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Ensaios


O humor (ou a ausência de) no Camilo polémico

O levantamento da actividade polémica de Camilo bem como a avaliação da sua importância na história da cultura portuguesa já foram feitos. O crédito de ambos pertence a Alexandre Cabral (1). Tanto na introdução geral à serie de volumes, como nas pequenas introduções a cada uma das polémicas por ele coligidas, o estudioso comenta essa componente da actividade literária e da vida do escritor. O seu juízo global é inequívoco:

Reconhecendo-lhe o humor e o chiste de que se servia invariavelmente para azorragar os adversários, em acções punitivas e impiedosas, a verdade é que a cultura portuguesa nesse domínio pouco lhe ficou a dever.

Com a consciência plena de podermos sofrer a imputação de heresiarca camilianista (...) não queremos terminar estas sucintas considerações sem reafirmar o essencial da nossa opinião: enquanto a obra romanesca de Camilo honra uma literatura, a sua actividade de polemista não a dignifica. (11, 27) (2)

Alexandre Cabral coibiu-se de ir mais longe, provavelmente para não ser acusado de cair nos exageros camilianos que ele próprio condenava, mas poderia ter sido mais severo na apreciação da obra polémica. Camilo merecia-o. Afirmo-o não por vingança do tratamento que deu aos seus interlocutores, mas porque pura e simplesmente é impossível, mesmo a alguém que gosta de humor, ler de seguida esses volumes de prosa sem sentir uma irritação que nem sempre é moral. A maior parte das vezes é simplesmente de ordem estética.

Os citados volumes que Alexandre Cabral coligiu dizem tudo, tanto nas introduções como nos próprios textos dos polemizadores. Nada de especial se me oferece acrescentar sobre essa faceta que sempre me afastou do escritor: precisamente a das suas polémicas. Devo confessar que não as conhecia todas. Tinha a obra de Alexandre Cabral, mas só agora, antes de escrever este texto, a li de fio a pavio e me apercebi de já estar, de facto, tudo dito sobre o assunto.

Impressiona nestas páginas sobretudo o tom maniqueísta explícito por todo o lado, reflexo de quem vê o diabo na pele do opositor, a contrapor-se à pureza imaculada do lado de quem escreve, aliada a esse direito à ira moral, que permite a expressão pública de uma indignação acusatória, despejada furiosa intensidade, tanto para desancar um político como para criticar um poema.

Mas, à parte quaisquer considerações generalizantes, recordemos algumas das tiradas de Camilo. Podemos até imitar um pouco o que ele próprio fez uma vez a opositores seus: catalogou-lhes os insultos que lhe dirigiram nos jornais Eco Popular e Pátria (1, 173). Vejam-se alguns exemplos.

Contra Constantino Máximo de Sousa Guedes, na polémica sobre a desavença conjugal do Barão do Bolhão:

Não tenho o necessário cinismo para desprezá-lo. (111, 82)

A abrir a "Epístola" em verso ao Visconde de Atouguia:

Ilustre paspalhão, pasmo dos orbes,
Nata da estupidez, álcool dos parvos,
De Campanhã o bardo te saúda!
Salvaste Roma, ó ganso!... se não grasnas
Piravam-se os tais paus (...)
(...)
A propósito, amigo, há quanto tempo
Conservas de escabeche a inteligência? (111, 149 ss)

Contra João Félix Rodrigues:

Tanas é um idiota piramidal.

(...)

Mas a tolice vangloriosa, mas o intono da estupidez, mas a necedade farfalhuda, mas o publicista de tamancos e arremangado à laia de carreteiro, isso nauseia, indigna e fede! Tanas...

Mas será ele Tanas este artigo do Português de 30 de Agosto?

Vamos à assinatura: – E. T. Das duas uma: É Tanas, ou É Tolo. Se é Tolo é Tanas, e se é Tanas é Tolo: logo, É TANAS. (111, 186)

Na sequência da polémica, Camilo chama-o "bandalho" e, a ele e aos camaradas de redacção, julga-os "três asneirões", aos quais

[o] Nacional o mais que fará é enfreá-los, botar-lhes os cabeções, e esporeá-los de vez em quando para que a humanidade incauta lhes veja a solidez das ferraduras. (111, 202)

Camilo diz que já conhecia um deles,

um tal Eduardo Tavares, dum jornal bordalengo, repositório de asneiras hirsutas que o toleirão publicava. Pensávamos que este idiota tivesse morrido de uma congestão de parvoíces, quando o vemos surdir do monturo do Português, e exclamar: eu também sou Tanas! Pois dão-se-lhe os parabéns, tolo confesso! (111, 203)

Numa polémica com o jornal Eco Popular, Camilo ameaça entalá-lo "no argumento cornuto: OU TOLO OU MAU":

Quer o brincão letrado que lhe digam o que são cúbicas cabeças. São umas cabeças desmioladas, compactas, tersas, sólidas como granito, de faces iguais na rijeza da matéria, e na opacidade revel à luz do raciocínio. Se não está contente com a simile de cabeça e cubo, e quer a explicação comparativa das seis faces do cubo, mais diremos ao pechoso colega que se nos afiguram em certas cabeças seis bossas, qualificadas pelo teor dos frenologistas do seguinte modo: Ignorância, filáucia, estolidez, absurdo, sensaboria e pedanteria. Aqui explica-se tudo, colega, menos a deslealdade das suas ferroadas. (IV, 39)

Numa resposta ao crítico Silva Pinto, a quem chamara "pífio e latrinário jornaleiro", um "mariola" cuja idiossincrasia era "o couce", Camilo finge arrepender-se, para ser ainda mais cruel:

Os termos desabridos que usei com o pobre Silva, na verdade, saíram-me imoderados. O homem era mais pequeno do que eu cuidava. Enganou-me. Pensei que fosse mais mau que tolo; e, nessa alocução à opinião pública, vi com tristeza que ele é, no rigor do vocabulário, um desgração que, estourando por dentro, todo o hidrogénio sulfurado lhe subiu aos miolos. (V, 165)

A terminar aparentemente sério, sai este insulto todo em letra maiúscula:

ANSELMO DE MORAIS É RADICALMENTE LADRÃO, COM UM CORTEJO DE TORPEZAS ESPECIAIS E RARAS NOS LADRÕES MAIS DESPEJADOS (V, 183)

A fúria de Camilo exigia vocabulário como balas de canhão e o escritor banalizara o existente com a frequência do uso. Daí o ver-se forçado a adjectivações redundantes (3). Alexandre Cabral fez uma lista-amostra dos epítetos com que Camilo "frechou" o adversário: bonifrate, branco, lapúrdio, brutamontes, vilanaz, lorpa, jagodes, lazudo, parrana, camueca, falsário, alimária, pascácio, basbaque, rnostrengo, dromedário, sicário, incendiário, sandeu, zote, rábula, homúnculo, idiota, bisbórrias, macho de más manhas. (4) São, de facto, inúmeros os exemplos dessa busca desesperada de pólvora vocabular que ele atira destemperadamente – tantas vezes sem sarcasmo sequer – como quem procura metralhar moscas ou caçar perdizes com um tanque de artilharia. Bastem como exemplo estas linhas, escritas no decurso de uma polémica por causa de um poema:

Ao sr. Castro e Silva roça-lhe de leve uma afronta vil e injuriosa. A mentira infamante ressalta aí logo sob a pena do caluniador que cospe a esmo no mais benemérito carácter. O áspide serpeja aos pés do sr. Sousa, e Vicente da Taurina, resfolga depois e vibra a farpa venenosa, e pula dentre os brejos da sua nulidade a face do sr. Moser, que naturalmente lhe cuspiria de cima para baixo, se lhe pressentisse o salto atraiçoado. (1, 128)

A desproporcionada quantidade de impropérios continua assim sobre o poema:

Não há uma só flor de eloquência e poesia na superfície deste lamaçal de graves torpezas, e versos parvos dissonantes. É tudo unia criancice tola, agaiatada, mas profética da lastimosa incapacidade do sr. Aires em todos os dias da sua vida! Não há nada tam inocente vão, e estulto, corno as desasadas alegorias e similes que este poeta, mendigo de rudimentos, escreve com mão segura neste amontuado de rodilhas nauseabundas. (I, 128)

E Camilo prossegue afirmando não haver "nada tam insosso, nem criação mais parecida com a esfarrapada imaginação do criador", como essas "fórmulas majestosas, que descambam em parvoíce insulsa e inconcebível". Ubidem)

Um outro dos inúmeros exemplos de overkill é este contra o Eco Popular:

Dê-se uma ideia do lorpa, ideia perfunctória, enquanto se lhe não arma no folhetim uma pole monumental. As graçolas do adventício tresandam ao fartum tarimbeiro. Há nessas uma pretensão que deixa a gente indecisa entre a piedade e o nojo. O homem vezado a estragar o idioma pátrio, com livraria abarrotada de clássicos, inça de galicismos e barbarismos a estopada indigesta. (IV, 77)

O que espanta nesta prosa é a falta de finura e de humor que o sarcasmo consegue, já que a polémica de Camilo é incapaz da distância necessária para chegar à ironia. Nela, o escritor é quase sempre um moralista autoconvencido, ou self-righteous, como dizem os ingleses. "Quase", porque às vezes consegue suscitar o riso. Cito todos os exemplos que me parecem sobreviver ao tempo, pese embora a ideologia implícita ou explícita em vários deles, que necessariamente choca a sensibilidade contemporânea. Alguns caberiam perfeitamente num Dicionário Universal do Insulto. Outros em volume do tipo Whatever It Is, I Am Against It (5), mas sem o humor que caracteriza esta antologia. Do primeiro exemplo me desculpem os portuenses, já que o sarcasmo de Camilo poderia ter sido desferido contra qualquer cidade:

O Eclesiastes, no cap. 1º, falava profeticamente do meu Porto, quando escreveu: o número dos tolos é infinito. (1, 90)

Contra o mencionado crítico Silva Pinto:

Diz que não escrevera a local da trilogia, nem a outra acerca do Castelar, nem a da cacofonia.

Então havia outro sandeu de igual marca no jornal? Que parelha de asneirões! Pelos modos aquele escritório de redacção era unia estrebaria! Se os dous coexistem, são os meninos-siameses da estupidez; mas o outro desconfio que é ele. (V, 166)

Ainda a Silva Pinto:

Ao mesmo passo (leia trote) que me insulta (...) (V, 159)

Esta outra, em resposta a um interlocutor colectivo que se assinava por Anselmo:

Anselmo não escreve: assina. (V, 179)

O último exemplo, muitas mulheres se sentirão no pleno direito de virá-lo ao contrário:

Se eu, uni dia, contra o parecer de Platão, puder classificar a mulher no género humano – hei-de casar-me. (1, 93)

Tomo também como reveladora de sentido de humor a identificação por Camilo de algumas das cacofonias que encontrou na tradução (que aliás ele próprio começara) feita por Augusto Soromenho de Génie du Christisnisme, de Chateaubriand: "E que agora mais que nunca"; "Uma das belas árvores que ornava"; "Cujo cume está involto num vapor nubeloso" (IV, 101). Se há a sensibilidade do purista da língua, lá está igualmente o dedo do humorista, pelo menos uma sensibilidade a um certo tipo de humor – o escatológico. Muito do seu humor mantém-se de resto ao nível das formas elementares, sem grande subtileza ou inventividade. O próprio escritor terá querido dizer de si mesmo o que disse dos seus leitores e compatriotas: "Não sabemos rir com ,espírito', apenas gargalhamos com os queixos." (6) Nisso, por mais que alguns críticos queiram reabilitar o autor de A Queda de um Anjo, não me parece possam obter grandes resultados. Afigura-se-me perfeitamente acertado este juízo de Joaquim Viana:

A sátira, a graça e o sarcasmo, desconcertantes pelo imprevisto da situação, por vezes até grosseiros e desleais, tornam-no mais próximo da chalaça que da graça espirituosa . (7)

Mas as polémicas em que se envolveu, se produziram outros tantos textos de idêntico teor da parte dos seus antagonistas (com a diferença de serem literariamente muito inferiores), não deixaram de ter aqui e além a sua tirada de bom humor à custa de Camilo. Por exemplo, após uma desculpa do escritor, a propósito de determinada citação que lhe haviam feito de um texto, responde-lhe A Nação:

O Sr. Camilo não sente hoje o que já sentiu, nos diz ele. Quando para cá passou deixou provavelmente de sentir o que já tinha sentido.

No dia em que renegar pela terceira vez a quem irá o Sr. Camilo oferecer os seus sentimentos? (111, 131)

O exemplo seguinte é sobejamente conhecido. É de António Aires de Gouveia, com quem Camilo polemizou desbragadamente a propósito das célebres comendas:

Não passareis de ser um ALTER ILLE, de quem o sr. A. Lima escrevendo a uni seu amigo do Porto dizia que estava tão arredado de ser literato, que, sendo CAMELO, escreve o seu nome com i... (1,98)

Embora não seja de espantar em polémicas desta estirpe, Camilo acusa os seus adversários de fazerem exactamente o que lhe poderia ser apontado. Quer dizer que é possível citarmos passagens em que Camilo classifica a prosa dos seus adversários, e aplicarmos, ipsis verbis, à sua própria prosa as acusações que sobre os outros dispara. Alguns exemplos apenas. O primeiro é duma tirada dirigida a uni escritor do Eco Popular:

O colega, porém, envidou todo o pulso da pedagogia em rebater unia graçola, como quem combate tinia teoria. Isto é que é trazer sempre o juízo apontado a todos os disparates que lhe travam no paladar científico!... No que se gasta esta gente! (IV, 48)

Ainda contra o Eco:

A luminosa razão do colega é muitas vezes ofuscada pelos esplendores do estilo.

Sacrifica a verdade a quatro adjectivos, e escreve sobre coisas positivas e claras como se estivesse a fazer exercícios de retórica em sua casa sobre temas de imaginação. (IV, 59)

Contra Antero, na famosa questão do "Bom Senso e Bom Gosto", Camilo é relativamente moderado (em parte decerto por reconhecer nível em Antero, em parte, talvez, porque este lhe dedicara uma série de sonetos nas Odes Modernas), mas nem por isso deixa de lhe desferir um golpe perfeitamente aplicável a si próprio:

O Sr. Antero não foi mais verdadeiro que delicado. (IV, 201)

De novo na polémica com Silva Pinto:

Aí está o homem que denigre e desonra as pugnas literárias. Estrangulado pela crítica serva, resfolegará ainda pela vilta da calúnia. (V, 159)

Várias vezes alude a, e recomenda, um manual de civilidade (IV, 75) e se insurge contra as referências à vida privada feitas nos jornais:

Pois vejam se nesses jornais [das nações europeias] encontram o ministro insultado nas particularidades de seu viver, ou o jornalista devassado no foro da sua vida íntima, caluniada, ou ainda não caluniada. (111, 199)

No entanto, Camilo revela pormenores das dificuldades da vida de Augusto Soromenho, sem naturalmente achar que se imiscuía na vida privada de alguém. Quando o faz, justifica-se reclassificando o domínio do privado e do público, como acontece uma vez mais, no caso de Silva Pinto:

Fígados e bofes de petróleo tem ele. Foi a Espanha oferecer aos comunais o seu... estômago. As manhas que lá o sustentaram hei-de pedir autorização a um cavalheiro de Madrid, muito querido dos portugueses, para as contar à Europa. Pinto percebe-me. Não são factos da privada, são da vida pública, vida de vergonhas que nos avexam lá fora. (V, 168)

Após esta breve excursão, regresso então ao juízo de Alexandre Cabral:

Perante o cômputo avantajado das polémicas de Camilo, e analisados os processos, nem sempre lisos, de derimir as contendas literárias (...) interroga-se o estudioso quanto ao seu valor fecundo e a exemplaridade estimulante no contexto da Cultura Portuguesa. Por mais chiste que possa encontrar em algumas das suas réplicas, por muito que se lhe admire a versatilidade, a exuberância da imaginação e até a jocosidade de certos despaupérios, terá forçosamente de concluir pela preponderância dos aspectos negativos. (II, 21s)

Nem sequer é recente este balanço sobre a faceta belicosa de Camilo. Os seus antagonistas apontavam-lhe o mau feitio e o azedume. Sirva de mero exemplo esta passagem do lente Avelino César Augusto Rodrigues, o visado nas Notas à Sebenta que Camilo fizera circular ridicularizando-o. Na sua resposta, escreve o catedrático:

Evidentemente a assinatura do Sr. Camilo, nas Notas à Sebenta, é, antes de tudo, uma redundância. O escrito fotografa fielmente o autor.

