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O Labor das Marés
João de Mancelos
Aveiro, Estante Editora, 1994

O Labor das Marés
de João de Mancelos

O Labor das Marés é o título do novo livro de João de Mancelos que temos agora nas mãos: recolha de alguns poemas dispersos, do opúsculo Ausentes para Amor Incerto e muitos outros; são a prova de uma actividade poética contínua e cada vez mais aperfeiçoada.

Sobre este processo de contínuo aperfeiçoamento nos fala precisamente a primeira parte do livro, onde se explica o título da colectânea, O Labor das Marés, constituindo-se como prefácio onde se desvenda a construção poética. Quem é o escritor? Por que escreve? Que relações estabelece com os seus escritos e com o universo que o rodeia? Sobre este assunto, que poderia ocupar muito tempo e espaço, João de Mancelos apresenta alguns elementos, fazendo do escritor e da arte as figuras principais da sua introdução.

(…)

São uma mão cheia de poemas, onde se fala do homem, da vida, do amor, e do mundo, temáticas essenciais , estabelecidas desde o primeiro dos poemas. A vida como processo de crescimento, ciclo de semente e fruto, configura a imagem da adolescência. Mas esta surge como memória do tempo passado, idade dourada e última, eivada de liberdade, sonhos e esperança. À sua passagem, sucede um irremediável desencontro com a vida, o perder dos rumos algum dia entrevistos, o vazio de algo perdido e jamais encontrado. Contudo, tal oposição temporal não configura uma adolescência forçosamente inocente ou ingénua. Em si, traz já a melancolia, a consciência de que não é um estado perfeito mas apenas uma etapa, momento tão passageiro como o Verão luminoso. Com ela, desenvolve o germe da solidão. Sendo assim, a adolescência estabelece-se como um processo doloroso e contraditório, nunca sendo entre o que foi e o que será, juntando as manhãs de primavera, quando o outono é ainda miragem, às «aves gritantes» em «voo suspenso» de pesadelos sem cor. É na relação com o outro, compartilhando a euforia do amanhecer, entre frutos, luz, fogo e beijos, que se mostra a «completude» da adolescência, ainda viva, ainda cheia, ainda amor, vivendo da beleza e da simplicidade.

Mas como evolui essa relação com o outro? Uma leitura mais atenta dos poemas não pode deixar de perceber o abismo entre a harmonia e a disforia. (…) A disforia é marcada sobretudo pela antítese, originando um tratamento específico de determinadas temáticas. A relação com o outro, especificamente a relação amorosa, a própria vida em si, a cidade e o campo, são elementos contaminados inexoravelmente pela negatividade da atitude do poeta. A visão do homem e do mundo não é optimista. Particular e pessoal, o sujeito projecta neles todo um sentimento de solidão e fragilidade que os abala até à ruína.

Relação sensorial por excelência, «um corpo à deriva noutro corpo», mãos que afagam em gestos perdidos, o amor parece existir apenas enquanto angústia. Esta solidão individual é de tal modo forte que todo o outro partilha desse vazio. Uma das ideias essenciais do livro é mesmo o princípio irrevogável de que o homem se encontra só perante o mundo. Sendo assim, é natural que seja a cidade o cenário escolhido na descoberta desta solidão e incapacidade de comunicar com os outros, excluída como está a linguagem gestual, suave e única, própria da relação amorosa. Rostos vazios, gente nua e silenciosa, apenas partilha a brevidade da manhã que desponta (A gente nua dos autocarros, pág. 47). E mesmo no campo, entre o «rosto frio das casas» e «pastoras enxotadas contra os muros», um falcão regressa «para mais só morrer ainda» (Pastoral, pág. 44).

Partilhando também deste universo, a angústia do poeta fortalece-se, cada vez mais consciente de que o outro poderá deixar de existir sem que do seu vazio fiquem marcas. Por outro lado, reforça a sua solidão, cada vez mais íntima e profunda, «cidade desolada», em que o amor como «completude», ou será a consciência do amor, ou melhor, a relação do amor, nunca será suficiente para encher duas «cidades desoladas»» A situações iniciais de euforia, de encantamento e sedução (Acorde, pág. 62), sucede forçosamente a desilusão , «mãos feridas de ruína e solidão» (As cidades invisíveis, pág. 37), «escuridão a dois» (Gumes, pág. 48), olhares gastos e desencontros marcados. Os poemas Ausentes para Amor Incerto (pág. 53) e Nocturno (pág. 60) são talvez aqueles que melhor demonstram essa evolução, desde a esperança adolescente ao fechamento no reduto individual. Na verdade, «já nem saberíamos quem fingir (…) já não somos a glória de um corpo à deriva noutro corpo, as nossas mãos já não florescem nos cantos de cada noite».

Esta redução à individualidade extrema parece decorrer de uma apurada consciência, subtilmente espalhada pelos textos, da fragilidade da vida e de uma concepção fragmentada, sem continuidade, do tempo: «Jamais seremos de novo deuses, adolescentes ou manhã» (Fuga, pág. 25). A felicidade apenas existe enquanto lembrança, nunca enquanto possibilidade, «Anjos breves num mundo em fuga, quem apascentou nossa memória?». Poder-se-á chamar amor ao momento irrepetível do encontro? Poder-se-á chamar amor à cinza que resta do fogo da paixão? «Só as arestas das mãos roçam ainda a cinza fina: o tempo, amor, o tempo», esquivo e frágil, num mundo também em fuga. Repetirá ainda o poeta: «E todo o tempo é feito de cinza; Outubro de um só dia no céu da nossa vida».

Depois de tão longo percurso de cansaço e desalento, surge a hora de um chega, acabou. Parece que finalmente o lamento da solidão, quase no fim do livro, se transforma em celebração de procura e encontro: «Agora é tempo de deixar as palavras desabitadas, o miolo do silêncio (…) É hora de moldar corpos na folhagem dos lençóis, de as mãos serem barro (…)». É tempo de fazer pontes entre ilhas. E o leitor rejubila; finalmente o poeta se reconcilia com o amor? Desilusão… Também o leitor é uma criatura frágil e sonhadora. O último dos poemas fecha o ciclo da solidão, Memento mori (pág. 74), como um «destino marcado a ferro e fogo sobre uma alma distraída e excessivamente inocente», como diz um outro poeta. «Morres em ti, amor, à sombra de noites ardidas. (…) É tarde: a solidão tem alma de fera, e a noite é imensa, quando se cresce: não há chuva que doa tanto, não há ave que te regresse.»

Sentida e reflectida, harmoniosa e bela, assim é a poesia de João de Mancelos. Um bom livro que vale a pena ler e pensar, que dialoga e estabelece pontes com a solidão que existe em cada um de nós.

Sara Manuela Augusto, Junho de 1995

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