Silva Carvalho nasceu a 8 de Fevereiro de 1948 em Vila do Conde. Frequentou dois anos de Medicina na Universidade de Coimbra, antes de se exilar em Paris, França em 1969. Regressa a Portugal em 1975, onde se licencia em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, Leitor na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, EUA (1985-89), na Universidade de Goa, Índia (1990-91) e na Universidade de Massachusetts, Dartmouth, EUA (1997-2001). Lecciona actualmente em Sintra.
Obras Publicadas:
Poesia em português: Suor do Tédio (1969) Edições de Autor; Memória do Presente (1977) Brasília Editora; Canções (1978) Edições de Autor (esgotado); Assim (1979) Brasília Editora; Essas Vozes (1983) Quatro Elementos Editores; Antes o Paraíso (1985) Black Sun Editores; 75 Sonetos (1985) Solcris Editora; Ao Acaso (1986) Brasília Editora; Setembro (1987) Solcris Editora. Pentalogia Americana: Da Estupidez (1988) Brasília Editora; Adivinha: Estilicídio e Encíclia (1989) Brasília Editora; Nem Prosa Nem Poesia Outra Coisa (1990) Brasíla Editora. Em Questão (1991) Brasília Editora; O Presente, A Presença (1992) Brasília Editora.
Linguagem Porética: Trilogia Porética: O Princípio do Eco (1993) Brasília Editora; Teoria da Disponibilidade (1994) Brasília Editora; Crítica das Representações (1995) Brasília Editora. Mais ou Menos (1998) Black Sun Editores; New England (2002) Edições Aquário. 1996: As Estações (2004) Edições Aquário. Tetralogia Fática (2005) Edições Aquário. Díptico Musical (2005) Edições Aquário.
Poesia em francês Les Trois Ages (1973) La pensée Universelle.
Romance: Palingenesia (1999) Fenda Edições; O Romance Contemporâneo (2000) Tertúlia Editora. Que Estupidez!(2003) Edições Aquário. O Rito Diário de um Hipocondríaco (2004) Edições Aquário.
Ensaio: A Linguagem Porética (1996) Brasília Editora.
Traduções: (em revistas e jornais)
Francês: Un Cœur sous une Soutane, Les Déserts de L’Amour, fragments, Les Stupra, de Arthur Rimbaud; La Folie du Jour, de Maurice Blanchot; Le Langage des Fleurs, de George Bataille; Le Suspens : Acuité d’un suspens, de Marcel Lecomte.
Inglês : Poemas de Wallace Stevens, Robert Lowell, William Bronk e Hayden Carruth.
Outras páginas sobre o autor:
Ensaios:
DOIS POEMAS
O PRESSENTIMENTONem sei como começar. Desde domingo
que ando com este poema ou o seu fantasma
dentro de mim, só agora tenho a oportunidade
de me acercar da língua para poder no écran
vislumbrar o que ainda não sei o que dizer.
Domingo à tarde, no terreno varrido
pelo vento frio do outono, entre o sol
e o desejo de percorrer com minha mulher
a colina que desce até onde não há vale,
mas apenas uma linha de água, descobrimos,
junto a um choupo que sobreviveu ao estio,
no côncavo que eu cavo à volta das árvores,
um pombo incapaz de levantar voo, respirando
dificilmente, os olhos piscando não sei
se de medo se do pressentimento da morte
próxima. Eu pressenti-a, e por isso nem tive
coragem de o pegar nem de ficar olhando-o
como quem não pode fazer nada para evitar
o inevitável: o acontecimento supremo
que é a morte de um qualquer ser vivo.
Afastámo-nos do local, não sei se do crime já
que tão pouco sei dos desígnios da natureza
possivelmente sem desígnios, mas minutos
depois, deitados atrás de uns arbustos
que agora cortam o vento e por mim plantados
para proteger as árvores de fruto, ouviu
minha mulher um ruído de asas batendo,
relançou um olhar que ainda bispou um salto
de quem se liberta de qualquer coisa.
Fugiu, disse-me. Não respondi. Antes
procurei continuar a conversa, fosse ela
qual fosse, gozando do calor que se fazia
naquele canto do terreno, o sol batendo
nos nossos corpos deitados ou soerguidos
como se traduzisse um espírito. Mas depois,
e ignoro quanto durou este entretanto,
levantámo-nos e fomos verificar no local
o que se passara ou tinha acontecido. Vimos
então o pombo já morto, de papo para o ar,
como se a morte tivesse acontecido há muito.
3/11/92
IGNORÂNCIA
Dizer o insentido (o que não se sente)
do que se sente é que é o problema.
O verdadeiro. Tudo o mais é repercutir
a história, é conceder a ilusão fácil
de um homem imbuído de uma essência,
é ceder à necessidade de uma história
para que haja algum conforto na imagem
que se poderá fazer do pensar poético.
Mas o problema de hoje é só um: tentar
compreender o que não se sente quando
se deveria talvez sentir qualquer coisa
que não estivesse já depositada e morta
na linguagem legada pelos antepassados,
qualquer coisa que, embora sendo coisa
e existindo, não acede à consciência
como linguagem capaz de dizer o mundo.
Ou qualquer coisa que não existindo
irrompe e se propaga pela consciência
como se os sentidos deixassem de ser
sentidos para sentirem apenas ao sentir
a ausência de qualquer coisa, um mundo
inexplorado e para o qual não há mapas
nem a possibilidade de os fazer outros
que os mapas já existentes no mundo.
De tautologia em tautologia sente-se
contudo que o mundo se faz linguagem
sem que sejam do mundo ou das coisas
do mundo as linguagens que se fazem,
basta ao homem que quiser ler o homem
saber onde encontrar a nova linguagem,
basta viver-se do mundo para perceber
até que ponto o mundo não é o homem.
Ignorância, acabar-se este poema falho
sem se ter resolvido o problema, que é
sentir o indizível do que não pode ser
dito, que é pensar o que não pode ser
pensado, que é viver o que não pode ser
vivido: esta coisa, esta outra coisa
que se faz sentido e vive na linguagem
como a inexistência da própria língua.
3/11/92
Poemas da obra Tetralogia Fática, livro primeiro: «Estados, Processos e Acontecimentos» (reprodução autorizada pelo autor).