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Junqueiro, um espaço na Modernidade

Um dia, disse Guerra Junqueiro para o seu amigo Luís de Oliveira Guimarães: "Os políticos consideram-me um poeta; os poetas, um político; os católicos julgam-me um ímpio; os ateus, um crente" (1). Mais tarde, Helena Rocha Pereira, diria: "Entre os grandes poetas que brilharam na segunda metade do nosso século XIX, nenhum provocou mais desencontradas críticas à volta da sua obra do que Guerra Junqueiro" (2).

No muito que se escreveu sobre Junqueiro, podemos verificar que estes desencontros foram constantes. Quer do ponto de vista literário, quer do ponto de vista das ideias. Nestas linhas críticas divergentes, encontramos nós tuna convergência, de recorrência histórica, à qual, em termos de objectividade, não nos podemos abstrair. Junqueiro, na diversidade, nas flutuações, que estão na base de críticas antagónicas, acrescidas de outras razões de ordem pessoal, é a expressão mais próxima do devir histórico da sua época na nossa literatura. A obra e o homem testemunhado pelos seus amigos constituem uni todo existencial, onde o nacionalismo e o europeísmo se reflectem nas suas complexidades, em que passado, presente e futuro estão sob os efeitos de uma inexorável mutação dialéctica. Junqueiro não pode ser encarado por parcelas, se estas perderem de vista a obra na sua globalidade e a sua inserção na história, entendendo-se por globalidade a lírica, a prosa e as próprias conversas particulares com os seus amigos. Só por esta via se poderá compreender a glória de Junqueiro, no país e fora dele, e equacionar os excessos das críticas antagónicas. Só por esta via se poderá procurar o seu lugar na modernidade. E diga-se, desde já, que, sem Junqueiro, falta um elo dos mais importantes na cadeia da história da nossa literatura. Esse lugar, na modernidade, é o objectivo deste texto, dada a importância, de que assim se reveste, ainda que nos limitemos a algumas considerações, exemplificativas, face ao tempo de que dispomos, que se pretendem, não como análises parcelares, mas como correcções que induzam a uma prospecção do epicentro do vulcão que foi Junqueiro.

Começando pelas três obras mais polémicas de Junqueiro, diremos que: Em A Morte de D. João, o protagonista funciona como um símbolo de todos os corruptos, que desenvolvem as suas performances a partir de 1830, como refere o autor, no "Prefácio" da segunda edição desta obra: "Quantos adultérios, prostituições, nevroses, tísicas, enfim, quantos escândalos e quantas doenças não têm sido produzidas desde 1830 pela sentimentalidade doentia do romantismo desgrenhado e piegas? (3).

Em A Velhice do Padre Eterno, no "Prefácio" à segunda edição, declara: "O Deus de Jerusalém, castrado, feroz, porco, cheirando a alho, uni Deus cujo reino, na geografia celeste, tinha as dimensões do principado de Mónaco, encontra-se subitamente no trono de Júpiter, César todo dominador de tudo quanto existia – porque tudo fora feito por ele!" (4). Mas também diz, em "Nota", no final da obra: "E depois de morto D. João e morto Jeová, resta-me ressuscitar Jesus e desagrilhoar Prometeu". E, mais adiante: "[...] rogo a Deus do fluido da minha alma que me deixe terminar com um hino de esperança e de harmonia uma batalha de cóleras e de sarcasmo". Não chegou a terminar, seria Prometeu Libertado.

Se fizermos um levantamento de todas as descrições, apanhadas nesta obra por todos os seus ângulos de focagem, mesmo sem tomar em linha de conta atitudes posteriores, ser-nos-á difícil encontrar Junqueiro desenraizado do solo religioso em que foi plantado. Os ímpetos sarcásticos contra a Igreja, saem-lhe de um fundo de sentimentos, onde a essência da Igreja se depositou, sem o corpo das suas práticas. Subjacente aos seus ataques, está um coração em prece. Ao lado do léxico e das imagens mais baixas, com as cores das lotas de peixe, há um léxico e imagens que brotam límpidas das fontes cristãs. Junqueiro ataca em defesa de.

