
Alberto Augusto Miranda nasceu no dia 21 de Fevereiro de 1956 em Vila Real. Foi professor do ensino secundário em Lisboa, dedicando-se actualmente à escrita, à tradução e à crítica literária. É colaborador permanente da RDP-Antena Um. Foi coordenador de Las Jornadas de Literatura Galega (Lisboa, 25 a 30 Maio 1998).
Até ao momento publicou dezasseis livros, dos quais se reconhece apenas em: Dá-me com a Noite (poesia); Portografias (narrativa); Nojo (teatro); Vento (histórias para a Inocência).
Como encenador pôs em cena: Alma Até Almada a partir da obra de Almada Negreiros (1989); Ninguém Ama Ema cruzamento de Húmus de Raul Brandão e Os Sítios Sitiados de Luiza Neto Jorge (2001/2002).
Como tradutor, traduziu Alejandra Pizarnik, Angelica Liddell, Anne Sexton, Antonin Artaud, Antonio Gamoneda, Carlos Edmundo de Ory, Claudio Rodriguez, Emily Dickinson, Eunice Odio, Fernanda Castell, Héctor Rosales, Ildefonso Rodríguez, Ilhan Berk, José Angel Valente, Laura C. Skerk, Maite Dono, Manuel Lourenzo, Paul Éluard, Sabine Sicaud, Sylvia Plath, Virgínia Woolf.
Criou e dirige as Edições do Destinatário, Edições Tema, Edições Fluviais, Edições do Buraco com propósitos vários: a) - atender ao dentro de cada um, se cada um é cada um; b) - mostrar o não mostrado pelos agentes - vários - da coisa literária; c) - criar percursos autónomos e livres para a criação e desaguação; d) - Atender ao específico e à diferença sem neles interferir; e) - particular atenção às línguas e culturas escondidas do mercado, com incidência forte na língua e cultura galegas e na criação poética latino-americana.
Estas Edições Tema, Edições Fluviais e Edições do Buraco são parte constitutiva do Departamento Literário da Sociedade Guilherme Cossoul (Av. D. Carlos I, 61-1º 1200-647 Lisboa - Portugal. Tm: 965817337; Correio electrónico: ahahmiranda@hotmail.com). Este Departamento não vende nem distribui comercialmente os livros que edita, confia noutra coisa.
Outras páginas sobre o autor:
Semântica do olhar
1
Como se as mãos para melhor se darem fossem senda
Abríamos nos olhos o lugar onde deixáramos a noite
Procura da qualidade do silêncio, da semântica da safira
Onde o sol era fissura e anomalia, uma mentira
Estranho, muito estranho, era o barulho do dia
E outras ignoradas estranhezas pendiam questionantes
Da força do destino, último sinal da existência
2
Nenhuma bioquímica emergia agora do namoro
Que houvesse, que há? assim se quer saber
Em vinte outonos de assombro pelas paradas pernas
À beira-abismo, doce tentação de continuar
Como se chamam as ninfas duêndicas do trabalho?
Um autocarro de lama nos estonteava a quietude
E a garimpa do ponto de contacto era um nada
Legítimo e acrescentado pela nossa presença em si
3
A realidade torna-se medonha, coruscante e estentórea
Passam, sem pausas, as imagens de outra dimensão
Mas logo a combustão dos contornos nos faz mistura
Mais não somos que um texto privado da particular unidade
Com que os amores encantados se fazem distintos
E o virtuosismo dos animais seráficos é só lembrança
Que um vinho confraternal recorda no imperfeito
Volvendo os suspiros ao lugar dos gritos imperecíveis
4
De repente uma chuva pudica permitiu algumas claridades
Em baile de livre fêmea em cima dos tijolos
Sazonando as seivas, vento embarcando as sementes
Sem rugidos, espelho nosso de feras cheirando
Os aromas do habitat perdido no momento da visita
No salto reconhecido derradeiro de quem já tudo deu.