Quem há aí que o não conheça, sem o ter visto, e o não tenha aclamado rei do insulto pela palavra, e explorador do escândalo pelo espectáculo? (8)

Infelizmente Camilo não constitui na história da cultura portuguesa um caso de excepção. Ultrapassado na destêmpera por José Agostinho de Macedo, Camilo é o protótipo da conjugação da componente emotiva de um temperamento cultural (no sentido antropológico do termo) com a nossa vertente literária. (9)

Não é responsável pelo estilo de polémica à portuguesa que dele herdou o nome como qualificativo. (Mário Sacramento disse que "a polémica à portuguesa é uma tourada à espanhola". (10)) Todavia, tendo ela nascido de um ambiente cultural que a favorecia e devorava sofregamente (11), e tendo-a Camilo elevado, no seu estilo idiossincrático, a um alto expoente, por ter sido quem foi, não deixou de, ao longo dos anos, ser inspiração, referência e modelo exemplar entre os cultivadores do género em Portugal. (12)

Polémicas houve-as e há-as em todo o mundo, literato ou não, dentro e fora da Europa. O que parece além disso existir com alguma insistente frequência em Portugal (embora também aí não esteja só) é uma tendência para a pessoalização imediata, para a verbosidade e violência excessivas, incidindo em regra sobre questões de lana caprina, onde a sátira ou o sarcasmo sobressaem, raramente atingindo nível estético de registar. As frequentes tentativas de filiação da nossa polémica na tradição das cantigas de escárnio e mal-dizer apenas confirmam afinal esse consenso.

Objectar-se-á, com razão, não serem exclusivo nosso esses ataques ad hominem. O que falta, todavia, no nosso prato da balança, quando nos comparamos com outras tradições culturais, é o debate de ideias desinibido e centrado sobretudo na argumentação e no avanço do entendimento das questões em causa, que a nossa tradicional tendência fácil para resvalar na polémica agressiva e insultuosa não tem deixado florescer. Ficamos assim culturalmente limitados nessa nossa quase incapacidade de manter, por escrito e em público, um diálogo civilizado sobre questões, quer de fundo, quer de relativo interesse teórico ou prático, na literatura, na filosofia, na política e em tantas outras áreas. Antônio Sérgio foi quase apenas uma excepção igualmente prototípica, na medida em que constitui também o expoente de uma faixa limitada – mas existente – na nossa história cultural. E até nem o Eça polémico consegue escapar ao estilo predominante. (13)

Juízo mais severo do que este fui encontrá-lo em Vitorino Nemésio, no seu magnífico prefácio a Grandes Polémicas Portuguesas,.

O português gosta de ver um bravo, ou mesmo uni louco, ao parapeito. A solidão moral de um Eurico, vítima sentimental de unia sociedade em crise de decomposição e seu objector de consciência, fez escola. O próprio Herculano, autor desta ficção, se encarregará de passá-la a situações reais e concretas da polémica. "Profeta" e "presbítero" vestiam a pele do panfletário,

Assim, os seus sucessores na polémica civil e pessoal da literatura portuguesa não fizeram mais que carregar os traços e as cores de uni tipo linguístico de combate por assim dizer congénito com o modo de ser nacional, que, em tensão pendular entre o lirismo e o sarcasmo, disfarça ou vela uma espécie de amor vital de ingenuidade inumana. (14)

Sobre essa característica da vida cultural portuguesa, Mário Sacramento propõe, numa crítica ao trabalho de Alexandre Cabral, a seguinte interpretação:

Quando o espírito polémico levava a insânias como as que descreve Camilo (cenas de tiro, cabeças rachadas, duelos) ou obrigava um Antero a bater-se à espada com um Ramalho, era o individualismo burguês quem pilotava a época. (15)

No tempo de José Agostinho de Macedo seria também o individualismo o contexto favorecedor das suas atitudes? E todas as vezes que na nossa história cultural – a grande e a pequena – nós revelámos na polémica as mesmas características ressaldas em Camilo, (16) terá sido sempre o individualismo burguês o factor determinante? Se assim fosse, seria caso para dizermos que, contra o que afirmam as histórias económico-sociais, Portugal é de há muito uma sociedade estruturalmente burguesa.

Não se conclua de tudo quanto acima fica dito que faço parte dos "timoratos, acomodatícios e os de mentalidade obscurantista" que, segundo Alexandre Cabral, detestam a polémica (1, 11). Reconheço que faz parte do processo de inovação de ideias e renovação de mentalidades. A história da cultura europeia está cheia de exemplos contundentes. Basta lembrar a "Querelle des Anciens et des Modernes"; os violentos debates à volta da publicação de Génie du Christianisme, de Chateaubriand; de Allemagne, de M.me de Stäel; das calúnias de Voltaire contra Rousseau; das iras de Nietzche contra Wagner; dos impropérios de Schopenauer contra Hegel; do desancar de Sartre por Raymond Aron; ou do acinte de Bertrand Russell contra o New York Times. Mas as causas não eram, ao menos, comezinhas, como tão frequentemente acontece em Camilo, nem existia uma tão elevada desproporção entre o montante do vocabulário usado e a ideia que se pretende expressar. Além disso, e sobretudo, elas eram defesas de causas – por vezes grandes causas – que não resvalavam facilmente para a personalização mesquinha mesmo quando envolviam a afirmação de egos fortes.

