Letras & Letras

Recensões

Alberto Augusto Miranda e as Edições Tema

Um dia, Mário Cláudio quis apresentar-me um amigo, Alberto Augusto Miranda, em sua casa, se não me falha a memória, para colaborar no Letras & Letras. Lá fui. Desse primeiro encontro ficou-me um flash impressionista, pinceladas livres, luz e sombra. Um ar de clochard, que não seria mais que uma maneira de ser e de estar, livre, num respeito por si mesmo, que o mesmo quer dizer insubmisso aos outros que têm por prazer sádico modelarem todos dentro de padrões estabelecidos. A sua figura não me perturbou. Eu gosto de lidar com estas figuras, clochards ou não. Talvez um espécie de liberdade envergonhada que assim se manifesta, ou um sabor à minha infância, paredes meias com clochards. Conversámos. De quê? Sei lá agora! Já lá vão uns anos. A minha memória deve ser das mais pequenas da terra. E nem sequer passou pela minha cabeça, na altura, que hoje evocaria esse momento. A única coisa que me ficou, e é quanto basta, para mim, é que sé criou uma empatia que se transformaria numa sã amizade crescente.

O Alberto é transmontano. Tem uma costela cigana, no mínimo, de que se orgulha. Quem o conhece sabe que não poderia ser de outra maneira. Fez os seus estudos liceais em Vila Real. A licenciatura em letras em Lisboa, creio. Tirou também o curso superior de música. Das duas frentes, letras e música, tem feito carreira, à sua maneira, quando lhe apetece e como lhe apetece, sempre sem preocupações curriculares, ou de segurança económica. Ser livre, com todo o respeito pelos outros, sua preservação ecológica existencial, é o seu lema. Já esteve para fazer o mestrado, creio que empurrado por terceiros. Mas nada. Eu próprio achei que devia seguir uma carreira académica, dada a cultura e a inteligência que possui. Mas nada Não é homem de cátedra, pelo menos para já. Prefere um banco de pinho, junto dos seus amigos, dos que estão na sua onda. Ou no Porto ou em Lisboa. De actividade em actividade, seja das letras, seja da música, sem um vínculo permanente. Não suporta um nagalho a prender-lhe os braços, no que quer que seja. Talhado pare iniciativas, para o diferente, com base na cultura e no humano, tem tido várias, das quais aqui me proponho destacar Edições Tema, que exigem muita temeridade, quando os lugares ao sol das protecções já estão todos tomados. Vou recebendo com regularidade essas publicações, que leio, com mais ou menos atenção, conforme as circunstâncias, raras vezes da minha autoria. Mas há momentos para tudo e até para dizer «é agora». Peguei nos três últimos livros da colecção para a partir deles ficar com uma ideia mais correcta das Edições Tema, já com 16 títulos publicados.

El Futuro, de Alfredo Fressia, uruguaio, nascido em 48, poeta, crítico jornalista cultural, professor de Literatura e Francês em S. Paulo Brasil.

À medida que o fui lendo, ou melhor, pensando-o, foram-se escancarando as janelas para o mundo em que estou metido, vítima das leis estabelecidas, que em ai já anunciam a minha condenação, sem avistar um advogado de defesa. E O Inumano, de Jean-François Lyotard, e D'o Gosto e d'o Jeito, de Carlos Debrito, foram-se aproximando cada vez mais da minha leitura. A poesia tem destas coisas, toca, é intervenção, quando sai do sentir e não de uma programação intervencionista ideológica de empréstimo à sensibilidade.

Pensei fazer uma breve análise a esta obra, mas senti que ia destruir o efeito da leitura em mim, como quem toma um café amargo depois de uma fatia de doce, que se quer que permaneça na boca, no seu sabor. E, portanto, apetece-me dizer apenas, gostei; sem uma desconstrução em que o todo se anule pela dispersão. Critério que não deve servir de método, geralmente, mas que em certos casos não será reprovável, se levar o leitor à curiosidade de ler a obra, neste caso, o mais aconselhável. Gostei. Não quis ir mais além. Fiquei com S. Agostinho, se não me perguntarem, sei, se me perguntarem, não sei. Toda a gente sabe que há coisas para as quais não há palavras que as descrevam, porque só vendo-as e sentindo-as. É o caso de El Futuro / O Futuro. Uma poesia mordida por ameaças, que só o contacto directo apreende. Uma poesia que, na sua toada, me traz o Apocalipse de S. João, mais alegórico, já que o de Fressia é mais à base de símbolos, El Futuro é um carrasco que nos sujeita a uma conjugação reflexa.

A Oração de Filipa, de Rogério Carrola, de Tortosendo, Covilhã, nascido em 47, poeta e filósofo, com publicações desde 74.

