perfeito é isso mesmo, qualquer ponto devendo ser indistintamente de partida e de chegada). A revelarão estética (que é concomitante de uma recomposição artística) é o encontro – na circunferência – entre o ponto de partida e o de chegada, e por isso mesmo é o momento da máxima tensão (da mais longa reverberação, do mais conseguido aparentar) com o centro que, por ser imediato e estar definitivamente perdido, requer mediadores. A cifração do sentido é a ponta do compasso que viu (sempre no passado), que já havia visto o futuro tracejado da revelação estética (a cifração é sempre um pretérito mais-que-perfeito que demanda um futuro perfeito – "eu terei ou haverei cifrado" – e em certa medida um condicional perfeito – "eu teria ou haveria cifrado»). A Arte, enquanto busca perfurante do centro – consciente e seguramente desde Schlegel -, tem sido a alucinação de uma expressão transparente e pura, de uma plenitude ontológica intacta (e a limite intáctil). A apropriação do centro pelo acto do circunscrever tem, neste contexto, um nome específico: autotelismo poético. O autotelismo poético é esse extremo da cegueira crente da Palavra como instituídora da circulação do sentido transcendente pelo veículo imanente das palavras (4). A revelação estética não é já ou não é comente encantatória como na magia, mas mais propriamente, como sustentaria Northrop Frye, reavaliando o lugar histórico e a idade mítica da magia no pensamento ocidental, uma revelação, eu diria agora, já incantatória. (Partilhemos o latim, e por isso trilhemo-lo, e espoliemo-lo e desapossemo-lo dos seus bens, [re]inventando a sua origem e inventando o seu sentido): incantatória porque cantando para dentro de si mesma, reverberando o puro eclodir do canto, e mais do que tudo isto, porque concentrando e concatenando em si mesma o poder outrora da manteía (poder de adivinhar e de transmitir a adivinhação). Canto da possessão absoluta (e num certo sentido do auto-exorcismo) da manteía, e por isso canto em que o poder divinatório e divinizante se tomou frágil (a sua cintilação é o próprio nascimento do canto), se consumou árido, e se expirou parco, ou elemental como sintetizará Ramos Rosa. Revelação por conseguinte dessacralizada e simultaneamente reteologizada, secularizada porque não assimilável nem arregimentável a qualquer religião, mas recuperadora de um fundo – do fundo, em absoluto – outorgante, «autorgante" (ecoa-me a língua), necessariamente mediado. Ramos Rosa tem razão em sugerir que doravante Deus é nulo e nu, mas tem-na porque o exergo da sua poesia, em particular após Voz Inicial, como que adverte: "eu autorizo-me, eu, no limite da nulificação e da nudez ontológica, ocupo o lugar vagado por Deus, e ocupo-o através da única forma doravante possível: pela Estética". Este doravante situa-se de forma sistemática, e também histórica e paradoxalmente, em Hegel. E, nisto, a modernidade artística reincide estruturalmente na urgência teórica do contexto crítico, filosófico e religioso em que se forja e se problematiza o Romantismo. Aliás, é isso que a faz extremar, e em certa medida esgotar, a matriz fundadora para a subjectividade deste movimento cultural e desta época crítica que, sob muitos aspectos, ainda nos consubstancia e sobrevoa: o facto de a autovalidação da actividade artística se erigir e legitimar como religião estética. É neste sentido que o autotelismo poético, como exuberância da união paradisíaca da relação perdida entre as palavras e as coisas, é um duplo fim (de si próprio e da lógica estética e histórica de que é portador): apropriação estética do centro e rasura progressiva da porção plana do traçado geométrico, isto é, na sua lógica, da diferença que separou para sempre o nomear do mundo, o dizer da realidade. O autotelismo poético será então a substituição dessa distância pela irradiação do puro centro imanente/transcendente que nulifica e desnuda Deus, derramando e circunfundindo o próprio sentido. Poética ab ovo: circunfusão do sentido, a partir de um centro (a Poética) para uma circunferência (a Poesia) já sem necessidade de círculo. Poesia sem mensagem e sentido prévio que não o da revelação originária do ser: nulificando a distância (diâmetro) pela incorporação do centro desnudo – e eis o Círculo Aberto, que mantém portanto parte da circunferência e sobretudo preserva o Centro na Distância.