Se estas considerações parecerem ao leitor por sua vez demasiado pessoais, fique a explicação: ditam-nas a experiência de quem, levado pela vontade de estabelecer por escrito um diálogo sério sobre ideias em que as intervenções façam avançar o entendimento de uma ou outra questão, já inúmeras vezes encontrou o silêncio na maior parte dos casos e, nos outros, o insulto. Está em moda falar-se em diálogo: Bakhtine, na crítica literária (o homem dialógico), Rorty na filosofia (a conversação cultural). Nem sempre tudo se pode fazer segundo as regras do diálogo académico, ou da "conversação" advogada por Agostinho da Silva. Uma boa polémica é sempre saborosa e saudável quando, juntamente com o prazer da leitura de um texto vivo, irreverente, irónico e mordaz até, ao leitor é servida urna série de factos que vale a pena conhecer e de ideias e bons argumentos que ajudam a pensar e nos alargam os horizontes (17). Em Camilo Castelo Branco, o novelista brilhante vira-se do avesso quando polemiza. Porque o humor requer distanciação, os mergulhos emocionais de Camilo nos seus debates, transformando-os em autênticas guerras verbo a verbo, não lhe permitiram libertar o espírito, nem usufruir da sua capacidade criativa com superioridade e subtileza. Para além de uma faceta ética nada edificante, serve-nos páginas e páginas de quase apenas vocabulário exuberante mas culturalmente arcaico. Na verdade, embora enriquecedor do meu próprio vocabulário passivo, não me é sequer aproveitável, por já estar francamente em desuso... no seu próprio século.

Eça, embora, como vimos, não sirva de grande exemplo em matéria de polémica, escreveu a Camilo:

Sempre, "a todo o talho de foice`, em artigo, em local, em anúncio de partida, em felicitação de dia de anos, Vossa Excelência é pelos seus discípulos e amigos louvaminhado e turibulado – como o grande homem do Vocábulo, esteio forte de Prosódia, restaurador da Ordem gramatical, supremo arquitecto das frases arcaicas, acima de tudo castiço, e imaculadamente purista! E ainda mais na intimidade, os amigos de Vossa Excelência o celebram como o homem que melhor sabe descompor o seu semelhante! (...) /E/sta geração mais nova o /imagina/ a Vossa Excelência um intolerável caturra, (te capote de frade, debruçado sobre um Léxicon, a respigar termos obsoletos para com eles apedrejar todos os seus conterrâneos. (18)

Mais perto de nós, Nemésio exarou lapidarmente o veredicto:

Nas polémicas camilianas de móbil religioso ou erudito o factor pitoresco do adversário prime sobre as razoadas razões que pudesse haver contra o próprio. E basta um trocadilho, como feito com os verbos deputar e delegar aplicados a certa atitude de um publicista brasileiro, para que Camilo conquiste abusivamente a sua galeria de leitores, muito mais empenhados em ver urna luta de galos do que em derimir a verdade entre dois contendores de boa fé. Por isso a imagem de "carvalho cerquinho" do cacete estadeado pelo escritor ficou como símbolo da sua acometividade polémica, e o grosso epíteto – "descompassada besta" – como a chave do êxito dos seus lances de dicacidade amarga." (19)

Sobre o humor em Camilo, nada mais se me oferece dizer. O que aí fica, porém, reclamaria agora uma outra análise exactamente sobre o humor. Mas isso é tema para outro lugar. (20)


NOTAS:

(1) A edição de As Polémicas de Camilo, publicada em três volumes em Lisboa (Portugália, 1962, 1964 e 1967), contém 18 polémicas. A edição em cinco volumes, que se diz integral, de Livros Horizonte (Lisboa, 1981), contém 24 polémicas. Na contracapa de cada volume vem a lista das 36 de que Alexandre Cabral fala no seu prefácio. Duas das que faltam nos cinco volumes da L. Horizonte estão tia edição da Portugália. Desconheço se saíram os volumes com as doze polémicas que faltam.

