A. M. Pires Cabral

A. M. Pires Cabral

A. M. Pires Cabral nasceu em 1941 na freguesia de Chacim, concelho de Macedo de Cavaleiros, Trás-os-Montes. Licenciou-se em Filologia Germânica na Universidade de Coimbra e é actualmente professor do Ensino Secundário. Tornou-se conhecido ao ganhar o Prémio Círculo de Leitores de 1983 com o romance Sancirilo. É um escritor cuja matéria literária se centra essencialmente na ruralidade.

Obras: Algures a Nordeste (poesia, 1974); Solo Arável (poesia, 1976); Trirreme (poesia, 1978); Roleta em Constantim (poesia, 1981); O Saco de Nozes (teatro, 1982); O Diabo Veio ao Enterro (contos, 1985); Memórias de Caça (contos, 1987); O Homem que Vendeu a Cabeça (contos, 1987); Crónica da Casa Ardida (romance, 1992); Raquel e o Guerreiro (romance, 1995); Três Histórias Transmontanas (contos, 1998); Os Arredores do Paraíso (crónicas, 1991); O Diário de C* (Vila Real, 1995); Sancirilo (romance, 1ª ed. em 1983; 2ª edição reescrita, Editorial Notícias, Lisboa, 1996); Vilar Frio (novela, ilustrando o álbum de fotografias Portugal Terra Fria, de Georges Dussaud, edição conjunta de Marval, Paris, e Assírio & Alvim, Lisboa, 1997); Na Província Neva (crónicas de Natal – edição de autor, Vila Real, 1997); Três Histórias Trasmontanas (contos, edição de autor, Vila Real, 1998); Artes Marginais (antologia poética, Guimarães Editores, colecção Poesia e Verdade, Lisboa, 1998); Desta Água Beberei (poesia, Vila Real, 1999); O Livro dos Lugares e Outros Poemas (poesia, João Azevedo Editor, Mirandela, 2000); Vila Real: Um Olhar Muito de Dentro (com fotografias de Albano da Costa Lobo, Câmara Municipal de Vila Real, 2001); Douro Leituras (antologia, Museu do Douro, Régua, 2002).

Recensões críticas sobre o autor:

  • Raquel e o Guerreiro


    CRÓNICA DA CASA ARDIDA

    CAPÍTULO I

    Numa madrugada de Primavera ainda arisca, ainda a medo, do ano da graça de 1897, sem que nada o anunciasse, nada de nada – nem sinal algum no céu, cometa ou excessivos rubores a norte, nem particular alvoroço dos animais, que nos seus estábulos se inquietam e erguem vozes pressagas da aproximação dos prodígios -, naquela madrugada igual a todas as madrugadas, inopinadamente como fica dito, ouviu-se em Bragado pela primeira vez a gaita de amolador de Jacinto. Ninguém suspeitou então que fosse a alcoviteira de sucessos tão extraordinários.

    Todos a ouviram e ninguém lhe ficou indiferente: impossível.

    Ouviram-na as donas diligentes, que, a essa hora purificada a que os fantasmas e outras criaturas da noite se recolhem soturnamente, já  labutavam a acomodar o vivo, e os homens que gravemente desciam às leiras, enxada ao ombro, burrico pela arreata, no rosto o ar severo de quem cumpre um mandado sempre igual de servidão, suor e fruto escasso.

    Ouviram-na os entrevados, aqueles que aguardam na imobilidade o desfazer dos dias e que, à mesma proporção que o alento das pernas se lhes vai tolhendo, desenvolvem em compensação um ouvido agudíssimo e perspicaz, pelo qual, retidos no catre, lêem linha a linha a grande fábula da aldeia, que lhes vai chegando sob a forma de gritos e ralhos, chamamentos, resmungos, risos, assobios, vozes que cantam.

    Ouviu-a o padre Salomão, que diz, por essas horas de estranha calma, minuto atrás, minuto adiante, uma missa quase solitária, desolada, na pequena igreja de Bragado, impaciente por acabar, porque chamam por ele as lebres e as perdizes dos montes da Devesa, com que anda desde há anos em porfiado despique que só há-de terminar quando a gota lhe tolher de vez o caminhar.

    Os próprios cães da rua a ouviram e, porque o génio não lhes consente ouvir calados vozes assim intrusas, responderam, uivando e ladrando desconcertados, ao som inusitado e singular.