A enunciação de um texto, a nível de exegese, oscila entre o «então olhai como se estivésseis presentes» e o conceptualismo mais fechado, ou a procura deliberada da ocultação. O crítico, qualquer que seja a sua gazua hermenêutica, vê-se sempre confrontado com um dos níveis possíveis, ou vários em simultâneo. Pode ir para além da intenção do autor, mas nunca para além da intenção da enunciação. Por outras palavras, pode ver tudo menos o que lá não está. A única coisa que lhe será permitida, fora destas malhas, será o eventual excurso, e este, não deve ser metido a martelo, como acontece com muitas citações, em que se nota com relativa facilidade a procura da adaptação do texto à citação e não o inverso.

A Oração de Filipa, um livro de poemas, apresenta-se no seu todo com um suporte narratológico que autoriza a criação de uma história a partir dos fragmentos concedidos. E assim teremos Colombo, o presumível descobridor da América, homem do Atlântico, como máscara onomástica do poeta, que terá passado pela Madeira como professor, de onde terá trazido da sua beleza natural e de um amor nela contraído as recordações que pressionaram a publicitação das suas emoções. No seu tratamento adivinha-se uma duplicidade que se procurou como possível defesa, de uma protecção a uma identidade, ou a duas. Ou simplesmente arte, a criação de um certo hermetismo, de pretensão literária? O «discurso» também se desenvolve num intercepcionismo narrativo/descritivo. De certo, há uma luminosidade que resplandece numa trama cinzenta, Filipa, que é idealiza pela saudade até a abstracção, ao «reembolso», um arquétipo, uma vez regressa ao Continente, o poeta, no fosso da ausência. A ausência, que aviva os traços das emoções, agora em câmara lenta, onde o real se superlativa. E assim terem uma história de sabor romântico, por se privilegiar a pessoalidade e o sentimento, sem cair no sentimentalismo febril, doentio, como convém, para que se aceite, agora.

O título foi extraído do conteúdo do último poema, o número 14. O poeta põe Filipa a evocar uma identidade, que supomos ser a do próprio poeta: «Tu, que iluminas a terra e as estrelas», «Tu, que aconchegas nos regaços todas as lágrimas quentes da ausência», «Tu, que ardes o mundo e desassossegas as tempestades», «Tu, que sabes de Deus o oculto e lhe iluminas a face», «Tu, que beijas todas as barcas e secas as luminosas e doces lágrimas/ dos deuses», «Tu, que não podes ter sequer a infinitamente pequena piedade de mim», «Tu, que sozinho não sofres as trevas, nem conheces o medo», «Tu, que lançaste duas réstias de luz para dentro da igreja em Lisboa», «Ó intensa luz», «Meu confidente rei», «O caminho eterno da beleza e do bem», «Tu, que diriges a harmonia das esferas e a febre dos cristais», «Tu, que conheces a lei da exacta eternidade, ó intensa luz branca». Este poema atinge uma metapessoalidade com ondulações épicas que simulam, que anulam, ou mascaram, um confeccionalismo que não se deseja declarado. Ou há uma tragédia, por detrás deste arroubo final?

Mulher a Facer Vento reúne sete poetas galegas, que vão dos 21 aos 76 anos. Cada uma delas com um bom curriculum. Todas elas a darem uma boa nota à actual poesia galega. São elas: Ana Romaní, Anxos Romeo, Emma Couceiro, Luísa Villalta, Luz Pozo Garza, Olga Novo e Yolanda Castaño.

Se estas poetas fazem a cobertura da poesia actual galega, poder-se-á dizer que a Galiza sintetiza o fundamental das preocupações da modernidade, o desassossego entre o Ser e a Existência, entre o real verdadeiro e a verdade real, poesia de denúncia e de dor, de cair de máscaras, de encontro com o Universo e com o corpo, de cristalizações temporais e espaciais, pois em cristais se depositaram alguns dos seus versos tocados por um certo hermetismo que amplia ecos, se se procura o seu sentido. Uma poesia que nos deixa uma frescura na boca, que, sendo de lamentação, se opõe à lágrima de uma inércia ou de um fatalismo metafísico. Um realismo e um romantismo que se anulam num corpus de pessoalidade vigilante e sensível.

Uma antologia bem encontrada, nas suas partes e no todo, logicamente matizado. Dada a quantidade de livros que se publicam em todo o mundo, da impossibilidade de os lermos, e da impossibilidade, por conseguinte, de visões de conjunto, de sinopses referenciais, planetárias, tão necessárias à arte em sua história, fazem falta antologias com o tratamento cuidado desta, desde que não se caia na segregação, numa xenofobia literária, ou num fundamentalismo de tradição.

Boa iniciativa do Alberto Augusto Miranda, esta das Edições Tema. Que outras tem e que serão tornadas públicas a seu tempo. Acções culturais. Livros publicados. Professor, a contra gosto, mas admirado e querido pelos alunos, o melhor critério de avaliação. O pianista, vestido a rigor, a contrastar com o clochard, a dizer-nos que o hábito não faz o monge. Em suma, um vagabundo da cultura, sem pouso certo, mas sempre com a luminosidade solar a escorrer da sua cabeleira.

Joaquim Matos, Julho de 1998

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