Aqui tocámos no extremo de tudo o que tem sustentado as teorias do símbolo, porquanto é o limite mesmo dos dualismos de imanência vs transcendência, de significante vs significado, de som vs sentido, e é o próprio símbolo na sua fase exorbitante (mas ainda é um símbolo, mesmo que epifanicamente de si mesmo), literalmente fora da órbita de um círculo, e desesperadamente querendo incorporar o centro originário do ser e, o sentido originante da poesia. – É esse o seu fantasma antropológico (uma vez mais: o seu spectru, que é o resultado da dispersão. Neste sentido, o ideal do circunscrever é grafar para lá do espectro visível, na borda das regiões ultravioleta e infravermelha. Não é outra coisa o ver total: escrever com ultravioletas e infravermelhos curvilineamente. Ideal: ser ultra e infra simultaneamente pelo negro raso da página. Lá, então, circunscreve-se o invisível). O Ideal curvilíneo da Poética desenha-se pela e na espectralidade contínua da Poesia: colmatando a falha (ontológica), agregando a multiplicidade (dos singulares), con-sagrando-se como Uno, e acedendo, em passividade, ao indiferenciado pelo algures iluminante que instaura a poesia. E assim que, impessoalmente, esta poesia ainda se enuncia como dualismo, no seu esplendor agónico e terebrante, e em Ramos Rosa poderosamente jubiloso. Digo isto sem a menor desconsideração: muito inversamente, eu leio-o séria e gravemente (não há leviandade alguma na sua fruição poética, ao contrário de alguns epígonos seus). Mas é tudo isso que faz dele – trágica, integral e honestamente – talvez o mais eminente e modelar caso do nosso muito específico estado geral de sobrevivência moderna, a ser esmiuçado noutro lugar. Direi, por fim: poesia do circunscrever: apocalipse do sentido esteticizado, parousia do ser Absoluto, osmose do derradeiro símbolo em si mesmo. É então sintomático que esta concepção literária (que, em "segundo grau", deverá por sua vez ser revelada pela interpretação crítica, e por isso «mimetizada", e cujo "terceiro grau" – o modelo é ainda o Íon de Platão – corresponderá à mudez extática e eidética do leitor) possua uma expressão -chave: "cosmogonia poética". É que é exactamente disto que se trata – no fim do kósmos, que não é um começo puro e simples do chaós, há uma arte que subsiste como poiesis -Metáfora absoluta, ou metáfora das metáforas, da Criação do mundo. Autotelismo poético: extrema unção da poiesis (5).

Será possível ter uma língua elipsexcrevendo (6)? Não, absolutamente. Quando muito é-se uma língua, é-se translinguístico, infalivelmente retomando Pessoa. E é-se anterior à voz, ou melhor, é-se anterior à posse. da sua jubilação, já nem falo enquanto expertise formal, mas tão-só enquanto articulação explícita – e a poesia irrompe daí, prorrompe aí (rompe literalmente antes de qualquer círculo, antes de qualquer sentido dado a uma voz detentora de uma língua). É-se será o eco de "s"? – "s" não é a letra da passagem, do lassar, do impasse? A poesia prorrompe e prorroga, no sentido em que ela dilata o tempo e o espaço anterior à voz, ela protrai, sobretudo ela protrai-se, diferindo de si a si mesma e por si em si mesma em constante cruzamento instantâneo com o sentido. Não há telos, porque não há círculo: há: alteridade brutal e efémera, diferimento cru do acto de escrita, temporalidade, durabilidade, exposição do corpo, língua como corpo, língua que ainda não significa (míngua labial?), história, a história dos homens, a sua dor, o seu peso, o prazer desse peso, a finitude e os disparates inerentes à sua articulação, há: tentâmen que nos atravessa. Poesia: dilatação do vazio sendo (e sentindo-se) sentido. Sem auto, sem telos, sem reenvios do fim ao princípio e do princípio ao fim, mas agora: protraimento, dois focos ao mesmo tempo, fim/princípio. No eco o princípio, ou o princípio do eco é ser o fim a cada início, como quem se abre "ao que está em frente e não é ainda mundo/como quem se despede da morte e sabe que vai/nascer (p. 113). Poesia: eco simultâneo dos dois focos da elipse da escrita.

Não, ela não procura a origem do ser nem sequer a do eco, nós somos isto – dois focos ao mesmo tempo (logo somos "espacejáveis", diferentemente de espaçosos), o eco sim, é que é originário, e por natureza, por princípio, diferido. De outro modo (e aqui a figura geométrica chegou ao limite da sua operacionalidade crítica, de certo modo a elipse tomou-se in-consistente, pelicular, sublinear, quase subliminal, instantânea, absolutamente instantânea, e simultaneamente espaçada, espaçada pelos dois focos): não estamos sempre nos dois focos, não há nenhuma omnipresença nem nenhuma omnivisão, mas somos os dois focos que acontecem cada vez que somos (devendo-se precisar que se trata de dois focos que jamais subsistem, e para ser rigoroso, de uma vez que não é vez – a vida não é sucessão até ao corte, nem alternância de um foco ao outro, mas novidade incomparável, prorrompimento inqualificável, essa fímbria bifocal a formar-se "pela primeira/vez o que sem dúvida não vive da vez (...)" (p. 82)). Ou, se quiserem, nós serpenteamos os dois focos ("s" é uma serpentina espaçando a origem, e implicitamente des centrando-a). É-se finita novidade infinita. S in-finito em formação, sempre singular: não vindo do fundo do -o mas aqui é-se infinito na "vertical», é-se pedestre, necessariamente finito – o infinito apresenta-se em partilhas finitas de "é-ses", sem substancializar o infinito, sem passado e sem futuro, mas só presença – paragem na passagem.

