Almeida Faria

LUSITÂNIA

Veneza, 14-4-74

Queridos Pais,

estou a ver a vossa cara ao receberem esta, enviada do estrangeiro, contando factos em que eu mesmo custo a crer. Antes de mais ficam a saber que aqui vim parar com Marta, uma amiga cuja existência ignoravam e com quem quero viver. As coisas precipitaram-se a partir desta manhã em Lisboa, ao tomarmos um daqueles cacilheiros iguais aos de quando éramos pequenos, apenas com a diferença de que dantes os golfinhos acompanhavam a nossa travessia quase colados ao casco e agora só há detergentes, petroleiros, manchas de óleo, enormes depósitos de petróleo das multinacionais deformando a outra margem.

Descemos então para o barco de Cacilhas, contra as ondas a quilha em direcção ao mar, e a brisa deu a Marta vontade de chorar; não de tristeza; de raiva. Andam estragando tudo, um dia até acabarão por pôr de parte essas arcaicas barcaças que, numa regata de vapores. decerto não ganharão o primeiro prémio, contudo conquistaram um lugar na mitologia da cidade. São o que nos resta das descobertas e viagens, do apregoado império e seus naufrágios, dos sublimes sucessos, dos desastres em má hora anunciados por um velho de venerando aspecto, que ficara entre as gentes no cais, postos em nós os olhos, meneando três vezes a cabeça, descontente, a voz pesada um pouco alevantando, que nós no rio ouvimos claramente.

Mas isso é outra estória, cómico-marítima, naquela parranceira trajectória nossa sobre o Tejo, ao longe olhando Marvila e Madre-de-Deus que ontem ainda à mesma hora eu vira ao vir do Barreiro, saído de casa por causa duma discussão desnecessária, pela qual peço desculpa e sobretudo por ter deixado os Pais em cuidado ignorando onde eu falava. Hoje o pacato domingo de páscoa iria prosseguir a toque de caldeirada num estimável restaurante ribeirinho, seguida dum passeio junto ao rio, à protectora embora pouco eficaz sombra do Cristo-Rei abrindo os braços do alto do pedestal, no gesto resignado de não poder fazer mais nada pela chamada pátria. A Mãe não leve a mal, nunca gostei daquela imitação barata do Corcovado estilo polícia-sinaleiro de cargueiros, navios-tanques e veleiros, fragatas, chatas a chapinhar na vaga, na salsugem dos molhes e cais-de-atraque cheios do ranger dos cordames e estalar de madeirames.

Enquanto a maré cumpria a sua obrigação, subia, baixava, parecia parada, e mal nos afastámos para o lado da Barra, reparei num alfa-romeu avançando na nossa direcção. Logo a seguir surgiu outro alfa igual duma travessa lateral, aí percebi tarde demais: algo batia errado neste segundo carro a todo gás, cheio de gente de turbante com ar árabe. Saltaram três de dentro, tento ordenar a confusão dos factos, rodearam-nos, agarraram-nos, resisti, defendi-me sem nenhum resultado, agitei-me ao pontapé até que um deles me deu joelhada de criar bicho, perdi os sentidos, devo ter delirado, julguei estar deitado num molhe de Mottlau junto à foz do Báltico, onde pesquei esta miragem?

Ao despertar, o ânimo encolhido, a vista ainda toldada, tinha a borracha-cabeça encostada à peluche escura do banco do carro, com Marta entre dois guardas. Seguíamos pela autostrada de Setúbal a alta velocidade, a certa altura cortaram para um caminho deserto, acidentado, por uma densa mata. Os solavancos e saltos, que as molas de suspensão davam, faziam-me embater contra o tejadilho, aumentando a sensação de enjoo, confusão, incapaz de deixar aquela névoa. De repente travaram diante duma fortaleza isolada, arrastaram-nos para o portão blindado de chapas metálicas, levaram-nos de pulsos atados, precaução desnecessária, chegámos a um pátio de finas colunatas, arcos rendilhados, fonte-tanque ao centro, arquitectura moçárabe. Um lacaio de libré apareceu, recebeu indicações ou instruções em língua desconhecida, uma algaraviada gutural, saiu, passados segundos regressava com outro tipo, seguraram-me, deram-me uma injecção qualquer. O sono que me meteram pelas veias foi tão grande, que acordei nestas "cem ilhas" quando o nocturno vento de Veneza me fez voltar a mim a bordo dum vaporetto.

Dir-se-ia lusitano destino navegar mesmo contra vontade. Será castigo meu por não ter ido para oficial de marinha como a Mãe queria? Sempre afirmava: filho, ficava-te bem a farda. Estou a brincar, aliviado, instalado no palacete dum aristocrata que nos salvou dessa alhada. Ignoro pormenores, estou cansado, os olhos fecham-se-me devagar. É a terceira vez que hoje adormeço, parece número mágico como os três árabes, as três vezes que o velho abanou a cabeça à beira Tejo. Espero não despertar com alguma surpresa desagradável. Não imagino quanto tempo ficarei por cá, nem como arranjarei massas para voltar. Nos próximos dias escreverei com calma. Agora vou dormir e envio saudades. Vosso filho são e mais ou menos salvo,

João Carlos

(Reprodução autorizada pelo autor)


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