Letras & Letras

Entrevista


Encontro com João de Mancelos

(Entrevista dirigida por Ana Paula Cabrita Dias Tribuzi)

Professor universitário, escritor, produtor de espectáculos de poesia e colaborador em jornais e revistas – assim se tem estendido a vida de João de Mancelos.

No dia 18 de Fevereiro, teve lugar na Biblioteca Municipal de Aveiro, a sessão de lançamento do quinto livro do poeta – O Labor das Marés.

Num interessante espaço de comunicação, o escritor revelou aspectos fundamentais da sua postura literária. A conversa foi desencadeada por vários tópicos.

1 – A.T. – Qual a relação do título O Labor das Marés com o trabalho de criação poética?

J.M. – O «labor das marés» é uma imagem que explicita o processo de criação poética. O trabalho do autor é um movimento constante, simultaneamente repetitivo e sempre diverso – como as marés. Umas vezes sereno, outras mais fértil e alteroso, cíclico, influenciado pelos cambiantes e ambientes das estações do ano, e pelos ritmos da sua existência como ser biológico e cultural, no espaço e na cronologia.

Por outro lado, o «labor das marés» é um trabalho persistente, uma demanda em que a procura em si se volve mais importante que o atingir uma hipotética e sempre inefável meta. Como as ondas constrõem, ao longo de milénios, a praia, e permanentemente a re-arranjam, alisam e aperfeiçoam, nos seus fluires e refluxos, também eu escrevo e modifico os meus textos com perseverança e paixão. Eugénio de Andrade fala-nos da literatura como um «ofício de paciência», e eu secundo-o.

O movimento das marés é ainda um processo terreno, espacio-temporal e indiferente à actividade humana. Uma espécie de respiração íntima e genesíaca do planeta. Nos vários poemas da obra, teço e relembro as ligações entre o ser bípede e a ancestralidade de uma natureza que nos precedeu e sobreviverá, independentemente dos nossos dramas, cataclismos e desejos. Daí que no poema inicial desta minha obra eu fale do «parto de mundos», da «morte de sóis distantes» e coloque o Homem como um ser breve, isolado, misto de arte e morte – a «perpétua solidão / do monólito na seara».

2 – A.T. – Sugira algumas linhas de leitura da obra.

J.M. – A intencionalidade do autor é uma falácia. O seu fingimento é íntimo. O que ele «quis dizer» é irrelevante. É o LEITOR que constrói o sentido, através de múltiplas interpretações. Dizia Octávio Paz: «Aberto ou cerrado, o poema exige a abolição do poeta que o escreve e o nascimento do poeta que o lê» ou ainda «Cada leitor é outro poeta; cada poema é outro poema». Com efeito, um livro re-escreve-se, de acordo com quem o lê – e até a mesma pessoa, em momentos distintos o interpreta de forma diversa.

Assim sendo, é-me tão inútil quanto impossível sugerir linhas de leitura para a minha própria obra. Estaria a imiscuir-me num espaço que não me pertence – o do leitor, o do crítico. Não lhes posso roubar essa fatia. O poeta não diz. Faz o texto. E o texto é múltiplo, fértil e pede que lhe coloquem questões, que o debatam, que o pensem, que com ele dialoguem, já Julia Kristeva afirmava.

Posso apenas franquear um pouco a fronteira que me une e separa do leitor, confidenciando os temas que me movem e comovem. Um deles é a adolescência como ponte entre o paraíso perdido da infância e antecâmara da adultícia. Uma espécie de expulsão, tema de escritos dos autores norte-americanos Jerome Salinger e Sylvia Plath, do britânico L. P. Hartley, da portuguesa Graça Gonçalves, mutatis mutendis. Khalil Gibran, num poema lindíssimo sobre a puberdade, escreve:

«Dá-lhes amor, mas não lhes imponhas os teus pensamentos,
porque eles têm pensamentos próprios;
podes abrigar os seus corpos, mas não as almas,
porque estas habitam nas casas do amanhã,
cerradas perante ti e os teus sonhos;
podes esforçar-te e ser como eles,
mas não procures torná-los iguais a ti.
A vida nunca regressa, nem se demora no ontem.»