S, não como o infinito incompleto, mas como o finito completo, renovado infinitamente. É por isso que a figura da elipse – agora, por uma vez só, a figura retórica -, e num certo sentido todo o acto de escrita, é também (devemo-lo precisamente a Genet), um eclipse, a impossibilidade de um ver total. Os dois focos da elipse, ao aparecerem em simultâneo, anulam, raspam, rapam (há sempre algum atrito, dor e prazer) o centro perspéctico do círculo: a escrita não é mais vórtice profundo em torno do ponto do ver total (que revelaria o sentido), não é mais significante puro emanando significado, mas elipse à superfície, fímbria sem profundidade, membrana que é sentido, membrana a perder-se, a perder os sentidos: eclipse da pele. É-se desfoca e foca a elipse da escrita, é-se os dois focos da elipse da escrita, como uma lente bifocal, simultaneamente para visão próxima e distante, simultaneamente parciais, de viés e de revés, em pregas, em frente, pelas ínfimas articulações, o longe aqui à mão, um pedaço de mão a súbitas longínquo – poético eco

Em serpentina: eco po(é)ti(co) – em simultaneidade constitutiva, um do outro, um para o outro, diferindo para a frente, fazendo tempo, abrindo espaço, mas também de mim para ti, e de nós para os outros, deste que escreve para aquele que reescreve (: a limite esta poesia não se lê – não porque seja ilegível, ao contrário, muito ao contrário, ela ultrapassa – tocando – as raias e todos os diâmetros da legibilidade: ela é desarmadamente, pro-vocadoramente [apetece-me escrever: blasfematoriamente] legível, porque ela é a tua, a nossa legibilidade ou não será de todo legível e nem sequer poesia será. A limite não se lê porque então só se escreve, "em ritual/de sentidos, a leitura o nascimento do homem" (p. 38), num apelo não a que o poema tenha outros sentidos [que o completariam por acrescentos], mas num apelo, talvez inédito na poesia portuguesa, a que a leitura/escrita e a escrita/leitura sejam literal mente sentido com o poema que, "depois de irrompido jaz [...] sem leitura,/ permanente escrita de uma vontade que se desconhece" (p. 48) – e por aqui será necessário continuar algures um diálogo inopinadamente renovado com Bakthine). Vida: eco sem anterioridade, eco do que não tem anterioridade, repercutido infindamente. Não há pureza a reconquistar, tudo é táctil ou não é, a coisa e o seu eco, o eco com a própria coisa, porque não se é eco (deriva do) de um primeiro rebate, mas é-se será o eco com a própria coisa. "O que se ouve não é somente uma cascata ou os ventos (qualquer que seja a sua mensagem) mas o princípio do próprio eco», é uma das epígrafes do livro, assinada por Geoffrey H. Hartman (7). Eco é a tactilidade do mundo e a tactilidade na língua, perpassando a escrita e fazendo-a literalmente tactear, tartamudear, blaterar pelos dois focos.

Eco e poético são os dois focos da elipse da excrita – o poético doravante não tem uma essência a circunscrever nem um sentido a revelar, e o eco e o seu princípio não são o reenvio modulado (: apropriado pela voz do poeta) a essa essência, nem a configuração estética desse sentido. fim do "círculo hermenêutico» ou fim da hermenêutica enquanto decifração: a aporia da escrita – seria melhor escrever, a aporia em escrita – é o bordo interior do elipsexcrever que pulsa sem essência em constitutiva alteridade (8). Compreender-se -à, então, que um dos principais fluxos desta poesia (sim, fluxos e feixes, e não temas) seja o "silêncio", implicitamente conectado com o da "fala", o da "língua" o da "voz" e o da "linguagem" (9). Há outros, evidentemente, com uma importância similar, tais como o "sentir", o "pensar", a «memória", a «política», a «história», a "ilusão", a "morte", assim como possíveis conjugações: "o silêncio da língua", etc.. Mas fiquemos por aqui. E na sua inversa: «a língua do silêncio". Não porque sejam mais importantes que as outras (não há nada de mais importante, nem de mais estrutural nesta poesia), mas porque permitem para já, com outras conjunções (e dijunções e injunções ...), uma leitura transversal de outros feixes e fluxos. (Irrompe-me aqui inesperadamente Hans Castorp, no momento em que, pela primeira vez, ganhou coragem para falar a Clawdia Chauchat, porque a amava ferozmente, o nessa inexcedível Montanha Mágica de Thomas Mann. Relembro que, estando o original escrito em alemão, aliás a língua do jovem amante, e que Clawdia sendo eslava com seus "olhos tártaros" – exprimindo-se, no sanatório, correntemente nessa mesma língua, será, no entanto, uma língua estrangeira – a francesa – aquela que começará a entrelaçar [a serpentear?] os dois, num diálogo abruptamente encetado por um "tu", após várias tímidas hesitações e ocasiões goradas: «[...] avec toi je préfère cette langue à la mienne, car pour moi, parler français, c'est parler sans parler, en quelque manière [...] Ça suffit... Parler – continuou Hans Castorp – pauvre affaire! Dans l'éternité, on ne parle point. [...]" (10). E quando ela insiste tratá-lo pour "vous", ele exulta-se. "Jamais, Clawdia. Jamais je te dirais «vous», jamais de Ia vie ni de la mort, se é que se pode dizer assim. Deveria poder-se. Cette forme de s'adresser à une personne, qui est celle de l'Occident cultivé et de Ia civilisation humanitaire, me semble fort bourgeoise et pédante. Pourquoi, au fond, de la forme? La forme, c'est Ia pédanterie elle-méme! [...] (11). E, depois, a declaração, no limite da língua, absolutamente estrangeira à língua e à possibilidade de testemunhar o amor: "– Je t'aime – balbuciou – je t'aime de tout temps, car tu es le Toi de ma vie, mon rêve, mon sort, mon éternel désir... [...] Oh, l'amour, tu sais... Le corps, l'amour, la mort, ces trois nem font qu'un. Car le corps, c'est Ia maladie et la volupté, et c'est lui qui fait la mort, oui, ils sont charnels tous deux, l'amour et la mort, et voilà leur terreur et grande magie! [...] Oh, enchantante beauté organique qui ne se compose ni de teinture à l'huile ni de pierre, mais de matière vivante et corruptible, pleine du secret fébrile de Ia vie et de la porriture! [...]" (12).

