Almeida Faria

A REVIRAVOLTA


As personagens desta peça são familiares aos meus leitores. Se me falassem de um autor que, depois de quatro romances centrados nas mesmas personagens, a elas regressasse para pô-las a agir e falar sobre um palco, talvez torcesse o nariz e pensasse que já era de mais. Eu próprio, enquanto cúmplice guardador destas figuras, fechei-as durante anos à chave no sótão do passado e, julgando que as esquecera, andei por outras paragens. Mas a minha ilusão de esquecê-las era ingénua; porque, na sua persistência, elas é que não se esqueceram de mim. Inconformadas com o limbo a que se viram remetidas, nunca pararam de suspirar, de murmurar de ciciar, de sussurrar-me os seus anseios e pavores e uma vontade desesperada de se agarrarem à sua vida de máscaras.

Quando a trama que as unia ou desunia me parecia enfim esgotada, uma encomenda teatral levou-me a reencontrá-las. Logo elas se intrometeram, retomaram o poder sobre mim e de novo me condenaram à sua companhia. Infelizmente não são máscaras de comédia, não me divertem. E contudo não consigo que me larguem. Talvez tenham comigo algo em comum, um nunca desistir um fraco por tiradas, um insistente retomar dos mesmos temas repetidos e ruminados em diálogos que, nalguns casos, são outro modo de monologas

Como quaisquer personagens que se prezem, também estas aspiram à possibilidade, muito remota embora, de reencarnações sucessivamente renováveis. Com que direito lhes negaria eu o que lhes posso dar? Por mim, preferia abandoná-las ao seu doméstico inferno. Numa época que diviniza a notícia, seria mais rentável disfarçá-las sob nomes, idades, ambientes diferentes, para terem um ar de novidade. Que adiantava? Seria uma forma de lhes negar a paixão – e sobretudo a compaixão – que me merecem enquanto seres dos quais só me separarei quando eles ou eu morrermos.


Almeida Faria, em «Modo de Emprego», A Reviravolta, Lisboa, Ed. Caminho, 1999, pp. 9-10 (reprodução autorizada pelo autor).


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