O tema da adolescência foi embrionário no meu primeiro livro – Entre Ausência e Esquecimento, eclodiu no poemário A Oeste Deste Céu e representou-se, de forma mais completa e complexa em O Labor das Marés. Urbano Tavares Rodrigues notou a temática já na minha segunda obra, que qualificou de «jovem, limpa e com tanto sentido estético». O próprio Eugénio de Andrade o agradeceu. Coisa rara, num poeta que, segundo se diz, deita muitos dos livros que lhe ofertam para o caixote do lixo.

Infelizmente, nem todas as pessoas souberam compreender A Oeste Deste Céu como um livro enganadoramente simples e singelo, um poema global em quarenta e dois momentos, em que vocábulos-chave de um texto emergem no seguinte, – às vezes em contextos e com significações diferentes! – criando uma ligação/contraste constante. O próprio estilo visava ser algo coloquial, miscigenando-se com o idioma próprio dos adolescentes, sem cair na banalidade, inimiga da poética.

O Labor das Marés é, certamente, mais intenso, com um maior espaço dedicado à adolescência, e um maior refinamento artístico. Muitos dos temas que aqui transparecem concernam as minhas preocupações sociais. Uma literatura de engajamento – passe-se o galicismo –, comprometida com as questões sociais da nossa época, que por sinédoque funciona como espaço representativo de todas as eras de opressão e injustiça. Era aliás inevitável: a dita arte pela arte é utópica e estéril, embaraço para si mesma e em si mesma uma impossibilidade. O próprio Wallace Stevens preconiza uma dialéctica autor-mundo, no poema «Teoria», ao versar: «Sou o que me rodeia». A crítica tem gostado desta obra, até mais do que das anteriores. O que também tem consequências boas na vertente comercial.

3 – A.T. – Como vê a presente obra no conjunto da sua produção?

J.M. – Uma evolução resultante de dois anos de trabalho. Entre ambos, surgiu o opúsculo Ausentes para Amor Incerto, que funcionou como uma amostra do que viria a ser a presente obra, na qual, aliás, está incluido. De fact, trabalho constantemente na minha poesia. Entre os papéis onde rascunho os meus textos, contam-se bilhetes de autocarro, de comboio, páginas de agenda, o verso de fotocópias inutilizadas... Testemunhos de que a inspiração é ninfa expedita que o fauno tem de agarrar, em qualquer ocasião. Li, em tempos, uma curiosa crónica em que o autor definia a inspiração como um coelho: mostrava apenas as orelhas e preparava-se para desaparecer. Naturalmente, surge depois todo um ofício de depuração, transformação – e às vezes recusa do texto pelo próprio autor. Quando lancei o meu primeiro livro de poemas – Entre Ausência e Esquecimento seleccionei apenas quarenta dos mais de duzentos textos escritos durante cinco anos.

O Labor das Marés foi também o resultado de um parto lento e esforçado. Cheguei a consagrar-lhe duas a três horas por semana, naquela solidão que o António Lobo Antunes considera tão profícua quanto louca. Pouco a pouco publiquei vários dos poemas na imprensa nacional ou da região. Obtive as necessárias apreciações. Foi um trabalho resultante de inúmeras leituras e re-leituras – os Haikai (plural de Haiku) de Matsuo Bashô, a poesia de Hart Crane, Wallace Stevens, e. e. cummings (é mesmo assim, com minúsculas, que se escreve), Leonard Cohen (que tem diversos livros de poesia publicados), Susanne Vega, Reiner Kunze.