Falar sem falar. Mas que língua é esta que faz falar a anterioridade à posse da língua pela língua? Heidegger, por oposição a Husserl, fala de Auslegung (13) (a interpretação do anúncio ou do apelo) do ser já como linguagem, como analisa Nancy, o que implica o abandono da concepção de «percepção pura» (e igualmente, escreve, no comentário do mesmo parágrafo do Sein und Zeit, que este "afirma contra Hegel que a "percepção sensível» não começa com a linguagem, mas antes é esta que começa com aquela para cá de si mesma, isto é, para cá do sistema linguístico e da consciência do sujeito»)" (14). A linguagem começa para cá de si mesma – e num certo sentido começa no eco do que ainda não é linguagem. Isto é um absurdo, clamar-se-á, mas eu direi: isto é o bordo da linguagem sem limites, porque escrever "eco" é falar de um princípio que não é origem, ou se se quiser, e a origem diferida. É este, aliás, o único princípio do eco. E seria então tentado a dizer que o único princípio do elipsexcrever, à semelhança do traçado de uma elipse, é a simultaneidade de ambos os focos, que a cada instante formam cordas diferentes mas que somam sempre uma dimensão que permite a curvatura elíptica, isto é, e doutro modo, que faz com que a existência diferida se excreva em poesia. Ou ainda por palavras outras: "[...] julgo muitas vezes que quem escreve estes poemas / não sou eu, seja este eu qual for, / mas uma testemunha de um tempo de humanidade." (p. 87) . Faz-se falar o silêncio (como já de um certo modo Seria fazia falar a solidão), não como demanda extática da revelação – o silêncio não jaz antes da linguagem, mas trespassa-a, repassa-a, entrelaça-a, serpenteia-a e descentra-a como a possibilidade emergente do sentido em linguagem. Ele portanto não tem que ser reconquistado (há aliás todo um "discurso crítico da circunscrita" que visa a autodefesa da poesia corno guardiã do silêncio na era ruidosa da comunicação de massas...): a anterioridade do escrito, da articulação (explícita, diria), não é o silêncio que o poeta tem o dom de interpretar circularmente e inscrevê-lo sobre a página como mudez ressoante, mas é a linguagem e o seu (e nosso) silêncio antes da sobrecarga sistémica e significante da articulação linguística. O silêncio só existe para os homens, logo só acontece quando há linguagem. A linguagem, desde que se forja, e enquanto é movimento forjado e partilhado pelos homens, é constitutivamente serpenteada de silêncio. Instaurar uma pretensa reminiscência do silêncio do passado ou uma presumível sondagem do silêncio do futuro, e instaurá-las a ambas no presente da escrita, é uma fuga ao silêncio de ser homem, à presença do silêncio, à presença do silêncio insignificante mas que fala, à presença insignificante mas que fala do silêncio, à presença impura e simplesmente. Pensar no silêncio sem o homem (e pretender que a poesia seja a expressão universalizante desse silêncio) é pensar silêncio sem homem e sem mundo, é iludir que o único silêncio é o dos homens e entre os homens no mundo (não falo, evidentemente, de uma primeva e pantanosa Terra inabitada, ou de um hipotético e gélido espaço galáctico sem Sol – aí não houve ou não haverá, ficção científica à parte, linguagem, e portanto silêncio, o que é diferente de não haver ausência de som e matéria emissora de som. Quem pode exprimir o "silêncio puro", e quem julga exprimi-lo?).

