Almeida Faria

RUMOR BRANCO

III

luas mais tarde: a modos que este ano vamos tê-lo aspro: barbeiro de rachar galhos. caminhavam os dois pelo atalho, Tóino e Mairó, saído soldado. o primeiro, logo que largou da obra, alvorou pra casa sem mesmo ir ó tasco. na frescata. para trás a cidade com a luz das luzes e o ruído das ruas. mal se sentia ser natal, não houvesse pinheiros de plástico cobertos de algodão em montras caras. tinham cruzado com meninos abafados de casacos. Antone entrou no merceeiro pra comprar qualquer prenda para a consoada. a ver se fazia à patroa essa surpresa. passou pelos preços os olhos demorados. arroz 6$00 feijão 5$40 batatas 4$00 massa 5$70 açúcar 6$80 bacalhau 15$90 farinha 6$00 farinha amparo e maizena 4$80 farinha saluzena 3$00 farinha torrada 2$80 café 12$00 chouriço 38$00 toucinho 21$80 banha 16$80 chá 2$00 caldos magi 3$50 sardinhas 3$00 ovos 14$60 margarina 3$00 sabão 7$10 atum 3$80 a lata. o dinheiro era magro. que comprar? acabou por sair porta fora. fodido. tudo caro. noite fechada quando chegaram ao alto das latadas. tão marmacento de nuvrado que não se via o vale e do porto chegavam sereias e sinais. o céu ameaçava dum ao outro momento desabar embátega. e a nortada arrepiava as árvores a querer levar consigo aquelas pincres casas de távoas. encontraram no caminho Daniel, olhando para o céu: vai haver temporal, Danielzinho: vai, vai, ah isso vai. o Danieljão tinha estado tôdó dia fora. como o pai e o Mairo e Joquim e Custóida. só Albertina não deixou a mãe, que esperava a criança na semana seguinte mas na noite anterior tivera muitas dores e pedira à filha que ficasse em casa. aí o pai chegou com Maim e o mais pequeno atrás, veio Albertina à porta, excitada: a mãe teve pontada agora à tarde, natural a criança inda hoje nasce: é preciso ajuda? disse o pai, ao que Albertina desdenhosa: im quê que vossemecê vai ajudar? e meteu-se para dentro. o pai sempre naqueles nervos. parcia a primeira vez e já lá iam seis. ficou no quintal à espera: tens cigarros? era ao Mário que pruguntava. este estendeu-lhe o maço, ele ateou de nãos em concha. o Jequim apareceu daí a pouco. António: fica aqui fora. e ele. atão porquê? ah, já sei. desconfiou quando o viu todo agitado passeando dum pra outro lado ao longo do quintal. então o pai agarrou na enxada, disse à rapaziada: podiamos cavar praproveitar. e atirou-se ao trabalho em ardor raro. noitalta arrivou Custódia e namorado, ao saber da notícia entrou correndo em casa, curiosa assustada. nunca tinha visto nascer nada, nem mesmo um animal. e afinal tudo tão fácil. o ventre cansado de parir abriu-se húmido à vida. a mãe não soltou nem um gemido, e se acaso chorou, como Custódia disse e ninguém viu, foi de feliz no corpo mole e que queria dormir. e era uma menina, as irmãs a envolveram nas faixas que as já tinham a elas envolvido. mal Antóino entrou, a mulher teve um suspiro no suor da face: o Jaseus quis canossa mocheca nâcesse ó mesmo tempo quele. naquela noite estavam os oito, como dantes. havia calor na trempe, onde o caldo de calatrão dos outros dias borbulhava mas que sabia agora bem. comeram as fatias de parida e a tiborna, uma das filhas cantou e deram graças. de quê? a quem? as vozes alcançaram o tecto muito baixo, vozes altas erguidas sobre frio e fome. quando foram deitar-se a trovoada veio torrencial em chuva grossa e vento: olha se nã temos consertado as telhas pra esta tormenta. viram como se não deve escrever uma história portuguesa? mesmo assim houve decerteza quem chorasse ao lê-la, sobretudo as senhoras burguesas que, como se sabe, têm bons sentimentos

© Almeida Faria, Rumor Branco, 2ª edição, Lisboa, Portugália, 1970 (reprodução autorizada pelo autor).


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