Esta fusão em Junqueiro, cujo lado mais visível é o de ímpio, pela violência e pelo relevo dos traços caricaturais, encontrará a sua explicação em dois braseiros históricos: um, nacional, outro, europeu. A Europa atravessa um período iconoclasta, a que Portugal não escapa. Mas essa influência estranha é traduzida para uma realidade outra, que é a nossa, e, como tal, com os seus problemas específicos, com a sua cor local. Junqueiro, enamorado por uma Europa de transformação radical, que acena com novas verdades e novas esperanças, embarca no comboio da moda, com todo o histerismo de um forasteiro. Mas este forasteiro não consegue disfarçar as suas raízes. Numa geografia europeia, Junqueiro bate com um coração português. No fundo, Junqueiro revolta-se mais contra o rosto social da Igreja, do que propriamente contra a essência doutrinal da Igreja. Porquê?

Não há dúvida de que o autor de A Velhice do Padre Eterno, declaradamente, ataca Deus, conforme foi interpretado e encenado através da história. Mas também não há dúvida de que Junqueiro não foi ao fundo da questão, levando em conta a lenta evolução da humanidade, para chegar à linguagem da transcendência. Assim como não levou em conta a inalienável relação da Igreja com a história, já que, os operadores da Instituição, são pessoas, produtos dessa história.

Este Junqueiro, com olhos de superfícies, encontra no panteísmo e no evolucionismo, (lê sabor europeu, unia abertura para a iluminação de um fundo, onde estava um Deus primeiro, escurecido por um púlpito desactualizado e por uma prática clerical comprometida e corruptível. O discurso de Junqueiro é de charneira, de árvore que se sustenta porque tem as suas raízes de formação católica. Embora revele consciência, em muitas páginas, do panteísmo e do evolucionismo, e os respire, nunca se emancipará neles como pensador, pois Deus e Cristo estão sempre presentes, como reflexos e como linguagem, o que viabilizará a sua re-conversão final. Guerra Junqueiro, inteiro, é fundamentalmente um crítico social, por amor a tudo que é pátrio. Esta vertente, quaisquer que sejam os caminhos por onde passa, é a única que se mantém inalterável em toda a sua obra e a sua vida. Um humanismo simples, de sentimentos transbordantes, através dos quais não só vê Portugal, como também vê a Europa, com páginas de uma sensibilidade e de uma argúcia invulgares, da qual está informado e a qual sabe analisar, como o que escreveu sobre a Primeira Grande Guerra Mundial (5).

A esta segunda obra polémica surgiu Pátria, em 1896, onze anos depois (Ia segunda e vinte e dois após a primeira. Surge na sequência do Ultimatum inglês. É um ataque à dinastia de Bragança, na figura de D. Carlos: "O estado é o rei. Cidadão há um único: D. Carlos. Os deveres são nossos, os direitos, dele. Estrangula-me as ideias, arromba-me a gaveta, ou corta-me o pescoço, conforme o queira. A justiça é um relógio que ele atrasa, adianta ou faz parar, segundo lhe dá na vontade. Decreta a lei e nomeia o juiz. O parlamento é o seu capricho" (6).

Estas três obras não devem ser encaradas como três temáticas diferentes, mas uma só, a Nação, escalpelizada em suas gradações sociais, ou, se se quiser, o rosto de um povo historicamente degradado por forças políticas e religiosas, consentidas e aceites por uma população conformada, e passiva. A análise, de cada uma das três obras nos obriga a encontrar nelas uma unidade. O que inequivocamente é reforçado em "Anotações", anexas à Pátria, em jeito de balanço. Embora extensas, não podemos, pela sua pertinência, deixar de transcrever parte dessas anotações:

"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonha, feixes de miséria, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que já nem com as orelhas é capaz de sacudir as moscas. [...]";

"Um clero português, desmoralizado e materialista, liberal e ateu, cujo Vaticano é o ministério do reino, e cujos bispos e abades não são mais que a tradução em eclesiástico do fura-vidas que governa o distrito ou do fura-vidas que administra o concelho [...]";

"Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo [...]";

"Um exército que importa em 6.000 contos, não valendo 60 réis [...]";

"Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo [...]";

"A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rolhas";

"Dois partidos monárquicos, sem ideias, sem planos, sem convicções [...]";

"Um partido republicano, quase circunscrito a Lisboa, avolumando ou diminuindo segundo os erros da monarquia, hoje aparentemente forte e numeroso, amanhã exaurido e letárgico [...]";