É neste sentido que esse pensar é também adiar ser homem, porque se trata de um silêncio no fundo intraduzível, e porque esse silêncio possui uma essência que só o silêncio hermético-fusional do poeta poderá cabalmente exprimir (ao contrário de Thomas Mann, que nos escreveu que o silêncio do amor se escreve -e passa em silêncio – pela partilha singular das línguas. E isto requer tradução, e sempre partilha in-compreendida, traição, tracção perda e ganho de línguas. E requer um outro entendimento do que se tem designado por inefável poético, e. por «matéria negra» da escrita, e, para começar, Silva Carvalho não o apelida indizível nem imprevisível, mas tão-só "o impredizível", que não é mera espectralidade negativa do dizível mas que é este impregnado de silêncio (15)). É porém nítido, é porém legível, que essa anterioridade só se poderá escrever com alguma gramática, sintaxe, significados, etc.. Mas o que é determinante é que essa "anterioridade" só existe diferindo como presença, e que, sendo ela indomável ao sistema linguístico (e de algum modo ao "regime de significado"), será poreticamente articulável como linguagem despossuída do porvir, coincidindo instantaneamente consigo própria na invenção de inauditos sentidos da linguagem. Para o elipsexcrever, só há silêncio no presente – a ser dado, abandonado, partilhado. A isto chama-se uma língua que quer "dizer/mais do que significar" (p. 103), e "a experiência do humano enquanto língua" (p. 43). Elipsexcrever: pacto entre os humanos nas línguas. Podemos elipsexcrever: o silêncio – como o sentido da vida – aí não se inscreve mas excreve-se. (Estamos muito longe da noção de ritmo, de rima, de harmonia, de composição, de unidade, etc., tal como até aqui têm sido teorizadas – mas não como imposição de um puro niilismo, mas como deslize permanente de um sentido que abre sentido, de um sentido que somos nós sem sub-sistirmos, mas que somos literalmente ex-sistindo. E é por isto, ex-actamente por isto, que elipsexcrever para quem escreve não pode ser um conceito [e porque a poesia não pode mais ser definida]. Silva Carvalho diria talvez que é um conceito ambulante, como tantos outros que em rede delineiam o livro: mas aqui eu preferiria a conjugação, mantendo-me fiel a Deleuze: elipsexcrever é um percepto ambulante.) (16)

Há todo um estudo a fazer em detalhe sobre as diversas nomeações que toma essa anterioridade à voz que não permite a posse da língua – em progressão surda e muda: "fala/do silêncio" (p. 15), «homem de uma língua ignorada» (p. 16), «silêncio onde sou homem» (p. 19), "vozes e sons,/não há língua» (p. 22), "que língua ousa ser a linguagem de agora" (p. 25), "coro inexpressivo, anterior à voz,/contemporâneo da cora» (p. 27), "língua capaz de futuro" (p. 35), "experiência do humano enquanto língua" (p. 47), "magma de vozes" (p. 48), "canto/mais longo que a ancestralidade verbal" (p. 53), "a linguagem do porvir" (p. 56), "voz na ignomínia/dos sentidos que o corpo confundido/não sabe organizar" (p. 59), "aqueles que fazem da escrita uma fala" (p. 82), "a Vida trabalha-me/estranhas falas» (p. 83), "voz que barafusta no âmago do silêncio" (p. 98), "esta melopeia da língua/que não se reconhece na linguagem" (p. 102), "voz em frente» (p. 114), "ouvi/a nenhuma voz que vocifera de incompetência/um futuro» (p. 115). E ainda: à existência diferida, Silva Carvalho chamou «inexistência», à sua articulação possível, o «impredizível», às emoções e pensamentos que nelas perpassam, «inexpressões», e ao conjunto do livro, «inexistência verbal". No mínimo, há qualquer coisa de sublingual que faz parte doravante da nossa vida enquanto língua (sublingual porque justamente ela subverte, destrói, erradica e expulsa tudo o que possa suportar e suster a língua, como as glândulas salivares activadas e que por sua vez activam a própria língua – com fome de nada, sendo a fome sublingual do nada). Se Thomas Mann escreveu que a vida é "a febre da matéria" (17), creio que se pode escrever que com Silva Carvalho a escrita e a poesia é a febre da língua, continuando a vida a ser esse mero grau de febre da matéria. Esse estudo, que está por fazer, não pode apenas basear-se neste livro do autor, mas sem dúvida que este é já um marco pelo seu pendor ora didáctico ora traumatizado de quem abre caminho, e em Portugal, de quem vive obsessiva e inevitavelmente a diferença. Esse estudo é o solo comum do futuro do nosso silêncio, não só da poesia, mas dos homens. Basta começar a falar.