O Labor das Marés foi um resultado de escritas e leituras. Ao nível temático, um limar constante do tema da adolescência. Vejam-se os textos «Tempo», «In Naturalibus», «Fuga» e «Últimos Ritos». Por outro lado, foi um risco: a tentativa de articular a temática da relação amorosa com a vertente interventiva. Na verdade, quer uma guerra, quer uma discussão conjugal podem ter na base um mesmo fenómeno – o da INCOMUNICABILIDADE. Esta obra explora a questão: será possível dizer e ser compreendido? Estará o ser humano ligado pela linguagem, ou será ela tão íntima e diversa, indígena de cada um, que a troca e a partilha de sentidos são redundantes e agressivas? Trata-se de uma questão humana, parte da poética e da hermenêutica. Em vários poemas debato este assunto: «Palavras», «Almas Telefónicas», «Troianos Cavalos», «As Cidades Invisíveis» e o texto «Ausentes para Amor Incerto», um paradigma, no próprio título, do que estou a explicar.

A crítica tem aplaudido a obra. Ainda só agora estão a aparecer na imprensa referências, mas sinto-me muito satisfeito. Até porque, mais do que inspiração e transpiração, a poesia é, para mim, RESPIRAÇÃO. A existência quotidiana, o meu ritmo psíquico, biológico, artístico. Daí que O Labor das Marés seja uma vivência de dois anos, diário íntimo, feito de verdades e mentiras, como dizia o meu mestre Helder Macedo, em que cresci do mundo e para mim, de mim e para o mundo.

4 – A.T. – Que projectos literários para o futuro?

J.M. – A Pessoa acontecia-lhe um poema. Sophia descreve de forma similar a sua actividade literária. Eu extrapolo o caso singular do poema para toda a minha construção artística. Hoje «acontece-me» um conto. Amanhã, uma crónica. Depois, talvez uma poesia... Tenho trabalhado, desde há três anos numa colectânea de estórias bizarras, algumas próximas da área do fantástico ou mesmo da ficção científica.

Guardo algumas poesias inéditas, mais experimentais – quer no tema, quer na forma. Por outro lado, encontro-me na fase final da elaboração da minha tese de mestrado, na faculdade de letras da Universidade de Coimbra – traduzo a obra A Ponte do incontornável poeta modernista norteamericano Hart Crane, já vertido para castelhano, francês, japonês, romeno.... Uma grande responsabilidade, pois trata-se da primeira tradução portuguesa desse autor. É necessário ler quilos de obras e fotocópias, para se entender a extrema beleza e complexidade de Crane. É árduo. Uma tarefa de atenção, perspicácia linguística e ideológica que desde há um par de anos me tem vindo a ocupar, semana após semana. Mergulhar na língua feita poesia, desvendar e transladar culturas no tempo e no espaço. Mas é também uma criação paralela, com débito à inspiração e crédito num certo prazer. Se «traduttore, tradittore», então tentarei trair com beleza. E tenho a felicidade de ter a orientar-me a Professora Doutora Irene Ramalho Santos – uma especialista de nomeada internacional, na área dos estudos anglo-americanos.

Em Maio deste ano, irei tomar parte no «2º Encontro Internacional de Poetas», promovido pela Universidade de Coimbra. É uma honra para mim participar nesta iniciativa, juntamente com nomes como António Ramos Rosa, Manuel Craveirinha, Egipto Gonçalves, Al Berto, Ana Hatherley, Fernando Echevarría, Fiama Pais Brandão, Yvette Centeno, Ribeiro Ferreira e muitos autores vindos dos vários continentes.

Para já, o mais importante é divulgar a minha obra mais recente, O Labor das Marés.

Estou envolvido em muitos outros projectos, mas não disponho de sufiente tempo livre, pelo que constantemente os adio. Tento, acima de tudo, tirar o máximo proveito do meu trabalho. Muitos dos artigos que escrevo resultam da minha actividade como professor universitário – textos que analiso, quando preparo uma aula; locuções que concebo, para conferências; reflexões colaterais, sugeridas no âmbito da minha tese, etc. Por outro lado, sou um leitor activo, de lápis na mão, surgindo daí estímulo e matéria para críticas literárias. E nenhum aveirense fez tantas recensões a autores desta cidade como eu, nos últimos três anos.