5
A ronda diurna de perfumes apertados em cimento
Expôs as frágeis mãos ao domínio racional: ninguém
Assim como nós éramos, pôde sequer pela húmida dança
Ser tecido de andorinha, era o tempo das máscaras
E todo o desenho era vago no seu rigor, na sua voz
Chamante das cores e da surpresa, mas presa
Era a humana condição de desafios mortos
Algemas de um idioma de comunicação falho
6
Dissemos perdidas as guerreiras túnicas
Quando o após nos estranhou de estarmos juntos
Mesmo depois de destruirmos a eternidade
Em nossos endiabramentos de omissão e ausência
Agora nos bolsos nossas mãos apagaram a luz
Não há lume neste escuro que da noite não é
Chama-se a violeta para tocar a viagem para dois lados
Semântica do Olhar, Lisboa, 1997
Organon das profecias
1
Do século em seus espaços e tempos eu via
Para lá do eixo funcional dos limites
Animal de quinta dimensão mantido
Ao choro unido sem quebra, cabra
Indomável palavra em figura perpassando
Sua digna continuada emoção.
Subia a hortícola saia para me garantir
Fazedora do esquecido vento em cada pulo
2
Passeava a cegueira pelo meu sorriso de fé
Eu hostiava as sombras para as contentar de luz
E tinha tanta verdade em meus olhos esplendida
Que já nada temia do ameaçador espelho
Afinal meu consolo, meu feito ser.
Assim o levo nos meus bolsos e peitilhos
Como documento de firmeza sempre preparado
A saltar às conversas desditosas e às dúvidas
A mim própria saltando. Mais do que a prece
O espelho, o construído espelho, inquebrável
Salvação, a minha alegria do divino.
3
Procurava os perdidos de nome e uma traviata
Reconhecidos de mim nas águas dos extremos
Arca de Noé, eu seria aparição no desespero
Até no esquecido desespero de uma apática entrega
Ao tridentino dono, industrial da lavoura dos nervos.
Mais e melhor entrega eu lhes era dizer na boca
O amor que nenhum lupanário conhece à vontade
De Deus corpo no corpo do corpo sou e aos homens
De membro em riste apenas os cerco de imagens
As coxas, os seios, o sexo, deitados em mãos de nuvem
E chuva do futuro em cada abandonante do presente
O ósculo sagrado, o beijo da comunhão.
4
Não há verbo nacarado que consiga
O aroma dos meus braços voantes e abertos
À recolha da solidão e do desastre, os meninos
Todos para mim, explosão de afecto em minha ara.
Não há verbo, precisamos do silêncio para dizer
Precisamos de sentir para falar em cada dedo
Sulcando o meu ventre pelo escuro da origem
Viajando até ao luar dos olhos compreendidos
Sinais de todos os músculos e de outras forças
De que me faço e me fazem embarcação
Dos nautas que não desistiram do infinito.
5
Não faço todas estas coisas por Ele ou para Ele
Em soma vos quero dizer: Ele não é meu
Chulo! É por mim que tudo faço até na renúncia
De omitir à cidade e a mim mesma omitir
A minha sensualidade que julgo ser muita mas não quero
Saber, tenho medo, tenho medo, tenho muito medo
Da sua Revelação, não aguentaria a dupla fatalidade:
Ser agnóstica sensual ou vulgar ninfeta
Incapaz de ser única, tal a Vida seria.
Tenho medo, tenho medo, tenho muito medo
De a mim própria me nomear pássaro e não voar.
Ó mãe, ó meu resíduo: é a parte do pai que fala.
6
Por inteiro, sem parábolas me prontifico
A lavar-me de manchas para nos outros as lavar.
Um primeiro quente me acaricia o rosto
Na missão de ligar as almas ao Supremo
Ao inacreditável, ao impossível, a todos os signos
Prefixados de negação: sou-vos afirmativa,
De mim corre e escorre tudo o que é meu
Fonte vossa, nosso resultado, espiral
Penteando os cabelos dos acessos difíceis
Meu máximo gosto, minha máxima razão é
Minha máxima culpa, meu máximo ser
Clareando em perigo uma pequenina célula
Locatária do escuro e meu máximo triunfo.