Sim, "toda a escrita é porcaria", disse e escreveu Artaud. E é porcaria (ele fala mesmo em "dejectos", em «defecação», em "pedaços de gelo mal digeridos») porque a escrita testa a separação entre a voz e o corpo, entre a voz e o fazer. Por isso todo o escrever em Artaud é ruidoso e silencioso. Não há antagonismo: o ruído mais lancinante e o silêncio mais perturbante são a mesma tentativa de fazer coincidir pela voz e na língua a indiferenciação entre o dito e o escrito. Num só trago, Artaud engole e vomita a própria língua para soltá-la febricitante – o geyser, o gelo, o veneno da membrana lubrificante. Mas o que é espantoso é que Silva Carvalho, ao ecoar o seu impoder, fala em translínguas o silêncio (já não há língua-mãe), mas não, como ainda o foi em Artaud, para presentificar uma identidade indiferenciada, mas para se disponibilizar ao momento presente que ainda nada significa mas que já está a dizer. O escrever, o excrever, não procura presentificar a união perdida entre a voz e o fazer, porque doravante estes coincidem em acto. Não há. acto mais humilde, não há pacto mais silencioso que essa abertura sem sujeito – "uma palavra sem futuro» futuro da palavra no pensamento do nada." (p. 28). Elipsexcrevrer, neste sentido, é fazer eco de nada – por nada E o eco de nada a ser vida.

Podemos agora abandonar a elipse e o elipsexcrever – eram apenas palavras que designavam figuras de uma escrita sem fetichização possível, sem consignação de sentido e sem conceptualização literária, estilística, retórica, prosódica ou outra. E devemos abandoná-las a si próprias. Cada golpe de escrita, depois de serem suaves suicídios em Artaud, são hoje dolorosos e gozados nascimentos. Um a um, como quem passa e disse tudo em silêncio.

Lardy, 16-24 de Fevereiro de 1994

NOTAS

(1) Este subtítulo – e a sua extensão e o seu eco – faz naturalmente alusão ao livro do autor aqui comentado, O Princípio do Eco, Porto, Brasília Editora, 1993 (as breves passagens transcritas pertencem também a este volume, seguidas da numeração de página). Se nele escrevi Poética maiusculizada, é porque não me refiro à poética como reflexão que permanece com a criatividade artística. Se esse termo é ainda hoje pertinente e apto para caracterizar essa actividade, deixo a questão suspensa para um estudo em detalhe noutro lugar. Todavia posso adiantar que de nada já lhe pode valer a sua estafada etimologia, e tratar-se-á antes de uma poética-em-acto ou de uma praxis.

(2) Ainda assim derivo: não é por acaso que um certo Rimbaud foi determinante para o jovem Sena – mas isso faz parte da arqueologia de uma história, cujo esboço é em parte este artigo. E ainda: o estudo em toda a amplitude filosófica e com todas as implicações estéticas desse fim do Sujeito poético, trata-se porventura da questão crucial para compreender a situação da poesia portuguesa actual. Noutro lugar o farei, com um imprescindível diálogo crítico com as mais recentes tentativas dessa compreensão, mostrando como aí se lêem a livro aberto as insuficiências de tratamento teórico de noções corno «apagamento do sujeito», «retorno à subjectividade», «regresso ao sentido», "fragmento", "descentramento", "desconstrução», etc., que vão permitir concomitantemente uma concatenação de equívocos c contradições analíticas na leitura de obras em particular. Cf., por exemplo, de Fernando Pinto do Amaral, "O Regresso ao Sentido", in A Phala, edição especial, "Um século de poesia", Lisboa, Assírio & Alvim, Dezembro de 1988, pp. 159-167, e O Mosaico Fluido, Modernidade e Pós-Modernidade na Poesia Portuguesa mais recente, Lisboa, Assírio &Alvim, 1991; e de Fernando Guimarães, A Poesia Contemporânea Portuguesa e o fim da Modernidade, Lisboa, Caminho, 1989, e muito recentemente, "Poesia, subjectividade e antipoesia", in Jornal de letras, artes e ideias, ano XIII, nº597, de 14 a 20 de Dezembro de 1993, p. 9.

(3) É patente que faço aqui ecoar o uso e, de certo modo, o afastamento praticado por Heidegger em Sein und Zeit em relação à tradição hermenêutica, e muito claramente a expressão paradigmática "circulo hermenêutico". Aqui não mais posso fazer do que remeter o leitor para essa obra, pensando numa discussão e numa compreensão ulterior e propriamente teórica donde parte este artigo, e para outras obras posteriores de Heidegger, em particular Unterwegs zur Sprache, acheminement vers la parole. Todavia, devo explicitar duas dívidas, diria, para o que apelidei circunscrever e descentragem: I. relembro que Derrida escreveu, a propósito da interpretação – "Il y a donc deux interprétations de l'interprétation, de la structure, du signe et du jeu. L'une cherche à déchiffrer, rêve de déchiffrer une vérité ou une origine échappant au jeu et à l'ordre du signe, et vit comme exil la nécessité de l'interprétation. L'autre, qui n'est plus tournée vers l'origine, affirme le jeu et tente de passer au-delà de l'homme et de l'humanisme, le nom de l'homme étant le nom de cet être qui, à travers l'histoire de la métaphysique ou de l'onto-théologie, c'est-à-dire du tout de son histoire, a rêvé la présence pleine, le fondement rassurant, l'origine et la fin du jeu.", Jacques Derrida, in L'écriture et la différence, Paris, Seuil, 1967, p. 427; 2. Por sua vez Nancy exprimiu assim a inadequação da imagem do círculo como caracterização ontológica (já ressentida expressamente por Heidegger): "Le cercle, l'expression ou l'image du cercle, l'appellation 'cercle', et par conséquent Ia figure et le concept du cercle n'auront donc formé qu'une concession provisoire à une façon de parler, celle de l'interprétation philologique (et religieuse), et à une façon dangereuse car elle renvoie à la détermination de l'être comme subsistance-permanente (c'est la détermination cartésienne, cf. les § 20 et 21), comme substance et comme sujet.", Jean-Luc Nancy, Le partage des voix, Paris, Galilée, 1982, p. 35.

(4) Por isso se pode pensar também o circunscrever como uma máquina centripetadora – o inverso de centrifugadora, reagrupando os elementos numa nova unidade -, e o autotelismo poético seria então essa máquina a uma velocidade tal que se creria imóvel, tudo concernindo e ela própria confundindo-se com o centro da terra.

(5) Ao acaso dos dias próximos deste em que escrevo, apenas dois exemplos: um artigo assinado pelo próprio António Ramos Rosa (cf. "A procura do absoluto", in Jornal de letras, artes t ideias, ano XIII, nº 601, de 11 a 17 de Janeiro de 1994, p. 13), onde se aparenta, como vem sendo preponderante na mais recente prosa crítica do autor, a «procura» dos «místicos" com a dos «poetas", explicitando mais à frente que essa «[...] procura é sempre 'circular em torno a um centro, em torno a um eixo', (desta vez apoiando-se em versos da poesia de Agripina Costa Marques); o segundo exemplo surge do dia to de Fevereiro de 1994: ao fim da manhã, ligo o rádio e deparo com o programa "Panorama" da France Culture, dedicado à literatura portuguesa, com destaque para a recente tradução francesa do Ciclo do Cavalo de António Ramos Rosa. A determinada altura, um dos comentadores aproximou a força e o estatuto cósmico deste livro com os cavalos de Franz Marc – justíssimo aliás, quando até se precisou que, paralelisticamente, o processo plástico do poeta é progressivamente mais abstractizante – mas ninguém ponderou, concomitante mente, sobre o panteísmo do pintor...

(6) A primeira vez que anotei algo semelhante com este vocábulo data de um caderno de Maio de 1990 e então escrevi "eclipsescrever" (escoltado logo por quatro adjectivos, tais como "titubeante", "histórico", "dubitativo", "apaixonado", para os quais hoje sorrio...), com certeza ainda sem a precisão teórica que espero desenvolver adiante. Mas se o vocábulo não deve nada a ninguém, o Y nele acrescentado deve-se, em particular, à obra Corpus, de Jean-Luc Nancy (Paris, Métailié, 1992), e muito precisamente à sua designação de «excrita»: "S'il y a autre chose, un autre corps de la littérature que ce corps signifié/signifiant, il ne fera ni signe, ni sens, et en cela il ne sera pas même écrit. Il sera l'écriture, si l'écriture' indique cela qui s'écarte de la signification, et qui, pour cela, s'excrit. L'excription se produit dans le jeu d'un espacement in-signifiant : celui qui détache les mots de leur sens, toujours à nouveau, et qui les abandonne à leur étendue. Un mot, dès qu'il n'est pas absorbé sans reste dans un sens, reste essentiellement étendu entre les autres mots, tendu à les toucher, sans les rejoindre pourtant : et cela est le langage en tant que corps.", p. 63 (noção que já tinha sido abordada noutra obra sua, Une pensée finie, Paris, Galilée, 1990, pp. 55 64, a propósito de Bataille). Acontece ainda que, no decorrer mesmo da redacção do presente artigo, encontro alvoroçado um artigo do mesmo autor, dedicado à pessoa (e ao corpo) de Jacques Derrida, intitulado "Sens Elliptique", em muitos traços similares ao meu vocábulo (cf. Revue Philosophique de la France et de l'Étranger, nº2, Paris, Presses Universitaires de France, Avril-Juin, 1990, pp. 325-347, retomado, com ligeiras supressões, na mesma obra, pp. 269-296). Aceitei, tumultuado mas estranhamente tranquilo, a espantosa e natural coincidência.