"Instrução miserável, marinha mercante nula, indústria infantil, agricultura rudimentar",

"Um regime económico baseado na inscrição e no Brasil, perda de gente e de capital, autofagia colectiva, organismo vivendo e morrendo do parasitismo de si próprio";

"Liberdade absoluta, neutralizada por uma desigualdade revoltante, o direito garantido virtualmente na lei, posto, de facto, à mercê dum compadrio de batoteiros, sendo vedado, ainda aos mais orgulhosos e mais fortes, abrir caminho nesta porcaria, sem recorrer à influência tirânica e degradante de qualquer dos bandos partidários";

"Uma literatura iconoclasta, – meia dúzia de homens que, no verso e no romance, no panfleto e na história, haviam desmoronado a cambaleante cenografia azul e branca da burguesia de 52 [...]";

"E se a isto juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares [...] teremos em sintético esboço a fisionomia da nacionalidade portuguesa no tempo da morte de D. Luís, cujo reinado de paz podre vem dia a dia supurando em gangrenamentos terciários."

Estes excertos, retrato do País, são, de seguida, cobertos por um bálsamo de esperança, que reforça a unidade a que nos referimos, a indissolubilidade da diversidade temática: "Humanizar o ensino, nacionalizar a indústria, um clero português e cristão, a justiça fora da política, o exército fora de S. Bento, os burocratas para a burocracia, o professor para as escolas, o poder legislativo entregue às forças independentes e vivas do país [...]".

Esta a obra polémica. Consideremos agora a obra de intenção lírica. Ao lado do franco-atirador caminha o Poeta, com a mais fina sensibilidade e docilidade. Duas personalidades aparentemente irredutíveis, mas que não passam de uma só, Junqueiro. A obra de combate está cerzida com recortes de lirismo do mais sublime. A obra lírica animada por uma base humanista que é a razão primeira da obra de combate. E, se juntarmos a estas duas faces toda a sua prosa, descobrimos o verdadeiro rosto, um só, de um dos maiores homens de toda a nossa literatura, a saber, Guerra Junqueiro. "Homem de um só rosto, de uma só fé", como diria Sá de Miranda. O carácter, a coragem, o amor, a justiça, o patriotismo projectivo, e não anquilosado, tudo, em Junqueiro, se superlativiza.

Sob o ponto de vista formal, Junqueiro é de uma rebeldia gritante. Nele encontramos propostas do Antes, do Durante, do Depois. Uma libertinagem, que terá a ver com o seu temperamento impetuoso, mas que parece explicar-se melhor com uma intenção estética, em que a expressão é pertinência, pedida pela flutuação do conteúdo. Esta diversidade, que atinge toda a sua obra poética, acaba por ser uma característica de Junqueiro, e, como tal, convertida em unidade.

Outra questão, que não podemos deixar de referir, na perspectiva que vimos construindo, é a das influências. Pondo de lado o problema do epigonismo, geralmente ingenuamente ou abusivamente desfocado na aplicação do seu conceito, encaremos Junqueiro historicamente. A sua obra, de matrizes estéticas diversas, nacionais e estrangeiras, já estudadas, e algumas por ele declaradas, constitui um espelho da encruzilhada finissecular que viveu. Andar à cata de influências, em Junqueiro, com o objectivo de saber o que sobra para o Mestre, é desvirtuar totalmente o Junqueiro histórico, o verdadeiro Junqueiro que deve ser procurado, se quisermos ter uma perspectiva axiológica.

O problema das influências é um problema de sempre. O que se passa com Junqueiro, em Portugal, passa-se em toda a Europa. O problema não está nas influências em si, mas se estas têm a ver, ou não, com a época histórica, geradora de uma atmosfera que atinge obrigatoriamente os melhores, mesmo quando entre si se ignoram.

Na Europa modelava-se uma nova civilização, cujo ponto de partida, mais próximo, encontramos no Iluminismo setecentista. É nessa nova civilização, onde temos toda a espécie de cortes com o passado, que se enquadra a chamada modernidade, que se caracteriza, fundamentalmente, pela criação de novas estruturas, pela problematização de todos os conceitos, por um ritmo vertiginoso nunca alcançado, que acaba por provocar a angústia, a insegurança, a ruptura do tecido existencial.