Mas não me precipito. Escrevo para me salvar. E para ter o amanhã, necessito de cumprir o hoje. O que planeio é não planear. A literatura não se escolhe, nem se força. É uma amante às vezes ingrata que exige devoção, mas nem sempre cumpre com fidelidade. É feita de momentos irrepetíveis e não acede a encontros marcados. Pode desvanecer-se, com o tombar de uma folha, num poema japonês, e eis-nos de novo, no universo sombrio, o fundo da caverna de Platão. Deixe-me citar-lhe a última estrofe do poema A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock, escrito por T.S. que ilustra a imprevisibilidade e fuga da literatura:

«Ficámos nas mansões do mar nós dois em abandono
Entre as ondinas e grinaldas de algas castanhas purpurinas
Até que humanas vozes nos despertam e naufragamos.»

O importante é eu NÃO parar de escrever. Conseguem suspender a respiração? Pois nem eu posso adormecer a minha literatura.

5 – A.T. – Qual a situação dos poetas em Portugal no tempo presente? E da poesia?

J.M. – «Poetas em tempo de prosa». Nem as editoras vendem, nem o público lê. Há alguma presunção e demasiada gente a apontar para o que a poesia «deve ser». Os tais «literadinhos» e «literadoutos» de que nos fala o poema de David Mourão-Ferreira. Um erro. Deverá haver uma educação para a leitura, a análise e o sentir da palavra poética. Um hábito de assistir a espectáculos com declamação de textos. Um desmistificar da aparente inacessibilidade da lírica, – «abaixo o mistério da poesia», dizia Gedeão. Publicar compilações de novos autores. Correr com certos críticos esclerosos, limpar as estantes e esquecer, ao menos por um instante, a tradição, que se está a volver menos numa base e mais num jugo que não deixa chegar ao capitel. Penetrar, enfim, numa amnésia criativa. Inovar e aclimatizar à poesia novos temas, aparentemente banais ou pouco propícios à inspiração. John Oliver Smith, por exemplo, tem um texto curioso sobre os surfistas – é assim:

«Na porcelana da mais fina onda,
os cavaleiros loiros,
antigas crianças viquingues,
hordas deles, flutuando
onde o horizonte se desenha,
íntimos do sonho, a visão distante,
até a lenta curva se elevar
e eles deslizarem,
em cavalos de fibra de vidro,
dentro das cavernas de chuva –
contemplei o seu regresso
ao pôr-do-sol,
abraçavam os longos navios,
os olhos, o jade do oceano.»

É também necessário estar atento ao que se faz dentro de portas, ridicularizando o ridículo. Mandar vir as lombadas que no estrangeiro se publicam. Trazer os poetas às escolas – eu vou, com gosto. Criar manifestos anti-quadra-pseudo-popular e rima «amor» / «dor», como ainda outro dia, em conversa na Rádio Moliceiro, acordámos. Brincar com jogos fónicos, colagens e transposições – apesar de estas já existirem nos anos cinquenta, como comentava o poeta e amigo Michael Franco. Ouçamos as vozes novas. Ou, parafraseando um poema de Bashô, velho de quatro séculos:

«Silêncio:
as cigarras escutam
o canto das rochas».

6 – A.T. – Qual a função do poeta no mundo contemporâneo?

J.M. – Julgo que a função do poeta é tão imutável quanto a própria essência da palavra poética. Primeiramente, é necessária uma acuidade sensível aos mundos íntimo e exterior. Sophia Andresen fala-nos de «atenção»:

«O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento»

Em seguida, o poeta deve ter a consciência de que, como defendia um autor norte-americano, «o poema não deve significar, mas ser». Está a criar uma realidade nova, acredito, mas que é também, para citar Mark Strand, «o espelho no qual a dor está adormecida». Que o percurso do escritor aconteça nessa «terra infirma» onde arte e vida se confundem. Porque, diz-nos Oscar Wilde, «a vida imita mais a arte, do que a arte imita a vida».

Dito.

Ana Paula Cabrita Dias Tribuzi, 1995

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