(7) "Timely Utterance» Once More, in O Princípio do Eco, op. cit., p. 5, (minha tradução).

(8) O Princípio do Eco é o primeiro volume publicado de um anunciado conjunto com o título Trilogia Porética.

(9) Ficará por argumentar que o "silêncio" não é necessariamente o branco da página (como há muito se generalizou em certa crítica literária), ou melhor, é-o quando o circunscrever intercala o recorte espectrogramático com fracturas invisíveis, inaudíveis, impalpáveis. Mas quando não há dualismo, o süèncio não é o contrário da linguagem mas uma sua modalidade intrínseca. Nesse sentido, ele não é mera suspensão do dizer, e de certo modo escreve-se e faz escrever a escrita agramaticalmente...

(10) Thomas Mann, A Montanha Mágica, Der Zauberberg (1924). Sigo a "tradução" portuguesa de Herbert Caro (revista por Maria da Graça Fernandes), Lisboa, Livros do Brasil, col. «Dois Mundos", s/d, p. 351, e as suas notas de rodapé (os itálicos, acima transcritos, são do próprio Thomas Mann): «[...] junto de ti, prefiro esta língua à minha, porque para mim falar francês é falar sem falar, de certo modo [...]. É quanto basta... Falar – continuou Hans Castorp – pobre tarefa! Na eternidade ninguém fala. [...]". Relembro igualmente que o diálogo se passa na noite de Carnaval – uma espécie de data, como escreve Thomas Mann, «fora do calendário".

(11) Ibidem, p. 357: "Nunca, Clawdia. Nunca te direi 'a senhora', nunca, nem na vida nem na morte. [...] Esta forma de nos dirigirmos a uma pessoa, que é a do Ocidente culto e da Civilização humanitária, parece-me muito burguesa e pedante. Porquê, no fim de contas, a forma? A forma é o pedantismo mesmo. [...]".

(12) Ibidem, pp. 359-360: "Amo-te, – balbuciou –, amei-te sempre porque és o Tu da minha vida, meu sonho, meu destino, meu eterno desejo... [...] Oh, o amor, tu sabes... O corpo, o amor, a morte, os três são idênticos. Porque o corpo é a doença e a volúpia, ele é que causa a morte, sim, são ambos carnais, o amor e a morte, e aí reside o seu terror e o seu enorme sortilégio! [...] Oh encantadora beleza orgânica que não é composta nem de pintura a óleo nem de pedra, mas de matéria viva e corruptível, cheia do segredo febril da vida e da corrupção! [...]".

(13) Cf. Martin Heidegger, Sein und Zeit (1927), em particular § 31, mas também o 32, 33 e 34 (cf. ed. espanhola, El Ser y el Tempo, tradução de José Gaos, 2ª ed., México, Madrid, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1987, pp. 160-185). Uma vez mais, sou obrigado a endossar para outro lugar o estudo dos ecos deste? parágrafos num elipsexcrever. Adianto que o interesse não está propriamente nas reflexões sobre a linguagem, mas naquilo que nos poderá dar uni outro pensar do silêncio. Cf. a propósito Henri Meschonnic, Le Langage Heidegger, Paris, PUF, 1990.

(14) Jean-Luc Nancy, Le partage des voix, op. cit., p. 32 (minha tradução): «[...] ce paragraphe [...] affirme contre Hegel que la 'perception sensible' ne commence pas avec le langage, mais plutôt que celui-ci commence avec celle-là, en deçà de lui-même, c'est-à-dire en deçà du système linguistique et de la conscience du sujet".

(15) Faço claramente alusão ao último livro de Manuel Frias Martins, Matéria Negra, Uma Teoria da Literatura e da Crítica Literária, Lisboa, Cosmos, 1993, que, a vários títulos, recomendo viva mente. Mas direi que é preciso aqui perscrutar ainda mais a matéria negra da escrita. Resumidamente: o impredizível do elipsexcrever não é mera flutuação de sentido do indizível do circunscrever, ou por outras palavras, o tipo de opacidade linguística, epistemológica, etc., reivindicada Pelo circunscrever não será uma espécie de negativo espectral (e circular) da poética e luminosa Revelação (em todos os sentidos do termo, entre os quais fazendo aparecera imagem), justamente um tipo de matriz romântica? Ou ainda: o silêncio do circunscrever não será a inscrição espectral do centro, enquanto que o do eplipsexcrever não será, tão-só, a excrição deambulatória dos dois focos? Há aqui, seguramente, matéria (negra...) para outro artigo.

(16) Por isso às vezes acontece à excrita a invenção de vocábulos – e sobre este ponto, por estranho que possa parecer, há que encerar um diálogo com os equívocos – e a razão dos equívocos – dos movimentos Dada e Surrealista, por um lado, e por outro a poesia apelidada de "experimental». Cf., a propósito, o poema "A Melhor Maneira", pp. 55-56.

(17) Op. cit., p. 287.

Tomás Maia, ensaio publicado na revista Escritor

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