Letras & Letras

Recensões

A Idade da Escrita
Ana Hatherly
Lisboa, Edições Tema, 1998

Ana Hatherly ou
A Idade da Escrita

Numa tradição que remonta a Demócrito, a inspiração poética é atribuída a um sopro divino que os deuses emitem e que o poeta recebe, habitado pelos deuses. A palavra poética reveste-se aqui de uma imaterialidade a que o poeta não sabe, nem pode, resistir. Certo de aceder ao mistério do mundo, o poeta faz unidade com a palavra, adere a ela, torna-se medium. Subjugado ao seu poder encantatório, o poeta lança em voo a palavra, como pássaro ou como seta. Como em Homero, as palavras são «aladas», isto é, exprimem a noção «de que as palavras – diz-nos Maria Helena Rocha Pereira em estudo dedicado precisamente à natureza alada da palavra nos textos homéricos –, acertavam no alvo como flechas». Ora, em A Idade da Escrita, Ana Hatherly com frequência convoca o prodígio da palavra como realidade inefável, como dádiva:

«Por entre incríveis e encantados freios
a mão que escreve
ilumina
da simples palavra
o trabalho obscuro em seu dentro.

(...)

Dádiva da alma
que fala sem ter voz
que voa só para o único
e dá-se a conhecer só no oculto
tu és oferenda
a um infinito furor

A mão que escreve
prende à memória
a mais esquiva sereia» (p.13)

É assim que a palavra, a posse da palavra, abeira-se da vizinhança dos deuses. A associação da palavra à criação – verbo neoplatónico e joanino –, é o sinal da revolta humana face ao esquecimento e à morte: usurpa o futuro aos deuses. A fragmentação ou a cegueira é o castigo para o atrevimento que a palavra actualiza. Não está aqui a

explicação para o inebriamento que acomete o poeta no instante da possessão pela palavra? Neste sentido, a poesia é o mais radical dos jogos: abeira-se do aniquilamento para que a palavra renasça com um ímpeto insuspeito. Ao subverter a mortalidade, o poeta incorre no maior dos perigos com a inocente perfídia de um jogador compulsivo:


investe a totalidade num encadeamento de versos que, na remetência a si mesmo, antecipa a novidade absoluta:

«O poeta não quer duplicar o mundo
não quer fazer dele uma cópia:

Luta com a palavra
como Jacob lutou com o anjo
mas a escada que ele sobe
conduz a outras alturas
a outras planuras

É assim que o poeta
palavra por palavra
como pedra sobre pedra
constrói o edifício do poema

E a sua mão
robótico instrumento comandado
pela algébrica lógica do sentido oculto
produz
deve produzir
o que o mundo não tem
o que o mundo não diz
o que o mundo não é» (p.15)

Abrir-se à surpresa e ao espanto que daí decorre é o destino da poesia: «(...) fitar a felicidade/incendiar tudo com os olhos abertos» (p.16).

O leve vislumbre da obra feita, do poema acabado, do verso feliz, da palavra justa, é acompanhado do sentimento de incomodidade que a transposição dos limites implica. À exaltação do instante da criação sucede-se o abatimento que só a superação de si provoca. Se a linguagem, a palavra, é a casa do ser, também não é menos verdade que se trata de uma casa instável. Por isso esta instabilidade, que o poeta reforça pela sua permanente atenção à linguagem, consiste e subsiste pelo cuidado que o poeta lhe dedica. Neste sentido, toda a poesia trabalha suspensa pela afirmação holderliana de que a língua é o mais perigoso dos bens.

Mesmo o silêncio, que a palavra poética sempre obsediantemente convocou, é a palavra elevada à sua anulação. Aliás, nunca esta descoincidência foi tão funda como na nossa modernidade.

À consumição pelo fogo da emoção poética, o poeta contrapõe a feroz disciplina que o trabalho sobre a linguagem exige – «explosão contida», na expressão de Ana Hatherly (p.9). No entanto, a assunção da consciência vigilante é ainda e sempre o refúgio da razão sonhadora; na realidade a vigília da consciência é um sonho que a razão a si mesma se promete. O esforço disciplinado que o poeta se auto-impõe exerce-se na condição de que a graça lhe seja concedida; de facto a linguagem fala através do poeta – há que interpretar literalmente esta afirmação:


«Oh homérica palavra alada
que no balbuciar
do primeiro instante de cada coisa
se evola

Palavra corpo aéreo
que se dissolve no fluir da voz
nuvem
bola de sabão
forma sem conteúdo
a tua bondade reluz
no prodígio da língua

Sem ti perdemos o pé
sem ti perdemos a fé
a promessa da perfeição
a memória de uma fome antiga
que a usura do tempo
não consegue senão multiplicar» (p.18)

Por isso o poeta não domina a linguagem; é dominado por ela. Ao consagrar-se à palavra, oficia a sua rendição. Demite-se da posse de si mesmo para, como nos diz Maria Zambrano em A Metáfora do Coração, se entregar ao delírio – «porque no delírio a palavra brota em toda a sua pureza originária». Esta ausência de si recobre uma outra ausência mais funda, mais sofridamente radical – a da irreparável perda da unidade original que a própria natureza descontínua e fragmentária da linguagem indicia. A criação poética elege-se pois como redenção e o poeta, na e pela palavra, redime-se nesse insustentável instante que, como queria Kierkegaard, é o encontro do tempo e da eternidade:


«No fundo azul
no espelho de uma delicada tristeza
que os meus olhos reflectem:
vês-me?
vês-me como eu sou?
vês-me como algo que se descobre
na acrobacia da imagem?

Na sensual tranquilidade da palavra
o poeta tenta uma arriscada ordem
e entre a fábula e a reportagem

simula mentir
para atingir
a superior verdade» (p.22)

É bem o tópico da perda, da ausência, da saudade presentificada na palavra que a poesia persegue como sombra de si mesma. Por isso soçobramos aos seus encantos na secreta esperança de que, tocados – nem que seja ao de leve –, pelo sortilégio do seu manto possamos aceder, não já como leitores, antes como cúmplices, à idade da escrita:

«Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado

Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde

Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado» (p.53)

Fernando Martinho Guimarães, Novembro de 1998

Voltar à página inicial

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras