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Recensões

As Fadas Não Usam Baton
João de Mancelos
Coimbra, A Mar Arte, 1998

As Fadas Não Usam Baton
de João de Mancelos

Tal como disse um amigo meu, pedirem-nos para apresentar um livro é das maiores honras que nos podem conceder.

Mas a esta honra tremenda de apresentar o livro do João de Mancelos, As Fadas Não Usam Baton, mesclou-se a dúvida; com o menino nos braços, (e com que orgulho e alegria) veio o paradoxo de ser o João professor de Literatura, e eu uma diletante dela. Que legitimidade tinha eu para falar do livro, para o sondar, para o fazer falar os seus segredos, para sublinhar um traço aqui e acolá, para meter até a minha colherada interpretativa (e aquele que estiver inocente que atire a primeira pedra...)?

Nenhuma, claro está. Restava-me então o alibi da amizade pessoal, um argumento duvidoso quando está em jogo um livro. Restava-me o alibi do meu próprio amadorismo inocente, no sentido daquele que ama sem quaisquer preocupações de análise literária: bom, e porque não essa visão de leitora que se deixa arrastar pela escrita do autor, tal como os pintores impressionistas absorviam com os seus pincéis a luz e o colorido?

"As fadas não usam baton" é o primeiro dos 5 contos que compõem o livro.

E o título provocador é, ele próprio, a metáfora de uma mulher vulnerável mas decidida. O baton provoca e excita, com a sua agressividade escarlate, mas esconde quem está por detrás da máscara, da «personna». O baton unifica todas as bocas, porque lhes vela a intimidade.

Não é por acaso que a narradora é actriz, escondendo excessivamente, mostrando excessivamente, enredada nos laços de um crescer doloroso.

Nem é por acaso que esta actriz nos fala do amor e da ausência de amor. As suas mãos vazias sobressaltam-nos. Diz ela: "Engoli uma secura morna. Não lhe soube responder. Faltava-me o guião".

Há muito de tragédia grega, talvez, em todos estes contos. Não apenas pelos temas: amor, incesto, sexo, maldição, até pela presença omnipresente da água, mas sobretudo pela inelutabilidade do destino dos personagens. A condenação à melancolia desta jovem é um privilégio do seu criador João de Mancelos, mas também uma força obscura que nos interroga, neste fim-de-século pseudo-hedónico.

Mas se a melancolia e o luto perpassam em todos os contos, é a par com o amor e a paixão, tão indissoluvelmente ligados como os gémeos do conto "Irmão, irmã". Um conto em que a pulsão sexual personifica todos os outros crescimentos, em que o amor-fusão é visto com desejo e repulsa, e a aniquilação física como a única forma de aceder à liberdade. O crescimento, ou seja, o estado de mudança, é outra das forças que perpassa nestes contos. O crescer que implica pequenas mortes, a solidão de estar consigo próprio, de descobrir a sua identidade, a força terrível do desejo sexuado, de afrontar a família, os outros. Se não, vejamos: "Aprendi o rodar das luas, pai Um pouco como o Pequeno Príncipe, cativei as raposas deste mundo e ensinei-me a parábola do escorpião, da cinza e dos cordeiros." (do conto "As fadas não usam baton").

No conto " Vidente", a descoberta do amor e o poder do ciúme podem subverter até a ordem do mundo, porque a tingem com o seu veneno. Como um aprendiz de feiticeiro, a adolescente deste conto é vítima das fúrias assim desencadeadas: a sua fúria, a fúria do mar, a fúria da multidão. Porque é mulher, e porque é mulher que ama.

Não só na "Vidente", como em "Até para o ano, em Jerusalém", é visível esta componente de provocar, de contestar e agredir o poder intra-familiar até então aceite. Esta metáfora da mudança através de atitudes de exibicionismo sexual, em que um laço libidinal é substituído - ou não - por outro, impregna todo o livro.

Mas o João de Mancelos é ainda e sempre um poeta. Oiçamos a sua voz no conto "Avé, mar":

"Há uma mãe escura e da idade do tempo. Chama-se oceano e vive na outra margem da minha janela".. "O teu signo transformou-te as linhas da mão / numa rosa de ventos sem destino Lembras-te? eu sou a noiva/ que abandonaste no teu périplo em busca da canela..."

É neste conto o mar invade tudo. O enredo é tecido pela lenda, pela espuma, pelo mar real da costa atlântica, pelo mar mítico e primevo, pelo mar como matriz da vida, onde tudo começa e acaba. Este mar-água-regressão existe igualmente no banho que os dois gémeos tomam na piscina:

"Junto a mim, o vulto translúcido de Catarina: uma massa fetal, dobrada sobre si, a cabeça enorme culminando um corpo embrionário. dir-se-ia uma sereia, ou qualquer besta mítica feita metade gente, metade peixe.

Em seguida, um túnel escuro e uterino devolveu-me à terra

-Fetos - murmurei - Aqui, na piscina, somos fetos."

A imponderabilidade deste mar-útero aparece-nos como uma imponderabilidade pós-orgástica, geradora de vida. Do conto "Avé, mar", descrevendo uma relação amorosa: "Descobri uma herança famélica de sexos e partos e ciúmes, e de sereias desposadas pela carne. O meu sexo era uma anémona aberta em tons de rosa... Estávamos impossivelmente sós e exaustos. Porém, dentro de mim, batia o teu primeiro instante."

Mas esta água iniciática, igualmente com o valor de um baptismo, aparece ainda em "Até para o ano, em Jerusalém", ("Eu, ao lado de Leah, ela vestida e nua, a um só tempo"), diz o narrador, num piquenique à beira rio, imediatamente após o banho, em que os adolescentes se beijaram provocadoramente diante da família indignada.

Em suma, João de Mancelos interroga-se e interroga-nos: porque é tão perturbante crescer? Como é que se cresce sem matar? Que amor é este que traz consigo a solidão, como uma outra metade que é maldita? Que mar trazemos nós dentro do peito?

Talvez se pudesse aplicar ao autor o diálogo que em "Irmão, irmã" mais cimenta a cumplicidade de ambos, dois espelhos que se potenciam infinitamente. Talvez entre os diversos João de Mancelos pudesse ocorrer este diálogo:

«– Que tenho, doutor?

– Uma infecção na alma.

– Tem cura?

Eu meneava a cabeça:

– Prognóstico reservado.»

Isabel Cristina Pires, 20 de Novembro de 1998

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