(2) Id., Vol. II, p. 27. (A introdução geral à obra é continuada no segundo volume.)

(3) Nem sempre Camilo tinha razão quando se tratava de propriedade de linguagem. (Jacinto do Prado Coelho refere-lhe a "admirável propriedade" – Dicionário de Literatura, Figueirinhas, Porto, 1978). Por exemplo, Camilo, castiga Augusto de Soromenho por ter usado numa tradução a fórmula "o fundo histórico" em vez de "essência e substância". (IV, 101) Evidentemente, aqui é a mundividência de Camilo que lhe faz tomar o conceito de "fundo histórico", das ciências sociais, pelos filosóficos de "essência e substância,'.

(4) II, 8.

(5) Ver Nat Shapiro, ed. Whatever It Is, I Am Against It (New York: Simon and Schuster, 1984).

(6) Manuel Simões, "Humorismos poéticos de Camilo", Boletim da Casa de Camilo, 1988, p. 86. Citado em Joaquim José Cracel Viana, O Humorismo Latino (Braga: Edições APPACDM Distrital de Braga, 1994), p. 211.

(7) Op. cit., p. 208.

Uma colectânea como a de Luiz de Oliveira Guimarães, O Espírito e a Graça de Camilo (Lisboa: Edição Romano Torres, 1952) constitui apenas outra confirmação dos juízos acima expressos.

Ao leitor a quem esta análise parecer eivada de má vontade contra o escritor, adianto que conto entre as minhas quadras satíricas favoritas da história da cultura portuguesa unia que li nos meus anos de adolescente numa colectânea intitulada Anedotas e Episódios da Vida de Pessoas Célebres. Não me recordo do nome do autor, mas conta ele que Camilo tinha urna vizinha chamada Iracema, a qual vivera no Brasil. Camilo sabia que ela troçava dele e o apelidava de Flautinhas. Um dia, porém, recebeu unia lembrança dela corri unia frase a confessar que lhe tinha afeição. Camilo remeteu-lhe um bilhete com duas quadras, mas o autor cio livro autocensurou-se alegando não poder imprimir a segunda devido à linguagem ousada (até aí, mais unia confirmação) e por isso nunca cheguei a conhecê-la, por mais que tivesse já procurado. Eis a primeira quadra, exímia em criatividade, com um insulto engenhoso embora nada subtil: "Com que então, minha caipira,/ Gostas muito do Flautinhas?! /Minha linda, minha Ira/Sêmea boa pràs galinhas!

(8) Avelino César Augusto Calisto, O Sr. Camilo Castelo Branca e tis suas Notas à Sebenta (Porto: Livraria de Ernesto Chardron, 1883), p. 3.

(9) Faço questão de frisar que não se trata aqui de fazer qualquer generalização global extensiva a toda a cultura portuguesa, mas sim da tentativa de identificar unia espécie de tipo ideal (de Max Weber) incarnado na pessoa de um expoente máximo desse próprio tipo.

Não constitui, aliás, novidade estabelecer unia relação entre aspectos da vida e obra de Camilo e unia vertente importante na tradição cultural portuguesa. Fê-lo jacinto Prado Coelho positivamente ("O estilo [de C.] (...) é o mais adequado instrumento para a expressão do 'mundo' camiliano, tão entranhadamente português nos sentimentos, nos temas e nas personagens." "Camilo C. Branco ", Dicionário dê Literatura. Porto: Figueirinhas, 1978, p. 160) e fê-lo também Miguel Torga negativamente ("Como homem carregado da nossa cruz, da cruz das nossas paixões, da nossa sentimental idade, do nosso humor, da nossa erudição e do nosso individualismo, ninguém em melhores condições do que o atormentado de Seide para pôr tudo isso em letra redonda. (...) Há um tal mau gosto em toda a sua obra, unia tal vulgaridade, (...) unia tão ingénua maneira de olhar as almas e os problemas..." Diário, 1, 5ª ed. revista. Coimbra: 1967, p. 191).

(10) Mário Sacramento, Ensaios de Domingo III (Lisboa: Vega, 1990), p. 38.