    Ouviu pois Bragado inteiro o pregão sedicioso – e pasmou, ficou suspenso. É que nunca, por nunca ser, um tão transparente cristal reverberara assim na madrugada fresca do povoado. Tomar-se-ia por uma improvável cascata ascendente, mal aflorando, esquiva, todos os degraus da escala e demorando-se depois no topo, num vibrato precário, até se decidir ao regresso contente, como de arroio, de nota em nota, dó-si-lá-sol-fá-mi-ré-dó – um dó grave onde repousava cansada, feliz. Havia um silêncio, em que todavia o som se alongava dentro de cada qual, explorando grutas. E logo de novo a volatina, insuportavelmente limpa, quase ríspida em sua pureza, que voz alguma de criatura nunca arremedaria (ainda que de ave: toutinegra ou rouxinol, ou ainda o pachacim, que, nas tardes de Primavera, se entretém a limar a garganta, adivinhando água), varria de novo a escala de lés-a-lés e ficava a perdurar na frescura da manhã, namorando-se dela, nela se detendo e confundindo.

    – Ele que foi aquilo, Adelaide? – disse da sua alcova a Maria Sancha, anciã entrevada, suspendendo nos dedos esguios, que vão tecendo a morte, o corrupio das contas do rosário gastado do uso.

    – Que é que havia de ser? O capador. Ou por aí algum amola-tesouras que chegou ao povo – tornou-lhe da cozinha a filha, que também ouvira e se maravilhara. Foi ver, para se certificar e também porque era amiga de novidades, e anunciou para dentro: – É o amolador, é. Pousou agora mesmo a tenda ali no largo.

    – Abençoado homem, que assim toca de bem! – diz consigo a velha, e passa em falso duas contas do rosário, distraída a cismar coisas que a música despertaria nela. E alto, para a filha: – Tu não tens que lhe dar a amolar, Adelaide? A tesoura da costura já  não anda a cortar lá muito bem... E sempre há-de haver por aí alguma faca a precisar duma afiadela...

    – Olha o que está de consumida com as facas! Descanse, minha mãe, que o homem não se vai embora tão cedo. Chegou agora mesmo, ainda mal pousaria os pertences. Já  lá  vou, em tendo uma aberta. Ou julga que estou aqui de perna à vela?

    A Maria Sancha calou-se. Para quê repontar? Só se por rabugice de velha, porque sabia bem que a filha, lidadeira e governada, não ia desaproveitar a passagem do amolador pela aldeia. Ninguém desaproveitava. Facas e tesouras e outras ferramentas de corte não levam vida fácil em Bragado, e o fio vai-se-lhes embotando, enchendo de bocas, há  que rectificá-lo. Alguns têm, é certo, uma pedra de amolar na cozinha ou à entrada da porta, e nela se entretêm, num aperto, a refazer os gumes. Mas isso é num aperto. Porque não há  nada que chegue ao esmeril do amolador, impulsionado ao ritmo certeiro e calmo do pedal, para deixar de novo apta para o corte, acerada como navalhas de barba, a cutelaria velha.

    Que admira pois que já  as donas revolvessem gavetas, à cata de facas para amolar? Algumas iam de passagem pondo olho em pote ou caçarola precisados de um pingo de solda, não calhasse por aí ser o amolador artista de amba-las-artes, como tanta vez sucedia. Havia três anos que esperavam a chegada do amolador, embora sem saberem quem nem quando havia de vir. Mas algum tinha de vir, porque as necessidades elementares da aldeia incham e crescem, tomam voz e clamam por satisfação, e ouvem-se-lhe os gritos nos povos em redor. Um dia, algum amolador ouviria o apelo e viria, com o seu dedo hábil e o seu esmeril, dar alma nova – fio novo – às facas cansadas. Certo como as aves-frias no Inverno.

    Há  três anos, pois, que Bragado lhe esperava a chegada. Porque há  três anos deixara de aparecer o velho amolador, cíclico visitador daquela corda de povos: Bragado, Chacim, Malta, Olmos e, mais para leste, Lombo, Peredo, Castro Vicente, Saldonha e por aí fora. O velho era de Morais, coisa de três léguas dali. Criatura caprichosa e vária, vinha duas e três vezes no ano, se lhe dava na cabeça; porém outros anos havia em que não chegava a aparecer, perdido lá  por outros caminhos. Surgia quando menos se esperasse, sombrio e embezerrado, a cara de quem anda a cismar em como reaver o que lhe devem. Assentava arraiais no largo do pelourinho e, com todos os vagares, que muito agoniavam as donas videirinhas, lá  se ia desincumbindo da amolação. Deitava também o seu gato de arame em terrina ou malga rachada e pingos de solda no fundo das panelas rotas do atrito da pedra do lar; e, se o rogavam, atrevia-se mesmo a consertar e repor as varetas dos grossos sombreiros de doze varas e pesada mão de pau que o aldeão precavido tanto usa para se defender da chuva e das raçadas impertinentes do Sol, que ferram como moscardo, como para ofender os costados do inimigo nas legendárias rixas de feira e arraial. E cantava entretanto, rouco e mal disposto, uma cantilena fungada aqui e ali de palavrões, dados aos ossos do ofício:

    Donde vens tu, Mariana,
    Corpo de mim, donde vens tu,
    Sangue de mim, donde vens tu,
    Mariana?