7
Algures, em retiro, sentava-me no areal
E soprava na flauta de bisel edulcorantes sons
Como virtuosa hameline seduzindo
Pequenas multidões prontas de brancura atrás
De mim, oásis em regaço sem miragem
Hamsters abandonando o jogo da caça
Alegres do Sol, primevas claridades
Agora recuperadas na água baptismal
Todo o passado apagando por esta tigela de alumínio
Com que os faço nascer, lhes confiro um nome
E pelo livre arbítrio os torno diferentes
Em seus corpos inscrevendo
Uma oração comum no discurso da semelhança.
8
Talvez seja assustador o meu extra-vento
O tranquilo golpe da minha mirada
O desafio de desafiar sem combate expresso
Porque todos têm medo, muito medo
De abandonar o refúgio do seu caos
E saberem nas narinas o que lhes era sabido:
O lado mordente da natureza de cada um,
O lugar de árvore e fruto que era o seu
O céu que queriam e a que nunca chegaram
Por muito exercício e conquista em jejum
Seus metaquímicos transes pudessem ser
A palavra iniciática do profeta.
9
Eu de vento-rindo meu desmusculado segredo
Pura e transparente mão do milagre ou
Outro membro vos unte esses alimentos
Onde cozinhais em transmitida receita
Vosso mito por salgar
Que hoje aprendi no organon das profecias
Ser do profeta irredutível dever
Falar ao ouvido das setas
Em olhos reviravoltados.
Semântica do Olhar, Lisboa, 1997
Saída
mulher a fazer vento espantada
da falta do mesmo
assim não se pranteando
em ligeiros indícios com a mão lenta
e um pé semovente um pouco à frente
do que antes
ter uma fé em suave detérmino
devagar abandonando abandonos
finíssima brisa nascendo em si
sobrecalando rugidos, pancadas em rumor, gritos
por detrás de onde a vemos sair agora
em todos os lados o luar se faz divino
sopro.
Semântica do Olhar, Lisboa, 1997
Contingente geral, ala progresso
Contingente geral, ala progresso
designo-te vencedor: será feita a tua vontade.
contudo sem binómio: apenas tu farás a tua
vontade.
Quanto baste!
Escorrer a montanha, sonhar o purismo,
incensar de marginalidade a flauta de Pan
no descanso do cão, os cordeirinhos desobrigados.
Quanto paste!
Linha de Linho, Vila Real, 1983
O que eu desejava, realmente, era ir, esta noite, morrer à tua porta. Mas mora lá tanta gente que tu podias pensar que eu não tinha morrido à tua porta. Se ao menos o teu quarto tivesse uma varanda. Ou se praticasse a técnica da transferência e vivesse as imagens da substituição… ou se sinceramente amasse a minha analista. Não sublimo os desejos por incapacidade. E recalco mais este. Não posso, como desejava realmente, ir morrer à tua porta. Fico a gemer. Se, ao menos, tu morresses!
Linha de Linho, Vila Real, 1983
fenícios
o que de repente nos espanta a sensibilidade
é a ausência do longe, a maneira fácil
como inventamos e apagamos a distância.
De tal modo aquela mancha branca
aproximando-se como bando de fenícios
devolvidos ao seu retalho de vidro
onde as nossas imagens se cruzam
perante a perplexidade do mito
sem recurso para novo espaço
exilado dos cristais onde os humanos
brincam e se bastam.
A Poesia de Yvonne M., Alentejo, 1988
mas
o que se me implora é o vento mas
que esqueci; não por ser meu mas
por eu o poder fazer chegar mas
aos cabelos de quem o conheceu mas
por mediunidade de corpos, embaraços, expulsões, mas
de mim ninguém necessita mas
apenas do eolismo que me sai das extremidades ou da boca mas
pudessem calar-me e ficarem com o vento mas
sem saberem que eu próprio queria o vento mas
sem mim.
A Poesia de Yvonne M., Alentejo, 1988
vozes
oiço tantas vozes e nenhuma oiço
já que cada uma se multiplica e eu não sei
de cada voz senão a soma que é a minha
voz conter tantas vozes e minha voz não ser
a não ser quando disto fala por refreio
ao que se escuta hoje dos movimentos de ontem
e parecer ser justo diferenciar um quem
que voz é mas torna a ser desconhecida
sempre que a voz procurada denuncia
à voz que procura a sua
propriedade.
A Poesia de Yvonne M., Alentejo, 1988 (reprodução autorizada pelo autor)