Literariamente, à primeira manifestação da modernidade chamou-se romantismo. A sua razão mais profunda permite-nos afirmar que, neste fim de século, continuamos em pleno romantismo.

Toda a actividade integral humana, na modernidade, passa pelo individualismo e pela liberdade, com as suas consequências mais sublimes e com as suas consequências mais nefastas e mais destruidoras, em ritmos progressivos vertiginosos. Com o melhor sentimento cresce a ambição mais desmedida. Não há norma que se estabilize numa página, ao contrário de civilizações passadas. Há normas, de começo, ainda que pouco rígidas, mas rapidamente são ultrapassadas por outras que se lhes seguem. Até se chegar à actualidade, em que cada um procura a sua norma. Já não só o seu estilo, mas a sua estética, cuja dimensão é colectiva e histórica. O único factor que une a modernidade é a diversidade, filha do individualismo e da liberdade, grandes conquistas da humanidade, mas uma faca de dois gumes. Em todas as artes, os ismos que se seguiram ao Romantismo são disso um espelho. Ismos, que, ao fim e ao cabo, traduzem uma preocupação tradicional, de pôr um carimbo às coisas, necessidade de agarrar um fluido, que é o corpo da modernidade.

É neste contexto que enquadramos o exposto sobre Junqueiro. A nível de conteúdo, histórico, e a nível estético, diversificado. É o testemunho mais completo da modernidade. Sem ele, fica nina enorme lacuna na história da modernidade literária portuguesa. Junqueiro é herdeiro, é obreiro da sua época, é doador. Apesar de homem do seu tempo, de civilização em convulsão, como europeu ou como português, não deixou de imprimir à sua obra algo de seu, um estilo, onde podemos encontrar elementos, ainda que avulsos, de franca actualidade. Estude-se, por exemplo, as imagens de Junqueiro, a combinação lexical de estratos sociais diferentes.

Na obra multifacetada de Junqueiro, diversificada, fruto do individualismo e da liberdade históricas, encontramos nós a sua modernidade, que é coadjuvada pelos seus pensamentos, de boa informação epocal, denunciada nas suas prosas, como analista, quer da literatura, quer da história, quer da ciência, quer da filosofia, quer da política.

Permitam-me terminar com um poema de Junqueiro: "Canção de Batalha" (7).

"Que durmam, muito embora, os pálidos amantes,
Que andaram contemplando a Lua branca e fria...
Levantai-vos, heróis, e despertai, gigantes!
Já canta pelo azul sereno a cotovia E
já rasga o arado as terras fumegantes...

Entra-nos pelo peito em borbotões joviais
Este sangue de luz que a madrugada entorna!
Poetas, que somos nós? Ferreiros d'arsenais;
É bater, é bater com alma na bigorna
As estrofes de bronze, as lanças e os punhais!

Acendei a fornalha enorme – a Inspiração.
Dai-lhe lenha, – a Verdade, a Justiça, o Direito
E harmonia e pureza, e febre e indignação;
E p'ra que a lavareda irrompa, abri o peito
E atirai ao braseiro, ardendo, o coração!

Há-de-nos devorar, talvez, o incêndio; embora!
O poeta é como o sol: o fogo que ele encerra
É quem espalha a luz nessa amplidão sonora...
Queimemo-nos a nós, iluminando a terra!
Somos lava, e a lava é quem produz a aurora!"

NOTAS:

(1) Luís de Oliveira Guimarães, Junqueiro e o Bric-à-Brac, Lisboa, 1942.

(2) Maria Helena da Rocha Pereira, As Imagens e os Sons na Lírica de Guerra Junqueiro, Lisboa, Livraria Portugália, 1950.

(3) Guerra Junqueiro, Prefácio à segunda edição de A Morte de D. João, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 8ª edição, 1908.

(4) Guerra Junqueiro, "O Monstro Alemão", in Prosas Dispersas, Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão Lda., 1921.

(5) Guerra Junqueiro, "Anotações (Balanço Patriótico)", in Pátria, 7ª edição, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1950.

(6) Idem.

(7) Guerra Junqueiro, "Canção de Batalha", in Poesias Dispersas, Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão – Editores Lda., 1920.

Joaquim Matos

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