    A cantilena era comprida como as léguas da Póvoa, dialogada entre Mariana e Martinho, uma qualquer complicação conjugal exemplar. Para maior verosimilhança, o velho fazia alternadamente voz de homem e de mulher, Martinho e Mariana.

    – Está feito, quanto cantar! – desabafava alguma mulher, insofrida com as delongas do artista.

    – O trabalho quer-se cantado – regougava ele, pausado, e tornava à cantata no mesmíssimo ponto em que a interrompera para o remoque.

    Atendida a freguesia, ala, desaparecia em menos dum credo, a sumir na gaveta da taberna os dez réis ganhos no largo. Pouco depois, ao embicar por qualquer dos caminhos que saem do povoado, ia mais trôpego e cantava com voz mais pastosa. O rapazio perseguia-o então até fora de portas, jogando-lhe chufas e pedradas.

    No Inverno de 1894 já  não viera, e soube-se então que nunca mais viria. Constou-se que um dia ainda se botara ao caminho de Morais para Lagoa. Ali podia ter pernoitado num palheiro qualquer, que ninguém lho negava; mas não quis. O povo diz que já  tinha o destino marcado. Pedia-lhe o corpo caminho, e toca a avançar sobre a Paradinha, na mira de se achegar a Balsemão, onde contava achar agasalho no convento. Mas precisamente ali onde apartam os termos de Lagoa e Paradinha, anoitece-lhe. Os pés, taralhocos da aguardente, enrodilham-se-lhe nos tojos e nos fetos, a roda não rompe. Deve então ter caído e lá  torceria algum pé, e já  não se levantou. Ali se dormiria, esperando o socorro da manhã. Mas caem-lhe em cima os lobos, que nesse Inverno andavam bastos e piegos como não havia memória, ao consoante da fome que rapavam, devido aos nevões. E quando, na tarde seguinte, por ali passou alguém que ia à sua vida, conheceu-o pela roda e pelos tarecos, que tudo o mais eram farrapos, sangueira e ossos descarnados, salvo os pés, que as feras não vingaram roer-lhe dentro das botas, nem as aves que vieram depois acabar com a carniça.

    Foi sucesso que deu que falar e chegou a andar cantado pelos cegos. Muita gente adquiriu na feira de Bragado o folheto impresso onde se relatava o Orroroso martyrio d'um ancião pelas feras carniceiras e o guardava na gaveta para de quando em quando o fazer ler, às vezes cantar com a mesma melopeia plangente com que os cegos cantavam tudo o que fosse tragédia, para que o espantoso caso não se desvanecesse da memória do povo.

    A sorte do velho amolador, vítima dos colmilhos dos lobos, horrorizava-os como a criaturas sujeitas ao mesmo. Mas, no fundo, o amolador não deixava saudades. Era rabugento e malcriado. Ao chegar à aldeia, anunciava-se soltando uma espécie de grasnido, uma voz ralhada e intimatória, assim como quem diz: "Vá, aviem-se lá  com o que há  para amolar, que eu tenho mais que fazer, quando não amolem-no vocês, e burro sou eu em andar aqui a aturar ninguém" – oh, nada desta  ária pura e transparente que agora lavava Bragado das brumas da noite.

    Jacinto acabou por deter a marcha vagarosa no largo do pelourinho e, enquanto vinha e não vinha a clientela, foi dispondo os petrechos a seu cómodo. Não tardou que chegasse a primeira freguesa, com duas facas na mão e uma ilimitada curiosidade nos olhos, porque a aldeia gosta de conhecer de antemão as credenciais de quem a frequenta e quem a serve.

    – Vossemecê donde é que é? – perguntou ela, antes mesmo de lhe passar as facas. E porque ele demora a resposta, como criatura tarda no falar: – É de longe? De minha lembrança, nunca foi visto aqui no povo...

    – Donde sou? De por aí fora – respondeu Jacinto, com um sorriso que era a melhor credencial, limpo, luminoso como a manhã que se instalava e crescia. – Mas que lhe importa isso agora, tiazinha?

    – Procurei por procurar. A gente gosta de saber, então não é? Olhe, amanhe-me lá  então estas excomungadas, que o que estão boas é para cortar água e sombras de parede. Isto, facas como as de antigamente...