(11) Nem sempre assim aconteceu. Em 1851, por exemplo, O Nacional fazia preceder a publicação de duas intervenções de Silva Túlio e Camilo lamentando ter de fazê-lo e lamentando igualmente o facto de dois jovens talentosos andarem a desperdiçar o seu tempo, no pugilato literário. (Ver 11, 107)

(12) De entre os muitos exemplos que poderia aqui referir, registo este. Em carta ao director do jornal Correio dos Açores, uni leitor elogia o escritor Manuel Ferreira (açoriano, autor de O Barco e o Sonho, e homónimo de Manuel Ferreira, luso-cabo-verdiano, autor de Hora di Bai). Cito algumas linhas: "Como jornalista, é, sem sombra de dúvida, o que mais garra tem para urna polémica. (...) Mesmo sem razão, leva o inimigo à parede!" Henrique Medeiros, in Correio dos Açores, 30 de Março de 1994.

(13) Valeria a pena aqui comparar as polémicas de Camilo e Eça, sobretudo agora que João Reis nos tornou tão acessíveis as Polémicas do, Eça de Queiroz, 4 vols. (Lisboa: Heuris, 1987). A propósito dessa colectânea, Vergílio Ferreira acentua a ideia de que também Eça, apesar da sua "agilidade" humorística, nem sempre cuidou de argumentar honestamente: "Nós habituámo-nos por exemplo a julgar o Pinheiro Chagas um patarata. A gente só ouvia unia das partes e o génio humorístico do Eça fazia-nos apertar a barriga na gargalhada e pensar o outro como um idiota. Pois bem: não é. Ler o Chagas e o Eça é verificar que o Eça era pouco honesto nos seus processos e que o Chaga,,; tinha critério e batia forte e certeiro. O que lhe faltou apenas foi a agilidade do Eça, o seu malabarismo e inventiva humorística." Vergílio Ferreira, Conta-Corrente. Nova Série, vol. 1 (Lisboa: Bertrand, 1993), p. 163.

(14) (Lisboa: Verbo, 1964), p. XIX. Vitorino Nemésio escrevera também alguns parágrafos antes: "...os grandes representantes do estilo polémico português, no que ele tem de criador da tensão pugilista através do vocabulário disfémico, do juízo gravoso e iníquo, da sintaxe popular irrespeitosa e violenta, são mais os Macedo que os Verney, os Camões que os Herculano, os Homem Cristo que os Proença". (p. XVI).

Dir-se-á serem, todavia e infelizmente, os monólogos e solilóquios o que melhor caracteriza o nosso "diálogo' cultural. Mas se hoje parecemos mais civilizados nos jornais do que no tempo de Camilo, que chegou a usar da pistola, como se o Porto ficasse no Texas, não desmerecemos da tradição que herdámos. Nas páginas dos nossos jornais e revistas abundam exemplos de espírito camiliano e o que mingua seta talvez a coragem de responder por serem desiguais as armas e se recearem os desbragados efeitos de resposta.

(15) Ib., p. 37.

(16) Veja-se As Grandes Polémicas Portuguesas, de Vitorino Nemésio (Lisboa: Verbo, 1964-67).

(17) Registo aqui como exemplo de unia escrita polémica inteligente e informativa, divertida e mordaz, viva e subtil, mas contidamente civilizada, o volume de meio milhar de páginas The Gentle Art of Philosophical Polemics: selected reviews and comments by Joseph Agassi (La Salle, Illinois: Open Court, 1988).

(18) "A Camilo Castelo Branco" (carta), Cartas e Outras Escritos (Lisboa: Livros do Brasil, s. d.), p. 302.

(19) Op. cit., p. XIX.

(20) Sobre humor escrevi, entre outros, "A filosofia do humor, ou o humor em filosofia", Jornal de Letras, Artes e Ideias. Entre as obras mais informativas sobre o humor, veja-se John Morreall, Taking Laughter Seriously (Albany: State University of New York Press, 1983); John Morreall, ed., The Philosophy of Laughter and Humor (Albany: SUNY Press, 1987); Jeffrey H. Goldstein and Paul E. McGhee, eds., The Psichology of Humor (New York: Academic Press, 1972); Victor Raskin, Semantic Mechanisms of Humor (Dordrecht: D. Reidel Publishing Co., 1985). Vejam-se também vários dos artigos incluídos na revista Humor. International Journal of Humor Research.

Onésimo Teotónio Almeida, texto publicado no volume de homenagem a Óscar Lopes Sentido que a Vida Faz, Porto, Campo das Letras, 1997.

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