    E, porque era mulher de muito falar e nada a deliciava tanto como ter alguém na posição de ter de a escutar, prosseguiu o requisitório contra as facas modernas: os ferreiros de Palaçoulo andavam todos a dormir na forma; quanto aos cuteleiros de Guimarães, esses nem era bom falar, tudo obra falsa como Judas. Água. Água e sombras de parede é que as facas cortavam bem. Jacinto sorria e concordava, mas não dava palavra.

    – Homem, vossemecê parece que o gato lhe comeu a língua... – arrisca ela. – Ou então andou a estudar para padre...

    – T'arrenego! Eu não senhor – disse Jacinto, divertido. – Nem à escola fui. Não distingo uma letra do tamanho da roda dum carro.

    – Os padres é que são assim calados, mormente à hora do comer.

    As facas estavam afiadas.

    – Veja lá se serve o trabalho, tiazinha – disse Jacinto e, para mostrar obra, experimenta uma das facas na unha do polegar. Depois, sacou de algures de um naco de papel e foi ensopá-lo na fonte de chafurgo, ali ao lado. O papel tornou-se mole, aparentemente inviável ao gume das facas, apto pois para a demonstração prodigiosa. Ninguém diria que lâmina alguma pudesse cortar nele a direito. Todavia foi o que Jacinto fez com uma e outra faca. Era a prova máxima, definitiva. As pessoas em redor moveram as cabeças rendidas, em admiração.

    – Não tem que ver, é serviço bem feito – disse outra mulher, que aguardava vez.

    A notícia do contentamento alastrou célere. Espalhou-se por quelhas e quinchosos, pinchou sobre o estrume que a invernia vinha de curtir nas ruas, entrou casas adentro e por fim, tinha de ser, subiu ao andar nobre da Casa Grande.

    – Olha o grande caso! – respondeu Dona Irene, enfadada, a quem lhe dava a novidade. – Se o homem afia bem as facas, não faz mais do que a sua obrigação. Aliás tanto melhor para ele, que mais freguesia terá.

    E, o espírito ocupado com outras ralações, decide que não precisa dos serviços do homem. Mas nada do que é novo e quebra a rotina empedernida dos séculos se pode desperdiçar em Bragado, que rumina na roda do ano sempre a mesma erva de um quotidiano sem horizontes nem picante. E a fidalga, por pura curiosidade, sempre quis ver artista tão gabado. Chegou-se a uma janela da ala sul da Casa Grande, que dava para o largo, levantou com delicadeza senhoril uma ponta da cortina de renda e o seu rosto branco entreluziu por detrás da vidraça.

    Jacinto lá  estava, bem no centro, rodeado de gente. Havia risos e ditos, satisfação, quase festa. O amolador, agarrado à roda, servia à vez as freguesas, arrancando do esmeril revoadas de cintilas que breve se apagavam. E, por Deus, era um belo rapaz, se bem que maltrapido e muito sobre o escuro, crestado de sóis sem conta. Mas a pele morena trazia sugestões maliciosas à imaginação da fidalga, tão branca... Dona Irene demorou nele, sem querer, os olhos curiosos. E, no momento seguinte, em vez de apenas curiosos, eram já  os seus olhos desejosos.

    Foi uma transgressão mínima, imatura; mas estava destinada a crescer. De facto, em breve cresceria tanto que não caberia no silêncio. Era todavia ainda cedo para isso, e Dona Irene, enleada, deixou cair a cortina, foi à vida.

    Assim começou um caso que em Bragado e nos povos em redor deixou memória longa, que perdurou mesmo depois de esfarelados os ossos dos que o protagonizaram, porque era feito da mesma matéria das lendas que o tempo não corrói. Foi um caso exemplar, que os pais apontaram aos filhos pródigos, renitentes em agarrar-se à vida útil, produtiva. E de facto para quem, como a gente dos campos, tem em tanta estima os valores da estabilidade e tanto teme os caprichos da roda da fortuna, nada podia ter mais sólido valor probatório do que aquele memento patético: a crónica de uma casa que, enredada no torvelinho das paixões, deu consigo em terra, não lhe valendo pergaminhos, pompas nem libras de cavalinho. E não era uma casa qualquer: era a Casa Grande de Bragado. Casa Grande na voz dos velhos. Os novos, porém, que não vêem senão ruínas e sinais de fogo, e já  não assistiram ao caso portentoso e digno de lamento, chamam-lhe antes Casa Ardida. Casa Grande, Casa Ardida... De permeio entre os dois nomes, a paixão e o desejo, o pecado e a virtude, o crime e o castigo, a ganância e o orgulho, a desesperação, a coragem, a renúncia, a solidão, a loucura.

    Crónica da Casa Ardida, 1992 (reprodução autorizada pelo autor)


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